quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

JOSÉ FERREIRA MONTE


Às escuras, estendo a mão aberta, e afago
o Tempo de Silêncio em repouso, vigilante.
Ainda te oiço gritar o verbo mais amargo
da tua lucília e austera poesia militante.

Que amargurado poeta foste a vida inteira!
Bradavas os teus versos e esse era o pranto,
a arte e a razão, únicos e à tua maneira,
poeta e homem em cada verso do teu canto.

Depois, é como se alvoroçássemos de novo
a Quinta do Amieiro na passagem de ano,
com Pablo, Lopes Graça, as Heróicas do povo,
neste tempo - como então – ainda insano.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A NEVE


Às vezes nevava.
O céu oferecia a neve para poder entrar na folia,
como qualquer de nós cedia a bola para entrar no jogo.
Os dedos só gelavam nos primeiros instantes.
Daí a pouco tempo, as mãos ardiam como brasas.
Às vezes nevava.
Era um lençol branco e imenso, quase sem limites.
Mesmo assim, alguns levavam braçadas de neve para casa,
na esperança de que assim não derretesse.
Uma qualquer espécie de alquimia
haveria de conservar o gelo
e transforma-lo em miragem perene e mágica,
para íntimo deleite.
Às vezes nevava.
Fazíamos anafados bonecos com apêndices postiços,
bolas de arremesso,
construções que a imaginação
e a quantidade de gelo permitiam,
escorregas improvisados.
Às vezes nevava
sem sabermos muito bem porquê,
nem o préstimo de tanta alvura.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

SEGUNDO A CRÓNICA



A ideia de que cada um fala por si, faliu. Hoje, é cada vez menos isso e cada vez mais o eco de outros que nos asseguram que assim é.
Sem a necessidade constante de ressarcir direitos de autor, basta seguir o rasto, segundo as fontes bem informadas.
Assim se pode debitar que aumentam os crimes violentos, os de colarinho branco, os roubos por esticão, o consumo de drogas e a corrupção, segundo as autoridades policiais. Aumenta a inflação, o desemprego e os índices de pobreza, segundo as estatísticas. Assim como os combustíveis e os impostos sobre veículos não tardarão, segundo Vítor Constâncio.

Segundo a imprensa, nenhum dos ministros cessantes solicitou o fundo de desemprego ou qualquer outro subsídio para sustento familiar. Há mesmo alguns que não decidiram o que fazer, face às opções disponíveis, e outros que vão de férias reflectir sobre o que muito bem entenderem. Pelos vistos, acompanhados de muito boa gente privilegiada, a quem sobraram uns tostões para as férias de Natal, segundo as agências de viagens.
O povo, no entanto, precisa mais de reality shows e de conversa fiada que de pão para a boca, segundo as televisões. Segundo o Necas isto paga-se, mas não é tempo ainda de enxergarmos tal desfecho.
E por que carga d’alhos os portugueses, não os ingleses, não os alemães, não os franceses, mas os portugueses, dizem, são o quarto povo mais xenófobo da Europa, segundo inquérito promovido por um qualquer organismo europeu? Que raio de perguntas levaram a tal conclusão?
Belmiro de Azevedo é o 378º. mais rico do mundo, segundo as contas que alguém fez e está interessado em que nós saibamos.
Doce é o sono de quem serve, quer seja pouco quer muito o que ele come; mas a fartura do rico não o deixa dormir, segundo Eclesiastes.
Aumenta a fé, segundo a Fé.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA


O fim começa aqui – eis o teu passatempo eleito,
Mário-Henrique, o teu gin-tonic e tua condição.
Afinal, eficazes. Digo, o tonic é tão perfeito
como eu escrever estes versos e me chamar João.

Fazendo de conta que a musa que me inspira
é uma daquelas plúmbeas de rótulo amarelo,
seguro os teus versos – quero lá saber da lira
e puxo o cobertor, que o quarto está um gelo…

Na tarimba refilas, esperneias, fazes cenas
e pedes um lugar na almofada, à cabeceira.
E que consegues, contemplação? Não. Apenas
enfado e a ressaca de uma enorme bebedeira.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

PLANO B



Não é o mesmo que o lado B da vida; do disco que se preenche do outro lado, apenas por que o dito tem obrigatoriamente dois lados. Não. O plano B é algo que se aplica quando a principal tentativa se gora. Tem como características fundamentais ser de inferior qualidade, ter maiores probabilidades de ir por água abaixo e, pior que tudo, carrega às costas o ónus do falhanço.
E a primeira tentativa desta maioria ia no sentido de mostrar a verdade aos portugueses, de melhorar as coisas, de tornar mais fácil o que porventura outros teriam convertido em insuportável, li nos jornais.
Eis assim que os primeiros adoptaram como plano alternativo a difusão da ideia de que o povo está contente; as elites é que instigam o protesto, enquanto os mestres da empalmação que os precederam, garantem que tudo não passa duma inconcebível cabala, o que nos leva de novo a pensar na mãozinha misteriosa. Em resumo, quer de um lado quer de outro, entrámos no domínio da prestidigitação, da cartomancia ou sei lá de quê neste país acostumado a ir à bruxa, e o mesmo é dizer que ambos adoptaram o plano B, para mal dos nossos pecados.
Mas nisto de adopção do plano B, sendo paradigma dos meios políticos dominantes, não é infelizmente exclusivo seu. Aliás é moda, talvez copiada da teoria conhecida por terceira vaga, qualquer que se preze dá ares da sua arte de bem cavalgar em toda a sela.
O destaque vai necessariamente para a quantidade de gente mais ou menos conhecida noutros misteres – como excepção à regra, aparentemente bem sucedidos – que de repente desatou a escrever livros sobre os mais variados temas, a maioria autobiográficos, dando assim ares do seu eclectismo, para desgraça da literatura.
Voltando no entanto à vaca fria, poderemos estar perante uma nova ilusão: um qualquer signo trocado, um horóscopo mal interpretado e o principal plano não passar afinal de cortina de fumo que não deixa ver a verdadeira essência do plano B, tal como o conhecemos. Por isso julgo que cabe assim aos restantes cidadãos molhar a pena noutro tinteiro e escrever por linhas tortas o que, não é preciso enxergar muito, não é possível nas direitas.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

RUY BELO



Contigo não faço mais que a minha obrigação.
Só não sei o que fazer com os teus versos d’iodo
e a tua mortificada vida, cantada na Consolação,
poeta à tona ou naufrago, dito de outro modo.

Arrimas às ondas as rimas das odes alterosas
e os poemas desfazem-se em sal e espuma.
- Densos e sublimes são teus versos e prosas,
inquietas odes, que desfio à noite, uma a uma.

É como ter no mesmo frasco o mal e o remédio
e, voluntariamente, tomá-los qual bebedeira,
de modo que, desperto e de exuberante tédio,
durma enfim, merecidamente, a noite inteira.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O AVISO DAS CEGONHAS



As cegonhas chegaram já, silenciosamente.
Ei-las, madrugadoras, como anjos aturdidos.
Ainda sem jeito, miram lá do alto a gente
que passa e não as vê nem lhes dá ouvidos.

Não trazem – como na fábula – o bebé no bico;
a prole é a sua apenas – já não é segredo –
e eu, se as olho, é porque as amo e porque fico
a matutar, que arcano as leva a vir tão cedo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A PALAVRA DO MESTRE



No princípio, disse o Mestre:
- Passastes a provação do oásis autista, anunciado por aquele que cuspia pela boca quando falava; também a do que nada via e por isso acreditava que o homem haveria de morder o cão e ser notícia.
Depois mergulhastes na miséria da tanga e na noite das concubinas. Estais aptos para tudo. – Concluiu.
Não mais a mentira e a trafulhice, precipitaram os de maior fé.
Volvidos anos e lustres, ei-los como vistosas libelinhas, de nenúfar em nenúfar, espalhando o amor e a semente, para que os vindouros se sintam como verdadeiros eleitos, excepto os fariseus.
Assim, o Mestre entregou um cantil de lama a cada um e disse:
- Levai, que nesse cantil, mais do que a água vai a esperança da terra prometida, cujas sedes sacia de toda a qualidade.
Parou, por instantes, para olhar a cara dos discípulos, não fosse neles encontrar incompreensões ou quebres de disciplina, logo no início da caminhada, e prosseguiu:
- Caminhai sobre as pedras aguçadas e dizei a todos que esse é o caminho por vós escolhido. Esse é o sacrifício que vos exijo e por isso sereis recompensados com a minha bênção.
Ficou a escutar o murmúrio dos discípulos, inconclusivo, o que foi tido por aprovação unânime.
O Mestre preparou então os itinerários de cada um e concluiu:
- Caminhareis sobre as águas sem vos afundardes, trespassareis o fogo sem queimardes sequer uma pestana, e as vossas palavras serão o oiro do povo, mesmo para aqueles que contra vós vociferarem, pois esses são com certeza fariseus.
-Não sou santo – disse o Mestre – Santo é o meu pai, que foi, que é e que será.
O caminho é comprido e cumpridos serão os desígnios do Mestre. Haverá imposto sobre o salário porque essa é a sua vontade. Virão depois os que hão-de negar, e tais serão expulsos, escorraçados como cães, lá para onde o demónio quiser a sua companhia. Hão-de vir os cépticos, os cegos e, pior, os que não querem ver, mas desses não será este reino. São naturalmente os fariseus.
E mais disse o Mestre, que haveria de criar um novo céu e uma nova terra e que por sua graça não haveria recordação das penas já passadas.
Não era ainda a Revelação. Os sinais da Revelação haveriam de surgir quando os homens construíssem a grande torre da discórdia, construída em assembleia e em variadas falas e adulterassem os desígnios do Mestre. Seria então o primeiro mártir deste caminho feito em círculo. Cairia de exaustão, quando muito teria ainda para dar, segundo os companheiros, quando a maioria lhe faltar, segundo os fariseus.
Do mestre nunca se ouvirá que este será o princípio do fim dos tempos, mas há-de ser esse o tema da conversa dos proscritos e de todos nós, os fariseus.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

ANO COLORIDO



Vêm Janeiro e Fevereiro
e ainda não abri o tinteiro.

Chega o primaveril Março
com matizes de pigarço,

assim como o não menos Abril,
mas em tons de rosa e anil.

Quando irrompe Maio
já há cores em que não caio.

De repente, vem Junho:
de que cor é este punho?

Lentamente, lá vem Julho.
este tem a minha cor. Pouco barulho!

Mais devagar, Agosto
e o vermelho ardente do sol-posto.

Sorrateiro, entra Setembro.
Não tem cor ou não me lembro?

O mesmo direi de Outubro,
de que sei a cor mas não descubro.

Novembro e Dezembro vêm a seguir
cor de burro a fugir.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O NOSSO MAL É FOME




Os teus olhos despem-me e insinuam
por exemplo:
por aqui passa a água das marés…
sei que é errado, mas de momento quisera apenas saber
se era ariano, arianíssimo, o inventor
das bolas de Berlim
e desdenho os teus impulsos.

Quando sou eu, dedilhando o teu decote e a minha mão
balança já,
lembras-me de fomes e desculpas antes que aos lábios
um sorriso aflore
e queres que saiba se os mil folhas
são a obra-prima do mais guloso dos burocratas.

Assim se desvanece o dia,
o brilho elementar da madrugada,
a nossa espera.
Logo hoje que foi divulgada a estatística
de quantos pastéis de belém/tempo de mandato
comeram os senhores presidentes da república

e deu empate

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

ENERGIA ELÉCTRICA



Olha que isto da energia
tem o seu q de engraçado:
põe música na telefonia
p’lo fio de cobre, isolado,
que podia julgar magia,
não soubesse eu da porfia
dos operários do outro lado.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

ÁRVORE DE NATAL


A ventania de ontem à noite
tombou uma azinheira centenária, em frente da minha casa.
O fôlego da tempestade,
em contraste com o seu já débil alento,
foi superior às suas forças. Respirava ainda quando a vi:
arrastando a ramagem
e os escassos frutos no chão molhado,
suplicava o impossível conserto da sua coluna vertebral.
Não chorava – tanto quanto eu pudesse perceber – suplicava
a mão, o gesto ou apenas o olhar
a quem sempre a julgou eterna e eterna haveria ser
depois de nós e ainda dos que viessem.
Com um dos ramos tocou-me ao de leve.
Pareceu-me uma carícia, um aceno
ou o desejo de lançar nova raiz,
agora que a morte tornava inevitável a remoção.
Aceitei o ramo como presente.
A velha azinheira ofereceu-me a sua eternidade.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

MOSCAS

A mosca é aquele bichinho desagradável que nos mata a paciência até que… paciência.
Há dias recebi um pps com alguns exemplares do insecto em poses não muito ortodoxas. Vai daí, resolvi vingar-me, expondo-as. In-terceptei-as.


a mosca varejeira
calça meia alta.
batoteira!


em fila indiana
a mosca salta,
não se engana.


estás com ela.
- de burro,
disse a mosca.


-hei, suas toscas
não é aí que as moscas
fazem chichi


vamos, busca
mosca
e descobre a marosca.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

ALÉM


Partiram os homens em barcos e sonhos;
e com palavras e nomes próprios;
e âncoras, e pólvora, e orações, e capitães
que comandavam tudo isto.
Ao largo, inventaram canções, os homens,
e cantavam com palavras e nomes próprios,
até que a terra aparecida lhes dissesse:
- Estou aqui!
E os homens, interrompendo a cantoria, gritassem:
- Terra à vista!
De regresso, os homens traziam barba de muitos dias,
gente e coisas raras com palavras e nomes próprios,
que os homens não sabiam explicar,
porque não era a mesma linguagem dos sonhos,
nem ofício de náufragos,
nem mister de marinhagem.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

DAS MÃOS



Quis soltar as mãos
ao encontro dos teus frutos.
Senti-as contornar os relevos do lençol,
com cuidados de serpente,
e, como gatos, subirem
ao cume dos teus seios de água.
Mergulhei então a pele
em cada poro do teu corpo
e tu nada saberias se as minhas mãos
não fossem cúmplices da nossa vontade.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

SEGREDO



Podia ser flor,
pedra
ou somente um par de asas
dum poema antigo.
Podia ser laranja,
gomo a gomo.
Esse é o meu segredo e não o digo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

DA FÉ



Creio na predestinação do homem
e na cumplicidade da sua mulher original,
exceptuando as inocentes e virgens,
que os anjos e arcanjos protegem, encolhendo os ombros
largos e complacentes.
Creio na capacidade de perfuração das balas,
na precisão milimétrica dos mísseis intercontinentais
e na utilidade para o ocidente
da propagação, via satélite, de todos os discursos
do presidente norte-americano de serviço.
Creio no cancro de estômago e no salário mínimo,
apesar dos relatórios oficiais, creio
na perseverança do bicho-da-seda e da formiga
e no imperturbável sono dos ursos.
Creio nos acidentes de percurso e nos percursos sem acidentes,
na oportunidade ou favor de um etc,
mesmo antes de compreender o gargarejo,
a ladainha e os supositórios
a que qualquer ilusionista recorre
perante a mais inocente das enxaquecas.

Do que não estou certo é se é de vinho ou água benta
a bebedeira dos dias em que nada acontece,
oh providenciais taberneiros.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

VERSOS LAMPOS



Tenho assistido à vida com alguma bonomia:
ora cavalgando versos, ora eles a mim
- que uma coisa é o poema e outra a poesia –
antes que o diabo as teça com outro fim.

Há coisas bem piores, bem mais escusadas,
que esta de lidar com palavras nuas e vesti-las;
pior seria abandoná-las ou deixa-las encravadas
na garganta, sem mais remédio que cuspi-las.

Mas para dizer verdade, uma vez que seja,
confesso que há duas coisas bem diferentes:
uma é a mágoa de um verso, se lacrimeja,
diferente, é o suplício de uma dor de dentes.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

MEMÓRIA


No baú, uma velha alma dobrada em quatro,
aparentando ainda já ter tido melhores dias,
e o fóssil de um soneto inglês, numa folha A4,
além da caixa, sempre a caixa das fotografias.

A memória, como glicínias, floria exuberante
em cachos de versos de admirável aparato.
Nada mais enganador: pó, um poeta debutante,
alguns erros de ortografia e um frívolo retrato.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

UM LIVRO ESTRANHO



E por que não um deus bom aqui deitado,
ainda que fingindo o sono, pois não dorme
o que é omnipresente, ente inspirado,
dá conforto, vivifica e mata, e mata a fome.

E em verdade me diz a copiosa literatura,
enquanto me aconchego, lençol adentro:
- Eis o caminho, a chave e a fechadura,
e se resguarda a sete chaves por dentro.

Esta é a palavra e todas as palavras ditas,
o que se vê e mesmo o que não se nota:
metáforas, alucinações e alegadas visitas;
ensaia o sono dos justos, adeja e faz batota.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

PORTUGAL



O meu lugar é aqui: Portugal.
País de costas, mais que fole,
a bem dizer, todo litoral
e, de herança cósmica, o Sol.

Tem ao meio Lisboa, a capital
de dez milhões. Do império?
Falamos de que país, afinal
para levar a coisa a sério?

Há um incensado interior
listado em blocos de notas.
- Quando mal, nunca pior,
era melhor um par de botas!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

POEMAS (ANTIGOS) PARA VER

A qualidade gráfica dos textos que se seguem não é boa. Há até situações em que os caracteres ficaram no tinteiro... E não adianta muito dizer que foram copiados de um livro - Poesia de Costumes - que editei há quase trinta anos. De facto, nessa altura, a impressão ainda era feita com barras de chumbo, que as velhas linotypes produziam. Mas tendo isso em conta... O que mais interessa é que quero partilhar estes "poemas visuais" que em tempos experimentei e que o "Ida e Volta" (recente) me fez lembrar.




quarta-feira, 11 de novembro de 2009

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

DOIS EM UM



- Não sejas maricas, arranca!
- Tem calma, pá, deixa ver se está tudo em ordem.
- Deixa-te de tretas, tens é miufa...
- Não é isso: se fosses tu a conduzir...
- Olha, olha, se fosse eu. Se fosse eu, verias.
- Está tudo em ordem, pronto.
- Vá, arranca, antes que a velha comece a atravessar a passadeira.
- Ainda não percebi a tua pressa...
- Ó pá, não é pressa, é genica. Agora é bem feita: hás-de esperar um ano que a velha passe.
- Não digas asneiras. Primeira. (2ª,3ª, 4ª, 5ª). Já estás mais sossegado?
- Passa-me esses empatas. Vai aí a pisar ovos.
- Falta pouco para sairmos da localidade, não te precipites.
- Quero ver! Por este andar, nem amanhã de manhã!
- Cá está. Vamos pela IP ou queres ir a corta mato?
- A corta mato? És parvo?!
- Vamos pela IP.
- Acelera, porra!
- Vamos a 120, para o caso de não teres dado por isso.
- Vamos mas é atrás dessa lata velha, e ainda por cima é uma gaja a conduzir.
- Está ultrapassada. Satisfeito?
- Se eu não falasse, ainda agora vinhas nas encolhas.
- Bolas!!!
- O que foi agora?
- Olha para aquela fila de camiões a seguir à curva.
- Então? Qual é o problema?!
- Não é um, são dois: os camiões e tu que não te calas.
- Já não digo mais nada.
- Isso. Amua, fazes bem.
-...
- (oh pá, uma tangente!) Já passou a birra? Viste como papei os quatro camiões seguidinhos? Foi canja. Não dizes nada?
- Não querias que estivesse calado? Não fazes outra.
- Tens é inveja, cala-te!
- Outra vez?
- Eh pá, não sejas estúpido. É uma maneira de dizer.
- Por que é que afrouxaste?
- Não viste a placa de 80?
- Valha-me S. Cristóvão! Só me faltava esta... vês uma placa a cascos de rolha e pões logo o pé no travão. Assim não ganhas para calces.
- Não sejas injusto: saímos há meia hora e já galgamos 55 quilómetros!
- Por este andar ainda te chamam o Schumacher da Alameda...
- Às vezes irritas-me. Gostava de te ver a conduzir à noite e com esta chuva miudinha, que no alcatrão é manteiga.
- Tudo te pica, gaita!!!

- Não, meu caro, tu é que não medes as consequências. Para ti é sempre estrada e o conta-quilómetros até era dispensável. É prego ao fundo e por aqui me sirvo...
- Erro. O volante fez-se para homens, não para meninas.
- Bonito! Além de alarve és machista!
- Erro novamente! Nunca ouviste dizer que o automóvel é o prolongamento do sexo?
- Prolongamento?
- Sim, o prolongamento. E que eu saiba o sexo feminino não é prolongável...
- Deixa-te mas é de preconceitos... Está demasiado escuro e chove a cântaros.
- Então continua assim, que havemos de lá chegar a lindas horas!
- Espera. O que é isto? Curva e contra curva para a direita. Não se vê quase nada. Parece um galho de árvore ali no meio da estrada...
- É uma sombra, menina Amélia...
- É? Vou passar-lhe por cima... ai!...



- Há feridos?
- Infelizmente, não.
- Infelizmente?
- Sim. Há um morto. Tentou contornar esta falha de alcatrão e só parou lá em baixo. Nem soube do que morreu...
- Há pelo menos testemunhas; alguém que tenha presenciado o acidente?
- Não. Só um morto. Viajava sozinho.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

É BEM POSSÍVEL


É bem possível que haja mundo
que eu não saiba ou não visse;
é mais provável que, no fundo,
o mundo não saiba o que eu disse.

É bem possível que me encante
– ou não – o canto do meu igual.
É mais provável que não cante.
E se cantar? – Vale o que vale.

É bem possível o apelo às almas,
o seu aplauso para meu conforto.
É mais provável receber palmas
e as não ouvir por já estar morto.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

OS OUTROS



Tardavam os apreensivos duques, subalternos,
mas aí estão, enfim, para o desassossego:
trazem pés de lã, são benevolentes e ternos,
têm dúvidas sobre se os aceito ou renego.

Atiram o barro aos prémios municipais,
às menções honrosas de qualquer evento
e arrumam-se por aí como os animais,
com o coração a abarrotar de ar e vento

São como eu, proscritos, descontentes.
De ouvidos virgens, ainda sem maldade,
- mas esta noite é noite de sobreviventes:
deitem-se comigo; fiquem à vossa vontade.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

RAINER MARIA RILKE



Este seu hábito de aceitar convites, ainda,
Rainer Maria Rilke! Não me sove a cama
com a gordura dos seus versos e rimas:
hoje quero dormir só, dispenso a sua fama.

Tinha sono e tenho agora muito mais razões
para me entregar nos braços de melhor sorte.
(Já não aturo, como antes, intermináveis serões)
- Sossegue: pode ser que durante a noite acorde…

O tempo em que deuses poisavam nos poemas
fez-me refractário, como ao lobo faz o burburinho.
Agora, se o pressinto, finjo que não oiço, fujo ao tema
e "uiva em mim a pergunta à busca de caminho".

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

CATECISMO


Águas passadas, Noé
nadou onde havia pé.

Ao acordar, disse Abraão:
- hoje faço serão.

Não acredito em Moisés
e, no fundo, tu também não crês.

Era questão de tempo, estava escrito:
sobre Jesus estava tudo dito.

E de mais não precisou Jeová
para dizer, convencido: - Agora é que já está!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O DESPLANTE DA FLOR


desplante:
a planta
em flor
desponta

a planta
pronta
em flor
de espanto

suplanta
pétala
a pétala
ou seja lá o que for

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

INCONSEQUENTE



Só com o ver o trilho, a terra batida,
já o meu olhar progride muito além
do que ao ser humano é permitido,
que é caminhar quando o olhar vem

ao meu encontro e o caminho feito.
Só me abalança o estar presente,
longe de estar perto para o efeito
- inexplicavelmente ausente –

se o resultado for onde agora estou
e não onde me leva este caminhar.
Melhor é não ter para onde ir ou
seguir o rasto vagabundo do olhar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

CÃO POLÍCIA



-Travesti – de gatas,
tem tal perícia
em quatro patas,
o cão polícia.

Tem tal jeito
(de gatas)
o cão perfeito,
ainda de alpercatas.

Ladra, morde
por meia dúzia de ossos.
com sorte,
de outro, não os nossos.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O MEU GATO



Sei menos dele do que ele de mim:
altivo, mas por natureza insensato,
tem-me na mão só com olhar, enfim,
faço-lhe tudo. Sabe-a toda, o meu gato.

Não é por mim que ele me procura.
Descobre-me gestos, usos e sons,
e assim se insinua com doçura
dando-me em troca afagos e ronrons.

E eu o que lhe dou, o que lhe faço?
Nada. Contento-me em que seja meu.
Marco o terreno e dou-lhe espaço
tal como se o meu gato fosse eu.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

VIAGEM



Ao longe, um sereno povoado.
- Assim o vejo, assim o penso:
paredes brancas com telhado,
chaminés soltando fumo denso.

Só o fumo é sinal de gente,
que não ainda ao meu olhar,
distante, mas aparentemente
já sou eu, além, a fumegar.

Ambos partimos sem norte,
o fumo e eu, lado a lado,
ver de novo, com igual sorte,
ao longe, um sereno povoado.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

CREPUSCULAR ALEGRIA


Brisa de efémero sorriso
transitório, qual mercê;
redondo sinal de aviso
no instante em que se vê.

Depois esfuma-se, fenece,
vem a noite tocada a vento
e o que afinal permanece
é o sorriso do momento.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

REMISSÃO


Agora vejo o rubor do teu rosto,
a aurora boreal do teu olhar.
Vejo açucenas e fogo posto
queimando-me dentro e devagar.

E uma centelha de luz e flama
fulmina-me. Fico cinza e nada,
fumos, pó, restos de chama;
um chão estéril após a trovoada.

Ainda assim sou lisonjeiro,
como pé de água sobre brasas:
detono as veias e, prazenteiro,
troco as minhas armas por asas.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

DAS ÁRVORES



Alegria incompleta onde as palavras
nidificam entre pássaros e metáforas

em cada madrugada tingem mais de pólen
e sobressalto o empedrado das avenidas
das solenes avenidas com bar ao fundo

respiração avulsa e inquietude
é quanto as árvores podem dar-nos
se ainda tivermos tempo e fingimento

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

NUNCA MAIS



Há muito tempo que o Jacinto não fazia uma das suas. Em criança chamavam-lhe o desassossego, assim, com letra minúscula. Cresceu e os anos encarregaram-se da sua conduta e dos seus bichos-carpinteiros.
- Já não tens idade para essas coisas, ó Jacinto.
Era o que os pais lhe diziam constantemente, apesar dos seus quase trinta anos vividos com a pressa duma prova de cem metros e o fôlego de um corredor de maratona.
Quando regressa a casa com a noite quase toda em cima da cabeça, o seu maior prazer é ainda o de trepar o velho limoeiro no quintal das traseiras da casa e entrar pela janela do quarto, para que ninguém lhe aponte o mostrador do relógio ao pequeno-almoço do dia seguinte. E isso é sinal evidente de que a criança inquieta e pouco dada a contemplações, coisa de adultos, ainda mora dentro de si.
Do limoeiro conhece cada tronco, cada bifurcação dos galhos e, salvo os mais recentes, todos os nódulos que o ajudam nas escaladas furtivas. Teria também criado com certeza laços com folhas e limões, mas as primeiras são caducas e os frutos fazem parte do consumo próprio da família, sempre que o destino ajuda, como a seguir verá.
Pelo Natal de há uma mão cheia de anos, era Jacinto um adolescente com os miolos em ebulição e formigueiros no corpo, quis transformar o limoeiro em árvore para a quadra festiva. Ligou fios, fez derivações, enroscou lâmpadas e, por fim, passou as gambiarras por entre os ramos, de modo a que quase nada ficasse por iluminar.
Erro seu. A potência foi demasiada e, se não disparassem os disjuntores, o curto-circuito teria feito do velho limoeiro um monte de carvão. Foi um Natal muito triste. Não recebeu prendas e ainda por cima passou a noite de consoada a ouvir recriminações.
- Nunca mais!
Resmungava, contrito. Mas tal arrependimento, ainda que saído das suas entranhas, tinha o valor que tinha.
Mesmo assim, a pior façanha foi no dia do seu décimo aniversário, alguns anos antes. Para acautelar a casa de moléstias e correrias desastrosas para os teres e haveres, a mãe montou no quintal o aparato para o lanche e deixou o Jacinto e os convidados à solta, descuidando assim da preocupação de os controlar ao centímetro:
- Dali não passam.
Não passaram. Do chão não passaram. É que o aniversariante teve a peregrina ideia duma batalha campal, consistindo no arremesso de limões, previamente colhidos para os apeados e a rodos para os emboscados nos ramos da polivalente árvore de fruto, entre os quais se incluía.
Resultado: duas cabeças partidas devido a quedas desamparadas, alguns ossos fora do sítio, rasgões, arranhões e nódoas negras avulsos. Foi o balanço.
Parabéns, Jacinto!
Atirou-lhe o pai quando à noite regressou a casa.
- Vejo que os anos não passaram por ti. Continuas o mesmo desassossego de sempre!
Jacinto ouviu o responso de congratulações por detrás da ligadura de gaze enrolada em volta da testa que quase lhe tapava os olhos, apesar de tudo vivos, mas naturalmente pesarosos:
- Nunca mais!
Balbuciou incomodado com os acontecimentos do dia.
Em tudo quanto Jacinto tocasse, reservada estava a bronca. Uma espécie de Rei Midas do avesso.
Chegou mesmo a convencer-se que os azares lhe aconteciam por uma fatalidade muito própria já nascida consigo. Às vezes, sentia como que um impulso, um sinal de alta-frequência imperceptível para os outros, que o impelia para a asneira. Melhor dizendo: para caminhos que conduziam à asneira.
Poderia ser até que os citrinos tivessem algum poder ou influência negativa, como acontece nos filmes fantásticos. Mas não. Quando lhe sopra aquela campainha de sonar na direcção do desastre, quase sempre escuta outros sons, mais audíveis por todos e de proveniência bem conhecida, que são as palavras premonitórias da mãe:
- Vê onde te metes, Jacinto!
Ele não vê. Quer dizer, não quer ver. A sua ideia prevalece sempre:
- Isto? É canja!
O que importa agora é que está revelada a sua grande preocupação, o complexo da asneira, serôdia, mas nem por isso de menosprezar. Torna-se urgente um diagnóstico rigoroso e sem concessões ao arbítrio, e a terapia adequada.
Dúvida não há quanto ao elemento comum a todas as encrencas: o limoeiro. O problema é o seu relacionamento com a árvore, se nos é permitido este modo de nos expressarmos. Cortá-la está fora de questão; apontar-lhe o caminho da rua, muito menos. Haverá mais pano para mangas no elemento racional. Ele mesmo. A solução estará portanto no seu comportamento e na forma de se relacionar com o velho companheiro de infortúnio, afastando todas as hipóteses que contrariem os choques, as aproximações impensadas e as leis da natureza. Foi esta a fórmula que o Jacinto desenvolveu durante meses.
Sempre que, por força do hábito, circulava pelas traseiras, ficava de olhar fixo no limoeiro, às vezes como se de um desconhecido se tratasse, outras procurando uma resposta que, evidentemente, a árvore não lhe dava, e, outras ainda, com o espanto de lhe sentir a presença forte e dominadora de todo o espaço do quintal.
Sabe-se lá quantos Jacintos deste mundo adorariam ter uma árvore assim perto de si? Para a acariciar, para lhe sentir a doce aspereza do tronco robusto, para usufruir, enfim, do sumo dos seus frutos com água e açúcar.
Quando se lida demasiado tempo com alguma coisa, ao invés de o amor crescer na mesma proporção, parece que mais se desdenha e descuida e só a sua ausência provoca de novo o sentimento de angústia pela falta que essa coisa nos faz.
Sem qualquer explicação ou motivo que levasse a um desfecho como este, Jacinto amanheceu Domingo de Páscoa pendurado pelo pescoço num dos seus ramos favoritos. Branco, distendido como um lençol, morto.
Nunca mais, nunca mais voltarei a falar disto.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O TRASTE



Com a leveza da espuma,
luva preta em pelica
e um chapéu de aba e pluma,
como se arruma, que bem lhe fica.

A calça tem aprumo, um vinco
de goma e rigor fantástico.
Quase não se vê o cinto
e o par de botas de elástico.

Espreitam das mangas botões
de pérola em punho de renda,
(na verdade imitações)
mas alto lá com a encomenda!

domingo, 4 de outubro de 2009

O TRAJE


Dentro da lapela há uma tela
e em tê-la se entretém a vida,
como no mar alto içar a vela
esperar do vento o invento da saída.

De facto, o fato é um afecto
ou o tacto de um braço nu.
Assim o branco é brando no aspecto,
quando brinda em lençol de pano cru.

Por fim, o toque do laço
e para que o lenço realce, ao centro
o lance alongado do traço
e a legenda: frágil, leva gente dentro.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

MULHER E ALENTEJANA



A figura é religiosa e é profana,
como é sua fragrância costumeira,
se é um dom da natureza humana,
cheira a incenso e hortelã da ribeira.

Frágil, como mãos de costureira,
È, na sua essência, altiva, ufana.
Primordial e última trincheira,
ambas numa só, que a vida aplana.

A golpes de sol e lida humana,
curvada mais de músculo que de vontade.
E, à parte, doce – o mel é a verdade

toda! – que no auge da adiafa há-de
ser flâmula brandida à posteridade,
como exemplo de mulher e de alentejana.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

VIANAMOR



(Refrão)

O teu abraço é brandura,
o teu calor é um beijo,
quando meu corpo procura
todo o sol do Alentejo.

Após o trigo segado
fico mais perto de ti,
como pássaro encantado,
debicando aqui e ali,
sementes de amor e pão,
que saciam o desejo
e as fomes do coração
em Viana do Alentejo.

Bons Aires cuidem Viana,
seu chão duro de mármore,
por cada grão que emane,
cada fruto e cada árvore.
De tanto caminho andado,
romeiro de montes e fráguas,
quero o meu corpo lavado
no fresco das tuas águas.

Dá-me do que melhor tenhas
- se ainda houver ensejo –
quero das tuas entranhas
o sangue do Alentejo:
- uma quarta d’água fresca
por mãos de mestre talhada,
do sangue novo que resta,
e retorno à caminhada.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O FIM DO MUNDO



Sempre que se inscreve the end
na última
e mais sofisticada bomba,
não é o fim do mundo.

E não o é
quando a notícia cai
como uma bomba:
o inimigo apela à paz.

Não é o fim do mundo perder a corrida
e ouvir de pé
o hino estranho do campeão
até ao fim.

Perder as eleições
e cantar o próprio hino ao adversário,
não é ainda
o fim do mundo.

O fim do mundo
é tudo isto acontecer sem se dar conta.

O que não é o fim
do mundo.