quarta-feira, 23 de novembro de 2022

O TEMPO DA POESIA


Naquele tempo a poesia poisava nos laços

das raparigas até serem adultas

e desfazerem as tranças;

vinha com o cheiro do leite, comprado à porta,

que perdurava na rua durante horas;

trazia os pássaros até às nossas pequenas mãos,

mesmo quando não tinham fome;

rebolava pelas encostas dos montes

e misturava-se com a palha e a terra, e magoava-se.

Depois passou para o domínio dos poetas;

escreveram-na em livros e pintaram versos nas paredes

para a devolver às ruas da amargura.

Há cachos de versos ainda debruçados nas varandas,

mas a poesia nunca mais foi a mesma.


 

terça-feira, 15 de novembro de 2022

RUGAS


Rugas são folhas soltas, linhas de delongado fadário,

para serem lidas ao serão. Fora disso são somente pregas,

retalhando o rosto, inexoráveis, a golpes de calendário,

histórias escritas em braile, crespas, rudes, cegas.

 

Ao contrário do que se diz, não se prova o seu proveito;

ninguém encomenda rugas, ninguém as quer no rosto.

Está provada, sim, a sua voz; gritam, e com efeito,

estão para as faces envelhecidas como o vinho para o mosto.

 


 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

RESGATE

 

Escalo-te os lábios de sol a sol, de sal em sal,

onda que no vaivém se agiganta e logo espraia,

o pretexto dos lábios, a onda, e logo o areal,

as conchas, os búzios. Por fim a imensa praia

 

de areia fina, manso lençol de pura seda…

Ah, a minha sede de náufrago agora resgatado

por um beijo de sal, de sol, de súbita labareda,

vivo em paz e em sossego só por te ter beijado.

 

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

AS EMENDAS


Quando um dia dei por mim,

já compunha rimas em versos,

digo versos ou coisa assim,

que depois, juntos ou dispersos,

se fizeram à vida, cada qual por si,

a tal ponto que hoje em dia

já não me pertencem, já os perdi

e há até quem lhes outorgue a autoria.

 

Mas regressam quando lhes dá gana,

lambuzam-me de beijos, como gatos,

e quase me sufocam, os filhos duma cana!

-pai, pai, dizem – vai buscar os pratos;

temos fome de metáforas e de rimas,

quem nos faça festas como tu fazias…

E eu, que remédio, acolho as obras primas:

rais partam as rimas, rais partam as poesias! 


 

terça-feira, 18 de outubro de 2022

BONECA DE TRAPOS


Se tivesse que escolher – tarefa ingrata – de toda a traquitana

seria, com vantagem, a boneca de trapos a minha eleita:

carão de rosas rubras, pobre remendada, qual franciscana,

saia de chita garrida e rodada de mil farrapos feita.

 

A boneca de trapos era um primor. De uma blusa fininha,

pendia um braço arrancado, faltava-lhe uma sobrancelha

por excesso de amor. Foi sempre assim até ficar velha. 

Digam o que disserem, a boneca era linda porque era minha.


 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

LUZ E SOMBRA


Como vou dizer-te que os braços são asas cadivas,

se os teus olhos, estrelas antigas, estão ausentes?

Morto é o silêncio; a natureza é o som das coisas vivas

onde todos os gritos e penas estão presentes.

 

Não sabes onde mora a luz e que tem isso a ver 

com a sombra? A luz e a sombra já não são paralelas;

são cortinas de pano cru para o que der e vier,

de cretone, de cambraia, tudo dependerá das janelas. 


 

terça-feira, 11 de outubro de 2022

CHORO DE CRIANÇA


As lágrimas das crianças não têm uma ordem definida:

a regra é que possam ver-se derramadas, copiosas,

de resto, as primeiras não são como as que virão em seguida

e as que vierem depois são de sono, repetidas, melosas.

 

Depois de enxutas, as pálpebras colam, que bom é o braço

da mãe. Logo vem um par de asas, um pássaro enorme

e o rosto da criança voa (é um anjo) a sono solto no regaço,

que importam agora as lágrimas, que importam? O menino dorme.


 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

A GUERRA


 

A guerra tudo devora; nada é à prova de bala neste mundo:

esmaga os ossos, a carne e as sombras que projecta.

O seu rosto é o pó e a cinza, restos de sangue imundo,

no prometido lugar azul uma mancha viscosa e preta.

 

Até hoje, nenhum soldado ganhou uma guerra. Os generais

são os vencedores em todas elas: coçam-se, riem do povo,

exibem os galões e os dentes escovados nos telejornais

e falam de coragem, de valentia alheia feita de sangue novo.

 


 

domingo, 2 de outubro de 2022

À QUEIMA-ROUPA


Uma bala nunca vem por bem

e se apontada na nossa direcção,

nada a desvia ou detém,

de fingido afecto toca-nos o coração.

 

Uma bala nunca vem por bem,

galga o espaço, imita um assobio

e se nada a desvia ou detém

cumprirá a sina da pólvora que a pariu.


 

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

ÚLTIMAS NOTÍCIAS


O que sabemos, o pouco que sabemos

é que uma pomba azulada, mais para o cinzento,

foi encontrada num descampado da mesma cor.

Os órgãos de comunicação já informaram

e deram pistas do que pode ter acontecido.

Mais do que isto nada se sabe:

é uma pomba azulada, mais para o cinzento,

que foi encontrada num descampado da mesma cor.

Muitos falam do assunto; dão a sua interpretação,

mas nada acrescentam ao insólito acontecimento.

A especulação sobre o que leva uma pomba

àquele estado num campo em estado igual

começa no instante em que a notícia se fez à luz.

Há os que se atêm à cor da pomba – que é azulada,

mais para o cinzento, que foi encontrada

num descampado da mesma cor – é o que dizem.

Mas vieram depois os iconoclastas a contestar

aquela imagem degradante da pomba e do descampado,

os negacionistas, a par daqueles que acreditam em tudo,

os depressivos, os aventureiros e alguns palhaços,

que tornaram a notícia insuportável.

Não tive, por isso, outro remédio que não fosse pegar na pomba azulada,

mais para o cinzento, encontrada nem descampado da mesma cor

e deitá-la no lixo. Cheirava tão mal como a notícia.


 

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

IDENTIDADE


Se tudo tivesse um rosto, que o olhar denunciasse

um sorriso; que a boca se entreabrisse e beijasse;

e que estremecesse a um qualquer desacerto…

Ah, e se também tivesse a alma ali por perto,

 

por mais lívido que fosse, se desse a face,

era bem capaz de me comprazer, se me desenganasse,

e eu pudesse ver, e me valesse num aperto,

mas nada de olhar fixo e sorriso forçado tipo passe.






 

terça-feira, 16 de agosto de 2022

VÉNUS ENVELHECIDA



O rosto marcado pelas rugas indesejadas,

não porque te desmereçam, ficam-te bem,

são sinais e os sinais são células amarguradas

que a longa vida expõe por inexorável desdém.

 

O mesmo digo das varizes, dão-te um ar maduro

e traçam nas tuas pernas curiosos arabescos,

quem sabe se engodos do passado ou do futuro,

sejam imaginação na estatuária ou inocentes frescos.

 

Definham as peles e as tranças, já matizadas,

pendem nos ossudos ombros, outrora de marfim

e eu que tudo enxergo, em tudo vejo águas passadas,

vou dando conta que todas as mazelas estão em mim.

 

 

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

quinta-feira, 28 de julho de 2022

PÉ DE CÃO



Pé que avança e recua

subo ou não subo a rua?

Pé ante pé de pé chato,

devagar, com pés de lã,

por tropelia malsã

quem não partia um prato.

 

Pé de porco, coentrada,

pé de dança ensaiada,

pé de cabra de ladrão,

o pé de Vossa Senhoria,

massajado e pele macia…

Mas jamais um pé de cão.

 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

AQUI HÁ GATO



O gato não foge, sou eu que o digo

vê quem passa e recolhe

ao seu lugar de sem abrigo.

 

Por condição não escolhe

o lugar por castigo,

a gato pobre ninguém acolhe.

 

O vidro quebrado é o seu postigo

e para quem o olhe

é gato vadio, não sou eu que o digo.

 

domingo, 19 de junho de 2022

SEMPRE EM PÉS


Pé de salsa pede valsa

avança o pé de dança

e a bailarina descalça

pé ante perde esperança

 

pé leve que lave o pé

ao de leve pé rapado

pé de meia é que não é

pé de atleta medalhado

 

pé de chumbo vadio

sete pés por sua vez

caminhando ao desafio

é pé de cabra o maltês

 

de pés direitos fica dito

e pés quebrados muitos

sempre de pé firme e hirto

tudo menos de pés juntos


 

segunda-feira, 13 de junho de 2022

MEMÓRIA


Secos, secos, amargamente secos,

os rios que me corriam na memória.

Às vezes o sol parecia mergulhar comigo;

às vezes o sol e a água eram a mesma coisa.

Assim, tive de abandoná-los,

para o sol deixar de me queimar as entranhas

e a água me invadir e voltar às correrias

de pedra em pedra,

roçar os salgueiros das margens e levar-me,

folha seca, até à foz.


 

terça-feira, 24 de maio de 2022

UM VERSO SURREAL


Um verso surreal desconversava

para quem o queria ouvir

e quanto mais explicações dava,

um dia destes havemos de lá ir.

 

-Impossível, berrou o verso alterado,

isso não faz qualquer sentido,

não sou lá visto nem achado

e o mais certo é ser excluído.

 

Feitas as pazes, o surreal entrou no texto.

Primeiro a medo e mais tarde contrafeito…

- Ficas num verso mudo, dentro do contexto

e que te faça muito bom proveito.

 

Amuado, a um canto da improvisada estância,

pergunta aos demais e nenhum lhe responde:

aqui ninguém me dá qualquer importância;

posso ir lá também, mas aonde, aonde?


 

sábado, 14 de maio de 2022

AVENTURAS DE UM PARDAL


Um pardal entrou-me pela janela,

assim num volteio ou golpe d’asa,

encarou-me e voltou a sair por ela

por não saber que estava em casa.

 

Furtivo, a explorar a minha ausência,

parceiro de migalhas a todo o custo,

mas nem um miolinho de pão, paciência,

e nem eu nem ele ganhámos para o susto.


 

sábado, 23 de abril de 2022

ABRIL DESCONCERTANTE

 


Estão aí?

Queria dizer-vos uns versos sobre Abril.

Posso?

Serão ainda capazes de ouvir até ao fim?

São demasiadas perguntas, bem sei,

mas é só porque estou a evitar ser maçador,

complicar o que é simples

e sobretudo sem ofender pessoas de bem.

Além do mais há coisas que não se devem dizer,

não é? Entre quatro paredes, vá que não vá,

mas publicamente convém que nos autocensuremos.

Só para não criar mal entendidos, claro.

Os versos que vos queria dizer

também não têm aquela importância de maior.

Feitas as contas, calaram o que outros por vós fizeram

e por cá sempre me disseram que coisa mal ganhada

água a deu; água a levou.

Os versos que vos queria dizer sobre Abril

são assim muito simples: façam outro, se forem capazes;

este está cheio de erva daninha e cravos poucos restam.

Além do mais, o que é de Abril não floresce em Novembro,

como vos contam aqueles de pesados saberes.

Abril é o futuro com um cravo vermelho na mão, ouviram?

Isto não é uma novidade; é apenas para lembrar,

não vá morrer-vos na memória o que definha nas palavras.


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

DO POUCO QUE SABEMOS


Como bem sabemos a Lua não dorme:

passa as noites em branco, faz meia

com a madrugada e, se por instantes some,

é por algum anjo descalço que ali passeia

e se interpõe, cuidando que é transparente.

 

Os anjos andam descalços como bem sabemos:

têm asas com penas e muitas penas desasadas.

Tudo somado são eles, nem mais nem menos,

que trazem a Lua por nuvens mal paradas

dia e noite, com sobressalto para toda a gente.

 

As nuvens amedrontam do nosso olhar para elas,

que não são, como sabemos, aterradores castelos.

Abrem as cortinas, mas não são senão janelas,

ou melhor, são do céu à terra, viajantes paralelos,

que tanto levam sumiço como entornam de repente.


 

domingo, 30 de janeiro de 2022

ÀS VEZES UM MAR


Há dias em que um mar em mim se revolta;

outros, em que adoça como um favo de mel…

Há dias em que o mar que invento à solta

não é mais que um rascunho em papel,

 

seco, sedoso embora, mas seco como palha.

Banha-me falsamente, cobre-me de iodo,

faz-me naufragar quando calha

e atira-me contra as rochas de mau modo.

 

E o mar sou eu, quase nunca navegável,

à vez revolto e calmo; denso e transparente,

que tanto pode sublevar-se como ficar estável,

próprio de sermos mar e sermos gente.


 

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

PÁSSARO EM CANTO


Canoro

o pássaro encanta

e eu adoro

o que ele canta

 

sem partitura

canta de improviso

cada aventura

sem aviso

 

maestro de si

e de mim que o imito

do-re-mi

e repito e repito

 

o pássaro encanta

é ave canora

mas eu não sei se canta

ou se chora

 


 

sábado, 1 de janeiro de 2022

DAS PALAVRAS


Gosto da palavra

sem mente como

brisa

breve

bravo

gosto da palavra

semente porque

nasce

cresce

vence

gosto da palavra

somente se me

ocorre

corre

e morre

nem tanto se

mente