segunda-feira, 9 de novembro de 2009

DOIS EM UM



- Não sejas maricas, arranca!
- Tem calma, pá, deixa ver se está tudo em ordem.
- Deixa-te de tretas, tens é miufa...
- Não é isso: se fosses tu a conduzir...
- Olha, olha, se fosse eu. Se fosse eu, verias.
- Está tudo em ordem, pronto.
- Vá, arranca, antes que a velha comece a atravessar a passadeira.
- Ainda não percebi a tua pressa...
- Ó pá, não é pressa, é genica. Agora é bem feita: hás-de esperar um ano que a velha passe.
- Não digas asneiras. Primeira. (2ª,3ª, 4ª, 5ª). Já estás mais sossegado?
- Passa-me esses empatas. Vai aí a pisar ovos.
- Falta pouco para sairmos da localidade, não te precipites.
- Quero ver! Por este andar, nem amanhã de manhã!
- Cá está. Vamos pela IP ou queres ir a corta mato?
- A corta mato? És parvo?!
- Vamos pela IP.
- Acelera, porra!
- Vamos a 120, para o caso de não teres dado por isso.
- Vamos mas é atrás dessa lata velha, e ainda por cima é uma gaja a conduzir.
- Está ultrapassada. Satisfeito?
- Se eu não falasse, ainda agora vinhas nas encolhas.
- Bolas!!!
- O que foi agora?
- Olha para aquela fila de camiões a seguir à curva.
- Então? Qual é o problema?!
- Não é um, são dois: os camiões e tu que não te calas.
- Já não digo mais nada.
- Isso. Amua, fazes bem.
-...
- (oh pá, uma tangente!) Já passou a birra? Viste como papei os quatro camiões seguidinhos? Foi canja. Não dizes nada?
- Não querias que estivesse calado? Não fazes outra.
- Tens é inveja, cala-te!
- Outra vez?
- Eh pá, não sejas estúpido. É uma maneira de dizer.
- Por que é que afrouxaste?
- Não viste a placa de 80?
- Valha-me S. Cristóvão! Só me faltava esta... vês uma placa a cascos de rolha e pões logo o pé no travão. Assim não ganhas para calces.
- Não sejas injusto: saímos há meia hora e já galgamos 55 quilómetros!
- Por este andar ainda te chamam o Schumacher da Alameda...
- Às vezes irritas-me. Gostava de te ver a conduzir à noite e com esta chuva miudinha, que no alcatrão é manteiga.
- Tudo te pica, gaita!!!

- Não, meu caro, tu é que não medes as consequências. Para ti é sempre estrada e o conta-quilómetros até era dispensável. É prego ao fundo e por aqui me sirvo...
- Erro. O volante fez-se para homens, não para meninas.
- Bonito! Além de alarve és machista!
- Erro novamente! Nunca ouviste dizer que o automóvel é o prolongamento do sexo?
- Prolongamento?
- Sim, o prolongamento. E que eu saiba o sexo feminino não é prolongável...
- Deixa-te mas é de preconceitos... Está demasiado escuro e chove a cântaros.
- Então continua assim, que havemos de lá chegar a lindas horas!
- Espera. O que é isto? Curva e contra curva para a direita. Não se vê quase nada. Parece um galho de árvore ali no meio da estrada...
- É uma sombra, menina Amélia...
- É? Vou passar-lhe por cima... ai!...



- Há feridos?
- Infelizmente, não.
- Infelizmente?
- Sim. Há um morto. Tentou contornar esta falha de alcatrão e só parou lá em baixo. Nem soube do que morreu...
- Há pelo menos testemunhas; alguém que tenha presenciado o acidente?
- Não. Só um morto. Viajava sozinho.