quinta-feira, 31 de agosto de 2017

PÁTRIA


As brumas então cantadas
de pé, na escola, não eram
nuvens, mas palavras cifradas,
o que afinal nos deram.

Se era cantado era doce:
éramos demasiado pequenos,
eu julgava assim, fosse o que fosse,
farófias, do mal o menos…

Era porém memória espessa,
flagelada, onde assentava o destino
- de todos nós? Homessa! -
Não era cantiga, era o hino.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

PARDAL



O admirável pardal,
que sem andar não se atrasa,
faz ninho no meu quintal,
ganha o céu num golpe d’asa.

Pula, gracioso, saltita
e, sem se cansar jamais,
torna, esvoaça, debica,
que o primeiro é dos pardais.

Cinza é a cor; não a vida,
para ele prova de fundo,
dia a dia, sem guarida
ganha a rua e ganha o mundo.

domingo, 27 de agosto de 2017

SOBRE O PÃO


Ferra o sono o padeiro
cansado, durante o dia,
mas pão há o dia inteiro,
fresco, à venda na padaria.

Quem puder ferrar o dente
no pão (nosso) de cada dia,
pela hora do sol nascente,
há pão quente na padaria.

O pão é diário e persistente,
tão pertinaz como a fome
e contradição evidente,
excepto para quem o come.


sexta-feira, 25 de agosto de 2017

SOU UMA ÁRVORE


Sou uma árvore frondosa e viva,
não ardida. Das que não suplicam
quando estendem os ramos. Altiva,
acolho as aves que em mim nidificam.

Hei-de trepar as nuvens e o vento,
chegar ao sol sem me queimar.
Jamais me ouvirão qualquer lamento:
sou uma árvore, vivo do ar,

da água e da luz que me alimentam
trepam as raízes lá do fundo.
As minhas leis não se decretam:
sou uma árvore e todas as árvores do mundo.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

TRAJE DE NUDEZ


A nudez é um singelo vestido
natural e de tão patentes formas,
que a simples venda do tecido
obrigaria a rigorosas normas.

Normas, porém, são o que são,
e é bom de ver já o aparato,
mercê das artes de corrupção,
luxuosas vestes expondo o trapo.

Mas os moralistas, não faltaria
esconderem de vergonha as caras,
que por pudor nos meteria
em camisas de onze varas.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

NEM SEMPRE


Aposto que hoje me esperavas
coberto de rosas, perfumado,
com um enorme chapéu de abas,
lenço e colarinho engomado.

Aposto que hoje me esperavas,
sorrindo de orelha a orelha,
prazeroso e mandando às favas
rancores e tudo o que se semelha.

Aposto que hoje me esperavas
desdenhando de tudo o que tenho:
terra seca e ervas bravas…
Não esperes, que eu hoje não venho.

sábado, 19 de agosto de 2017

FIGOS


Não me livro de castigos,
sorte a minha, que é tão pouca:
uns tantos comem os figos
e a mim rebenta-me a boca.

Há os lampos, de S. João
e ouriços da piteira,
uns são legítimos, outros não
têm eira nem beira.

Conduto, de quem tem
outras fomes, é como digo:
tudo o que nos sabe bem
é norma chamar-lhe um figo.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O BEBÉ E O CÃO


Ladra o cão sem razão,
o bebé que não acorde,
o menino dorme e o cão
por ladrar não morde.

De ambos é condição:
um ladra, outro dormita,
as coisas são como são
haja quem o não admita.

Mais tarde ou mais cedo,
O bebé acorda e chora,
o cão amua de medo,
é a vez da criança agora.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

UMA CAMISA À VARANDA



Uma camisa à varanda
- camisa cintada aquela -
e a dona por onde anda,
que não vejo, onde está ela?

Esvoaça alegre a camisa,
a meus olhos, num vaivém…
até parece que me avisa
da roupa que a dona não tem.

Vejo na corda estendida
o corpo fino da donzela
em forma de tara perdida
mas da dona, nem sinal dela.

domingo, 13 de agosto de 2017

A MÚSICA DO BEIJO


Quanta música há num beijo,
quanta área condensada
em movimento de solfejo,
dança lenta e ensaiada.

Os sons mudos misturados
da delicada sinfonia
são os beijos que são dados
de improviso, em sintonia. 

E baila, e baila sem parar,
beijo que é dado não cansa
(uma pausa para respirar…)
E siga o beijo, siga a dança.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

DOIS PAÍSES, DUAS CIDADES

Aguarela de Jacek Krenz

O olhar desvenda terras de Espanha e perde-se a vista. Melhor: no parapeito do Miradouro respira-se a cidade com que dormimos debaixo da almofada e sempre nos conforta quando, despertos, a contemplamos a cada manhã.


Em S. Gens sinto-me em casa:
fragrâncias, palácios, jardim…
o Miradouro é o golpe d’asa,
que espreita dentro de mim.

Aqui, exposto à claridade,
o casario que se emaranha;
mais além nasce outra cidade,
e lá longe adivinha-se Espanha.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

CASA MORIBUNDA

Aguarela de Jacek Krenz

Contigua ao Arco, onde se sentam as duas mulheres, há uma velha casa em ruínas. O que resta dessa casa é a dor que sinto ao passar pelo Arco do Bispo.


Esconde-se a casa na muralha
(encostada ao arco, por esmola)
além,  a Praça, o museu, a escola
e aqui se encobre o que atrapalha.

E que vergonha tem a pobre casa
andrajosa, como indigente criatura,
três barrotes pregados à cintura,
o que já não adianta nem atrasa.

Solene, de emblema na lapela,
este sem mancha nem mazela,
evoca ainda o bispo padroeiro.

O venerável arco, sobranceiro,
faz pose ao turista a tempo inteiro,
a casa é que ninguém quer saber dela.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

COLCHA BORDADA

Aguarela de Jacek Krenz

Perante o Museu Tavares Proença Jr, só me ocorrem as colchas de Castelo Branco. E mais não teço.


A minha terra dava uma colcha bordada
a fio de seda sobre linho, como aguarela,
mostrando pássaros cantando a alvorada,
com lágrimas no peitoril da janela.

E as bordadeiras, que não as há de nomeada?

E árvores e ramos em arcos de festa!
Branda a cor de fundo, de humilde travo,
depois o grito exuberante que lhe empresta,
em vermelho viçoso, um elegante cravo.

Onde escondem elas as suas mãos de fada?

Estão no fim as meadas, são os últimos remates.
Lugar ainda para um pássaro preto, austero,
um taciturno cavaleiro, empoleirado bonifrates,
todo ponteado com amor e esmero.

Atrás dos panos se descobrem os fios à meada
e tudo o resto é colcha, colcha e mais nada.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

RUA DE STA MARIA

Aguarela de Jacek Krenz

Mil vezes por mim percorrida. Memória de cheiros a mesas postas e namoros recém- conquistados. Ultima rua de dentro, de dentro do coração.



Pelo sim, pelo não, bom dia!
pareceu-me ver-te à janela
e por pouco me confundia
nos tons desta aguarela…
És tu que tão bem conhecia
ou lágrima ao canto da janela
na rua de Santa Maria?


domingo, 6 de agosto de 2017

A JUNTA

Aguarela de Jacek Krenz

Castelo Branco é a única cidade europeia, Capital de Distrito, que administrativamente se constitui de uma freguesia apenas. Além disso, a freguesia abrange ainda as aldeias de Lentiscais, a cerca de uma dezena de quilómetros da cidade e Taberna Seca a cerca de 7 Km mas em sentido oposto ao daquela.

Da Granja só o nome,
que alfaias e sementes se foram com as crises
e há muito que não consome…
Mas por bem ficaram as raízes.

Tem um lugar de penumbra, qual quimera,
com modéstia, a multidão conjunta,
à vez alegre, solidária e austera
e, numa só palavra: a Junta ajunta.

sábado, 5 de agosto de 2017

CAMPANÁRIO

Aguarela de Jacek Krenz

Que fazes campanário?
Que silente o teu destino!
Sem mercê dum breviário,
nem o rebimbe de um sino.

Canta o galo a natureza
e por nós vê se afinas
nas vésperas, com certeza
e se for preciso, matinas.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

CIDADE

Aguarela de Jacek Krenz

Permanece, a espaços, a matriz da Cidade. Longe é certo. Mas tranquila e luminosa, como sempre.


Se te conheço, terra mãe e madrasta…
como não, se és tudo quanto basta
desde o berço à campa rasa…
e o segredo de me sentir em casa.

Desde menino, mas com o sol de fronte,
sempre te tive como horizonte:
alva, luminosa, e pouco dada a sobressaltos,
a não ser dos que te auguram saltos altos…

Com a Torre sempre além à espreita,
uma por outra vez com desfeita,
nem me lembro que há por aqui nova empresa,
que o tempo só me traz memórias da Devesa. 

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

VIELA DOS SABORES

Aguarela de Jacek Krenz


A Rua da Figueira parou no tempo. Só a restauração humilde, de altos e baixos, a tem mantido viva.


Em plena baixa uma viela,
da figueira nem um galho,
quase ninguém dá por ela
a não ser por ser atalho.

Pode ser que boa estrela
seja enfim a resposta:
que assomes de vez à janela
enquanto a mesa está posta…

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

ARRABALDES, ARRABALDES!

Aguarela de Jacec Krenz

As invasões francesas do princípio do século XIX arrasaram a Castelo Branco pobre e atrasada. A população local era de cerca de 3000 habitantes, equivalia a 10% dos militares ocupantes. Os arrabaldes foram a presa fácil da soldadesca.


Gritam os degredados. – A nós nos valham! –
E não havia ajuda que chegasse, que proveito houvesse!
- Aos de cá, que nos malham!
(apelavam) Como se aprouvesse, como se aprouvesse.

Secou depois a ânsia, a aflição
feito o largo e uma cruz em granito.
O cruzeiro é o de S. João,
o resto é o silêncio, jamais se ouviu outro grito…

terça-feira, 1 de agosto de 2017

CASTELO

Aguarela de Jacek Krenz

Já tudo foi dito sobre o Castelo. A aguarela mostra o que se vê quando o visitamos. Mas do Castelo vê-se toda a Castelo Branco…


Do Castelo vê-se o mar… Não vê?
Então é um mar de casas, e coisas outras mais à frente
Vê-se o que se quiser ver, não é?
É Castelo Branco aos pés, ali em frente.

Templários houve que o puseram em pé,
os demais o vão compondo de atamanco,
se uns e outros o fizeram de boa fé
não sei, sei que é Castelo Branco.

Às mão cheias levaram blocos de granito,
para tudo o que era casa ou ponte,
ditosos construtores de pecúlio aflito.

Hoje o que se enxerga de fronte
é Espanha, a cordilheira do horizonte
e atrás remanescências do infinito…