quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

PARÁBOLA (Do ano sem graça de 2011)


O cego tinha sede e bebeu da fonte.
Depois, por enxergar o sol, chorou
ao vê-lo despontar no horizonte
e ao negrume não mais se acomodou.


O surdo, para quem o leito cristalino
de água pura era somente um rio,
ali matou a sede e chorou como menino
quando ouviu da torrente o assobio.


O mentiroso, aos sorvos, tentou
saber também o que era aquilo
sem sede, não soube o que provou
e chorou lágrimas de crocodilo.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

DE CASTELO BRANCO, CONFESSO


Não sei que razões teria em 1997/98 (não recordo exactamente é o que quero dizer) para escrever este texto tão patético e assonante:


Há por aí pedaços de sol e de mim virados do avesso
alfinetes d’ama outros nem tanto a baixo preço
alguns a mais e mais ainda no começo


e há vinho que é bom e eu não conheço
azeite do mais fino e também espesso
bofetadas que são bem dadas e beijos sem endereço


há sonos em que apenas finjo que adormeço
temperaturas em que ora aqueço
ora arrefeço
muito banho-maria confesso
e há causas de que nunca mais se abre processo


há estátuas de pedra de bronze e de gesso
mil caminhos alguns vales e um cabeço
há por aí pedaços de sol e de mim virados do avesso
e se não há polícia a esta esquina é porque o não mereço

domingo, 25 de dezembro de 2011

NEM TAL SERIA


Há décadas que trago a vida
presa por um fio de sisal.
Chega esta trégua definida
e abranda, indulgente, é natal.


Custa que se farta o carrêgo
desta vida a andar para trás,
que me obriga ao desassossego;
da notável afoiteza de paz.


Pronto, vou deixar que não espante;
isto do natal passa num instante…

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

LASTRO ANCESTRAL


Quero lá saber se é nascente
ou foz a água em que me afogo:
quero é uma boia onde me assente
e deixe a dúvida para mais logo.


Se para ir ao fundo é bastante
não ter arte ou erudição de peixe,
ficarei onde já não me levante,
o corpo teime ou não me deixe.


Ou não, que o fundo não é morte,
é antes uma espécie de colchão
onde a alma, com alguma sorte,
sobe, vai à tona e dá-me a mão.


Morrer será assim o que consiste
em ir ao fundo e vir depois acima;
um raro carrocel em que subsiste
em vida, carregar a morte em cima.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

EM JEITO DE COMO FOI




Ontem foi uma tarde/noite muito calorosa e simpática na apresentação de Súbita Floresta.
Obrigado, Amigos!
Obrigado, João!

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

LANÇAMENTO/APRESENTAÇÃO DE SÚBITA FLORESTA

No próximo dia 21 (quarta-feira) às 18 horas, na Biblioteca Municipal de Castelo Branco, terá lugar o lançamento de SÚBITA FLORESTA, Enquanto durar a Eternidade.

O livro é editado pela RVJ, Editores e será apresentado por Carlos Semedo.

Aqui deixo o convite para todos os que me quiserem honrar com a sua presença.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

RIO DE MIM


É uma ponte, de ponta a ponta, digamos assim,
que em verdade não obriga a coisa alguma:
metáfora para dizer o que não quero de mim,
e acenar do outro lado: adeus! Em suma,
é como passar de cá para lá sem ter passado,
que para o efeito é não ter feito coisa nenhuma,
ficando aqui inteiro a pensar no outro lado.


Mas se não passar; se não tiver atrevimento,
então terei deixado a imaginação à solta
e sem pressas ou demandas doutro elemento,
com vagar irei até lá ao fundo e dou a volta.
Pode ser que o forçoso rio, de ponta a ponta,
se assoreie e leve o que não faz cá falta
e eu, por fim, não tenha que fazer de conta.

domingo, 11 de dezembro de 2011

REDACÇÃO (A PROFESSORA)


A minha professora
dá-me o mundo inteiro
em números e letras
em troca dos meus sorrisos
e desenhos de borboletas.


A minha professora
tem cabelos compridos
como uma princesa
e os olhos refulgentes
como a natureza.


A minha professora
é linda e eu gosto dela
e ela de mim
não tenho mais palavras
gosto dela porque sim.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

SILÊNCIO


No dizer das aves é que as palavras voam;
No dizer do sol é que as palavras ardem;
No dizer da água é que as palavras choram;
No dizer das árvores é que as palavras florescem.


No dizer todas as palavras morrem.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A CASA


Não mora quem morou antes,
antes mora quem não morou:
mora a memória que dantes
não se lembrava e mudou.


Mudou para outro lugar
longe ou ao pé da porta.
Mas se a memória mudar,
quem mudou não se recorda.


Recorda que em tempo viveu
longe ou ao pé da porta,
onde o tempo ao tempo deu
e a lembrança não importa.


Agora a casa está morta.

domingo, 4 de dezembro de 2011

PROPRIEDADES DA ÁGUA

A água torna puras as almas
e pedras grandes em pedrinhas,
por isso vê se te acalmas
no rio onde chapinhas.


Teus alvoroços e velas
não te auguram boas medras:
só se, esconso, o diabo ao tecê-las,
te benzer com água das pedras.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

(POR UM MILAGRE)


Desisti por isso da inconsequente empreitada
e assentei em coisas mais terrenas e reais:
onde até a transcendente vida airada
faz tempo que é mendiga ou pouco mais.


Porque é disso que os aduladores da esmola
esperam deste povo, eterno sacristão:
espinha dobrada a quem mata e esfola,
mas ai dele se não aspergido, estirado no caixão.


Não passa o camelo a agulha pelo fundo;
levamos nós um par de asas e passaporte,
banidos de contentamento deste mundo,
alcançando enfim o milagre depois da morte.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

POR UM MILAGRE


Um milagre é que me convinha, um qualquer:
daqueles com luz intermitente e em relevo;
não estes de pacotilha, mediáticos, fait divers,
pirotecnias que não dão mecha para o sebo.


Queria dos que extasiam até o mais pintado,
capaz dum argumento com princípio e fim,
em que eu, incitador, protagonizando o diabo,
erradicasse crápulas e vilões com um só plim.


Mas não tenho esse poder, não sou capaz,
e se o tivesse, podendo bani-los até à morte,
outros viriam lestos, estrelas de cartaz,
para os repor em dobro, tal é a minha sorte.

domingo, 27 de novembro de 2011

QUANTO DE MIM AUSENTE


Quase me sento, virado do avesso
e assomo a sombra de ali estar.
Quase, disse, que é avio sem preço,
ou sem posses para pagar.


Acentuo-me grave como àquilo
que julgo ser o meu assento:
reclinado sobre o banco, ao meu estilo,
e respiro para recobrar alento.


Assombração de mim, descuidado?
Não: as sombras são de mim feição,
que em tese dão um tom acinzentado,
mas provam o quanto de mim são.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

BORRÃO SOBRE A4


Quis dar cor a algumas ideias
que, mimosas, nas suas sete quintas,
não tardaram em ficar feias
ou fui eu que carreguei nas tintas.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A BANCA ABANCA


A banca
abanca
toma assento
à mesa do orçamento


dá razão
ao livro de razão
deve e haver
é seu dever


então denota
que de nota
não é demais
e pede mais


a banca rota
abarrota
no economato
ou morre ou mata


e diplomata
mata

domingo, 20 de novembro de 2011

UM PÁSSARO EM FLOR


Um pássaro em flor
perfuma o canto;
mitiga e, seja como for,
trauteia o pranto.


A beleza ameniza a dor
e enxuga o pranto;
mitiga e, seja como for,
pelo menos não dói tanto.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

AMATO LUSITANO


Haverias de sair para ser gente, gesta
imaculada deste povo crespo e arredio,
que de seu só sabe o quanto presta
se de si mesmo ouvir de outros elogio.


Deram o teu nome à minha escola,
fizeram dele mais coisas de aprender,
Amato. Mas sabe a pouco, cheira a esmola,
pelo muito que há ainda por fazer.


Em estátua tens a verdade nua e crua:
foi-te a vida de saberes e de degredo
e agora, quieto, que apontas para a lua,
há quem insista e te olhe para o dedo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

MEMÓRIA DE CASTELO BRANCO


Não foi tão diluviana a enxurrada
de há cinquenta anos, nem o tufão
foi coisa de mazela amargurada;
mas aguaceiro fraco também não…


É certo que esbulhou as avenidas
e arrebatou o coreto do passeio
mas, passado o susto fez despedidas,
e logo se dissipou, tal como veio.


Morreu gente, sim, e feridos houve
dos maus ventos em reboliço;
mas também houve povo que não soube
ou não se ateve, ou deu por isso.


Mal sabíamos que, tempo passado,
ressarcidos, haveríamos de ganhar
a polis pós-moderna, qual tornado,
trazendo entulho de volta ao seu lugar.


Se outro vento igual nos castigar,
( longe vá o agouro!) se bem não há-de,
mal já não fará, que nada há para levar,
nem restos de memória da cidade…

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

MEMÓRIA DA CASA ANTIGA


Uma fenda elegante e sinuosa percorreu o tecto,
desceu depois pelo estuque da parede antiga
e, sem memória ou traço de arquitecto,
em pouco tempo dividiu ao meio toda uma vida.


Na minha geração foi apenas um rabisco;
um ar de graça acima de qualquer suspeita.
Mas com os anos acabou por se tornar um risco
a que a família não podia estar sujeita.


Deixámos a casa. A vida tem destas partidas,
e em nova casa há mais conforto, é mais selecto.
Agora é a saudade das coisas mais antigas
que, caprichosa, faz lembrar a fenda no tecto.

sábado, 12 de novembro de 2011

UM VELHO SOM


Um som já velho, reciclado,
vira o disco,
não sei onde ouvi isto.


Fede. Velho e relho, insisto,
percorre o tubo enviesado
este som antepassado.


Que som este, estafado,
de notas falsas, um misto
de purgatório e Jesus Cristo.


Como a sensação do já visto:
na música o mesmo fado
e na letra o caldo entornado.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

P(r)O(bl)EMA GREGO

Jean Gouders, Cartoons




Aos novíssimos herdeiros das calendas
ainda remanescem lendas de pasmar:
os cidadãos viraram estátuas, encomendas
com promessa de Afrodite as transformar.


Este grego é um sábio e sabe-a toda,
querendo apanhar moscas com vinagre:
o povo vota e então, de forma cómoda,
faz batota e brada que é milagre.


De modo que me inteirei, enfim,
da obra prima do soberano cipriota,
cuja esposa fôra estátua de marfim
feita gente por milagre ou por batota.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

PARABÉNS, JOÃO!


O meu grilo
podia ser um bicho da seda,
um peixe pigmeu, um canário
ou outro qualquer bibelô vivo.
Podia até ser grila, mas não.
Não por ter três rabos
ou pela falta do colar amarelo,
nada disso:
é que a grila não canta e isso é essencial.


Ter um grilo não é assim uma estória simples:
todas as primaveras
o gozo que dá singular procura:
o apuro dos tímpanos,
a leveza do andar até ao buraco,
a inesquecível palhinha e depois aquela posição
cruel, às vezes por uma grila insignificante
ou a surpresa dum insecto desconhecido.


Se é cantador tem o destino traçado
(eis o fatalismo adoptado)
a gaiola dos antecessores,
a alface do dia em vez da serralha selvagem
e um lugar ao sol na varanda da frente,
pelo menos até Agosto.


Depois, as peripécias de sempre:
o incómodo da vizinhança,
a iminência de morte súbita pelos porquês
e as atormentações do João
ou as minhas tentativas de homicídio
sempre confessadas.


Admitimos o ciclo:
anualmente assumimos a derrota
conscientemente.

domingo, 6 de novembro de 2011

ANDARILHO


De mim vou tão longe quanto posso. Parto
sempre quando já não me acho graça:
mas não fujo; apenas dou a volta à praça
e depois regresso quando do resto fico farto.


Há dias em que me deixo, outros vou também,
(nem sempre consciente, que às vezes é errar,
julgar que é nosso o próprio caminhar.)
E encontro o meu equilíbrio neste vaivém.


Os caminhos faço-os de presente e de futuro,
se por acaso me encontro ali por perto…
Revejo-me solene, mas é quase certo
que não é a mim; que não sou eu quem procuro.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

TESTE PROJECTIVO


Que mais pode um homem desejar:
uma boca, um par de olhos cristalinos,
a brisa fresca vinda do mar,
ou n’aldeia despertar ao som dos sinos.


Que outro mal maior virá depois:
amordaçado e, de tanto ver, cegar,
não ter nas ondas senão maus lençóis,
ao rebate que os sinos hão-de dobrar.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

GENTE ILESA


A vida nem sempre é como se vê;
às vezes contradiz-se na aparência:
há dias em que a calma cansa, não sei porquê,
outros em que se chora a sua ausência.


Pior ainda é com a temperatura:
se o tempo aquece e o sol é um tição,
pede-se o frio. Mas se este vem e dura,
volta o apelo: quem me dera o verão!


É mau feitio querer sempre o que é diferente!
Mas como não ter em nós estes defeitos,
se somos o resultado de quem, exactamente,
nos compôs, em síntese, ao sermos feitos?

domingo, 30 de outubro de 2011

SORTILÉGIOS

A MÃE



O meu avô materno era como um pêndulo, não por ser relojoeiro, mas por se assumir como o umbigo da família. No dia 22 de Junho de 1953, debruçou-me, decidido, sobre a primeira urna que enxerguei, insinuando aos meus trezentos e quarenta e sete dias de natural sobrevivência, não a mim, ser aquela, incontestavelmente morta, a minha única e exequível mãe.


A TI CARLOTA



Contam que a Ti Carlota, fervorosamente católica, subia, solta, há muitos anos, as escadas da muralha (também sua casa), quando tudo ficou repentinamente escuro, e Satanás a esbofeteou violentamente ao ouvir o seu “credo, Jesus Senhor”. Morreu quase centenária e cega com esta recordação latente, quase verdadeira.



A ESCOLA PRIMÁRIA



Aos seis anos levei a primeira palmada sobrenatural às cinco da manhã. Já então tinha passado com o ferro quente pelas ceroulas de dormir ensopadas de mijo até aos joelhos. Creio que ultrapassaram um rosário as ave-marias avulsas que rezei. Depois foi a manhã mais bem-vinda enquanto durou a instrução primária.


MAGIA QUASE



Lembro-me daquelas cabras maltesas pelo abandono, que só por morte a tiro lhes reivindicavam a posse; dos corvos tão aparentemente estúpidos como negros, habitantes perpétuos das ilhas de Cabo Verde dos tempos coloniais. A seca permanente deixava o chão cor de barro e fendido. Por sorte, os bocados de madeira e os restos dos sacos de cimento da construção civil sobravam. Era isso o pasto e o repasto daqueles conformados animais.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

TRÂNSFUGAS


Não fujas
tu és todos os lugares
não te escondas
entre cortinados
que tu mesmo teceste
não finjas
desconhecer Setembro ou Novembro
que aceitaste
com argumentos contrafeitos
e que mais tarde sacudiste do capote
que não era nada contigo


dispara à queima roupa


verás o meu sangue ganhar terreno


ah a tua pressa
pode lá haver quem a denuncie!

Inédito, 1985

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

VOAGEIRO


É certo que voamos
consideravelmente
pela estética dos passos
e a teimosia da gravidade.


É certo que voamos
deselegantemente
pela genética falta
de um par de asas.


É certo que voamos
intermitentemente
pela congénita vontade
de ser como as aves.


É certo que voamos
deslumbradamente
pela fonética magia
das asas dum poema.


É certo que voamos
eternamente
pela patética comiseração
de imitar os homens.


É certo que voamos
hipocritamente
pela técnica apurada
mas muito baixo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

SENHORES DO NADA


Não é nojo e muito menos desprezo
o que sinto por esta relativa maioria.
Por esta e outras, correlativas no peso,
sinto a raiva que há muito não sentia.


O cinismo tomou-lhes conta da oração:
pregam de cátedra e com desdém,
órfãos de si mesmos, híbridos de geração
que não é gente, que não é ninguém.


Não adianta esmagá-los, as suas veias
não têm sangue. Morrem por combustão:
ardamos pois nos actos e nas ideias,
que eles esfumam-se como tiços de carvão!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

PÁTRIA OU LIXO


A pátria é um saco descartável
onde quem quer dela faz lixeira
e o certo é que o cheiro é desagradável,
pútrido, incómodo, intragável.
Então pode definir-se desta maneira:
A pátria é uma renovada estrumeira.


É mais que tempo de limpar
e tornar esta uma pátria asseada!
Conferindo os meios a usar,
(é de excluir a votação, dá azar…)
Aux armes, citoyens! Mão pesada,
o lixo já só sai à vassourada!

terça-feira, 18 de outubro de 2011

MAL TALHADO


Faltava um bocadinho assim para lá chegar,
mostrava entre o indicador e o polegar;
coisa muito pouca, daqui até lá é um ápice.
Logo a seguir vinha a novíssima burrice…


Tomou ofício de ministro com altas notas,
dos que prometem tudo e um par de botas
mas, ao contrário, dele nada se atinge ou herda
e em tudo onde põe a mão faz merda.


Mas não se pense que é obra do destino;
que tudo lhe foi azar, moléstia ou desatino…
Não, essa é a sua capa, o seu disfarce,
que estas malfeitorias têm conteúdo de classe.


Assim deixo a questão para pensar de novo:
faz-se a folha ao mal talhado ou troca-se de povo?

Promo Altitude FM by Sepulveda

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

DANTES

Antes de correr, andava;
antes de andar, dormia;
antes de dormir, corria;
antes de correr, andava;
antes de andar, sonhava;
mas isso era dantes…

sábado, 15 de outubro de 2011

NOTAS SOLTAS


Perverso é procurar
o mar num verso;
o inverso
é se o verso naufragar.
Mas se de tanto porfiar
der à costa, controverso,
está no verso
e está no mar;
é face e verso.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

DIÁLOGOS CANINOS


CÃO POLÍCIA :


-Travesti – de gatas
tem tal perícia
em quatro patas
o cão polícia
.
CÃO LADRÃO:


Béu – béu disse o cachorro,
se não digo morro.
- Ão, ão refilou, adulto, o cão,
somente eu ladro ão.




CÃO CÃO :


Vida de cão
é um caixote de lixo;
não é luxo, não,
coitado do bicho.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

DIÁLOGOS CANINOS


Bem te entendo, amigo cão,
o discurso é claro e nada omisso;
não és como quem dá opinião:
coisa e tal, pão com chouriço.


Bem te entendo, amigo cão,
o que os teus latidos pregam,
não és como os de outra condição,
que falam bem mas não m’alegram.


Bem te entendo, amigo cão,
dizes com um gesto de focinho
o que muitos, por apta opinião,
rebebéu, pardais ao ninho.

domingo, 9 de outubro de 2011

POR UM SÓ MOMENTO


Por um só momento quero ser
o odor moribundo da cera lentamente
derretida
e em plena procissão vestir
a pele dum deus vermelho e alquimista
que, sobre a finura da custódia,
solene, para que me sintas mágico;
mágico, para que me sintas o hálito em chama,
te iluda o cântico
e, enfim, possas caminhar de pé.
Por um só momento quero duplicar-te
frente a frente,
para que chores a tua alma
subaproveitada.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

OS DIAS DESCONTADOS


… eu vos digo que antes passariam o céu e a terra do que passaria uma só letra menor ou uma partícula duma latra da Lei sem que tudo se cumprisse.
 Mateus




Inesperadamente, a marca
indelével do destino
soou como um badalo
chocalhando-me o cérebro.


Nota oficiosa
-aos cidadãos atentos


O próprio locutor, notou-se,
Compreendeu:
A catástrofe é iminente e universal.


A crise
o petróleo
o dólar
a crista de altas pressões
e, se necessário, o estado de sítio.


Só por milagre será evitado
O agravamento dos preços ao consumidor.


Para evitar mal entendidos, a
a ordem pública,
a ordem pudica,
a ordem pura
e demais ordens de serviço
serão mantidas.




Deus dará.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

NOTA

Três apontamentos “históricos”.



O meu actual vagar para estas andanças, permitiu-me “descobrir” três poemas (dois mais um)


que partilharei convosco sem me alongar muito mais em considerações dispensáveis.


Todos eles datam do princípio da década de 70 (do século passado, pois!)


Se os dois primeiros são inspirados em leituras de Nietzsche (quem não leu o filósofo “pirotécnico” do século XIX?); o terceiro é um desmentido a propósito do nome deste blogue, que eu mesmo disse ter origem no título do meu livro homónimo editado em 1983: reponho assim a verdade, dizendo que Corpo de Poema existe nos meus papeis desde 1970.


Publicarei os três poemas, começando por corpo de poema, com a periodicidade habitual: quarta (hoje), sexta e segunda-feira.

CORPO DE POEMA


Dá de ti
o corpo desnu
dado
sem amor
dacar
o grito
nem amor
tecer
o golpe
de rins


dá de ti
o corpo
salivado
amor
i
bunda
pomba
líquida
um e outro
lado


dá de ti
o corpo
amor
fina
derme
do teu ventre
sem suar
sensual
mente.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

DRAPEAUX ROUGES


Tem pelo menos uma coisa boa este Outono:
o inconformismo dos plátanos, a folha solta;
recusam a morte sazonal; “a voz do dono”,
e empunham bandeiras vermelhas de revolta.


Efabulo. Pois as pobres árvores, já enxutas,
nada pensam. É o seu ciclo; a sua essência.
Mas a vida faz-se de etapas e de lutas:
compõe-se de mudança e resistência.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

POEMA COM UMA QUEDA LIGEIRA


A morte teria sido um exagero
ou pelo menos uma facilidade escusada, prematura.
É verdade que havia o sangue vazado dos joelhos
deitados abaixo, coalhado nos buracos da terra e nas frinchas das pedras,
o fémur fracturado, coisa pouca, e o hematoma
que lhe escureceu as nádegas até às lágrimas
mas nada comparado com os golpes fatais,
que matam logo ali ou adiam o último suspiro
para quando já se pensa que tudo não passou dum susto.
Finalmente podia respirar de alívio
por não ter ficado paraplégico ao saltar a vedação da quinta,
como a si mesmo tinha prometido,
caso fosse surpreendido a roubar fruta para comer.


Afinal a morte, como a fome, só acontece da cintura para cima…

terça-feira, 27 de setembro de 2011

COISAS DO ARCO-DA-VELHA


Ele há coisas do arco-da-velha;
coisas da velha sem arco
e coisas do arco sem velha.
Ele há coisas que já estou farto.


E a velha criação resulta:
o arco arredonda a velha
e o que sobra é a pulga
abstrusa atrás da orelha.


É resignação que me aconselha?
Ele há coisas do arco-da-velha!

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

UM CERTO ROMANCE


De tão pueril e casta,
mais esperta do que culta,
depressa se fez madrasta
e virou mulher adulta.


Não o digo por espanto
nem sombras d’amiração,
que tampouco sou um santo
ou falho de compreensão.


Digo-o por contrição
e as penas me sejam brandas
(impulsos do coração,
que o amor faz em bolandas).


Casta e pueril, como disse,
pareceu-me a alva flor,
quer ela chorasse quer risse,
em tudo eu via amor.


Dentro do peito guardava
recatos mil por tesouro,
não de fel, pois pensava:
-longe de mim vá o agouro.


Tudo efémera ilusão,
oásis de fruta e de mel:
quando o amor é paixão
da carne fica só pele.


A tempo não consegui ler
seu ar pueril e casto
e tive então que aprender
à custa do próprio canastro.


Lá vingou o seu conceito
de moça, profanada em fúria,
que o mais que tinha no peito
não era amor, era injúria.


Não era assim nem assado,
mais esperta do que culta.
No fim, fui eu o culpado;
eu é que fiquei com a culpa.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

VERSOS CARECAS

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

SONETO PERVERSO


Vai ser bonito quando chegares
e vires as palavras do serão:
deitaram-se às rimas, aos pares,
como se agita a fé em procissão.


Por fim, era já mais o desnorte,
batendo a via sacra em arraial,
de pavio aceso, valha a sorte,
velavam um poema artesanal…


Afinado o coro metricamente
- ‘inda obra tosca, inacabada –
que de ti era oração independente.


Hás-de ver, poesia, a abençoada
lira, a um só tempo ateia e crente,
faz chorar as pedras da calçada…

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

SOBRE O QUE É INSOSSO


Há gente que é como as aspirinas:
não faz bem nem mal, qual enfeite.
Eu trato-as assim como às lamparinas;
dou-lhes meia d’água, meia de azeite…


Quase nunca enchem, nunca, quase,
tal como os alcatruzes no vai e vem,
como a lua sempre na mesma fase,
“é morto ou vivo, o que é que tem?”


Não se confessam, não dizem nada;
de falinhas mansas, mordem p’la calada.