segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

A DE VERSO



Esta manhã tive um estranho encontro comigo,

como se não nos víssemos há anos.

Ou pior ainda, como se não nos conhecêssemos.

Era muito mais novo e tinha um sorriso tímido,

talvez duvidoso, a adivinhar o futuro.

Parti do princípio que a minha vantagem sobre ele

bastaria, excepto as pernas, que fraquejam agora,

mas isso não vinha a propósito.

Disse-lhe o que é costume nestes encontros:

Tens um aspecto magnífico, que fazes por aqui

e surpreendeu-me a sua resposta:

tenho estado onde me deixaste da última vez;

tens passado por mim ao longo dos anos

sem te aperceberes e agora, que as pálpebras

te vão pesando, queres abrir os olhos para mim

e demais memórias sem regresso nem remédio.

E a minha teimosia em viver vai caminhando

Inexoravelmente, até onde o Sol finge caminhar também

entre o céu raiado e o espelho do mar.

 

domingo, 17 de dezembro de 2023

ESTÁ DITO



Restam-me pétalas, que tudo é graça,

e palavras nem uma só que valha a pena;

muitas delas caíram em desgraça

outras, pelo uso, estão de quarentena.

 

Não, não tenho mais palavras para dar;

tenho flores, que atiro das janelas,

com vantagem, para quem as apanhar:

não as leva o vento e podem ficar com elas.

 

domingo, 10 de dezembro de 2023

AINDA O OUTONO


O céu de incerto cinzento é o que me resta

das anosas videiras do quintal.

O outono levou-lhes as folhas e gavinhas mortas

e eu tenho saudades da verdade das uvas,

não desta alheia casta de refulgentes estrelas,

sempre prontas a azedar o vinho novo.


 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

A NUVEM


Uma nuvem veio hoje visitar-me.

De pequeno porte, tímida e já chovida.

Vinha por isso enxuta e acomodou-se a um canto

como um pedaço de algodão doce

perdido pela criançada.

Fugia das nuvens negras, da guerra,

com medo de ser confundida e trespassada

por uma qualquer bala assassina,

dessas que enchem o mundo de sangue

e de lágrimas e de valas comuns.

Estava claro que esta nuvem era uma refugiada

do céu, onde também se tornou perigoso viver.

Deixou cair uma lágrima, coisa sem importância,

e lamentou a sua condição de nuvem seca,

a quem o mundo extorquiu toda a água da sua vida.


 

domingo, 3 de dezembro de 2023

CARREGADOR DE INFORTÚNIOS

Fardos, muitos sacos cheios

de nadas, valendo duas por uma,

não contando os sacos meios,

metades de coisa nenhuma.

 

Redimido, como sempre quis,

em dias de domingo e nas festas

doava gardénias à sua amada feliz,

na verdade, apenas estevas e giestas.

 

Quando havia mais carrego sonhava:

um dia compro-lhe gardénias de verdade,

pese o infortúnio – pois se a amava –

que as flores sejam a nossa liberdade.


 

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

SOLSTÍCIO


 

O Sol e as nuvens brancas

choram, à vez, no rio da minha terra,

o anunciado inverno.

Eu soletro mágoa e digo lágrima;

soletro ave e digo pena…

Água de algum lugar chove em mim,

deixando-me sem palavras enxutas.

 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

VERSOS PERDIDOS


Com o tempo sucumbem os versos quebradiços,

mesmo os que antes giravam em carrossel,

são agora memórias, talvez reais, submissos,

e tresandam a tinta e a folhas de papel.

 

Mudam os tempos dos verbos para os passados,

que os há também actuais, sobreviventes

à custa do garimpo e da salvação dos mal-amados

versos que um dia foram chatos, impertinentes.

 

Não há meio de conseguir uma conciliação

e os versos, felizes com a escolha, é o que penso,

assomam às folhas perdidas, de aluvião,

 

cuidando confundir-me, quais carvões de incenso,

mais não podem que uma tremenda confusão,

há tanto tempo perdidos, nem eu a eles pertenço. 


 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

AS TRÊS NOZES


São elas, mais do que as nozes, as vozes:

a noz da guerra, não parte, rebenta, ai de nós.

A noz da fome, dura de roer a quem a come;

a quem a tome e não consome tem outro nome.

Sobra uma terceira noz, noz como nós, basta vê-la

e surge, de viva voz, o desejo. Apetece comê-la.

 


 

terça-feira, 10 de outubro de 2023

PALESTINA II


A um canto da revolta, o canto

e a lágrima em forma de coração,

seca. Um mar de desencanto.

A alma cheia e um pranto de razão.

 

E a razão é um pássaro altivo,

à afronta não cessa o voo nem cala,

antes morto que cativo

e a sua lágrima é em forma de bala.

 


 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

HISTÓRIA(S)



Montado no meu cavalo de prata

empunhei sozinho a espada

de Afonso Henriques e logo ali

trespassei os sete ladrões que a roubavam.

 

Sete anjos de grandes bigodes

acenaram-me, lhanos e garbosos,

de cada uma das sete colinas de Lisboa,

que mereceram o meu apreço e saudação.

 

O primário manual de história tinha o condão

de me criar épicas ilusões, nunca aproveitadas:

continuei comendo do requentado caldo,

mentindo a mim mesmo esta verdade.

 


 

domingo, 30 de julho de 2023

A CASA


A casa é um feitiço

ainda não descoberto,

está onde está, por isso,

é um longe sempre perto.

 

É um lugar da lembrança

ou o pouco guardado dela,

um atalho de esperança,

uma porta e uma janela.

 

É de mil coisas lugar,

restos de ter e haver,

sítio a que chamamos lar,

sobras, algumas por varrer.

 

Mas um sítio imaculado

em pouco tempo, e o futuro

é o provável culpado

dos caminhos em que me aventuro.


 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

JÁ LÁ VEM O MEU AMOR


O meu amor é tão lindo,

a mim sabe-me tão bem,

meu bem seja bem-vindo,

meu amor que já lá vem.

 

Bamboleia no carreiro

ao meu encontro, lá vem,

passinho certo e ligeiro,

olha a pressa que ela tem.

 

Traz uma flor no cabelo,

da trança pende um lacinho

e o seu rosto, só em vê-lo,

deixa-me a mim p´lo beicinho.

 

Já me viu e vem sorrindo

de muito me querer bem,

meu bem seja bem-vindo,

meu amor que já lá vem.


 

domingo, 16 de julho de 2023

NTÍCIAS


A triste notícia é que o meu gato morreu

tão longe e tão inesperadamente, defunto,

que fico sem saber se o gato era o meu,

se era ele ou eu ou ambos em conjunto.

 

Notícia não menos amargurada e triste,

causadora de dor e idêntico impacto,

é o porquê desta mágoa e luto que persiste,

se o médico me diz que nunca tive um gato.


 

terça-feira, 27 de junho de 2023

LÁ VEM O BARQUEIRO

Lá vem o barqueiro…

Sem barco vem a nado

traz boia e colete enrolado,

não vá o mar traiçoeiro

tirar-lhe a vida que tem.

Lá vem o barqueiro, lá vem…

Esbraceja como louco

(já falta pouco, já falta pouco)

barqueiro, que nem barco tem,

barqueiro sem barco é ninguém.

E que é do barco que não tem

o barqueiro de nomeada,

ter braços para a empreitada

é ter tudo para chegar.

Sorte do barqueiro que tem mar.

Antes o mar, antes o mar,

mesmo profundo e sem pé,

que a vida inteira a remar

contra a maré.



 

domingo, 28 de maio de 2023

UMA VIDA ASSIM


Em nada me importa a morte

e menos ainda o seu futuro.

Dão-me que fazer as papoilas,

lenços vermelhos das searas,

ou airosas pontuando os campos em pousio.

Quero prados de papoilas à minha volta,

cantando os hinos

que só elas são capazes de cantar.

Quero um grito de revolta,

a liberdade de me erguer seara adentro

e viver a liberdade a tempo inteiro. 


 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

VIDA MORTE DE UM RETATO


Alguma coisa em vida

tem semelhanças com a morte;

alguma coisa na morte perpetua a vida,

com um pouco de sorte.

 

Um retrato, por ironia ou graça:

existia há anos no aparador

e só agora, como o tempo passa,

reparamos e lhe damos valor.

 

Era boa pessoa, um santo,

condição que em vida nunca ouvira…

E agora objecto de atenção e pranto,

tarde demais para quem já não respira.


 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

HABUNDÂNCIA


 

há um sol que nasce

para todos um sol que nasce

 

há uma nascente

com sol para todos

 

há um todo de nascente

e sol que é de ninguém

 

há um raio de sol

uma gota de água na nascente

 

há sombra e sede

num caminho para nenhures

 

há flores azuis a poente

que lembram o sol e a sede


 

sexta-feira, 14 de abril de 2023

TRICÔ DE PALAVRAS


Ao cair da tarde

volta o tricô das palavras perdidas,

as de ontem, algumas de amanhã,

mas todas como novas, de hoje.

 

O poial ao redor da casa

escalda. Não por ser Verão,

mas porque as palavras aquecem.

A manta, a camisola ou o naperon

podem esperar.

Agora é apenas o tempo de tricotar

as palavras mais urgentes.


 

sexta-feira, 31 de março de 2023



 

Um dia de Abril deu luz à minha casa,

tudo se tornou claro e transparente

como o vento que, num golpe d´asa,

nos mostrou o futuro ali presente.

 

E, de repente, todas as casas à volta

clarearam como sóis de alento

e sorríamos, andava a Liberdade à solta

num vaivém de asas e de vento.

 

Mudaram de lugar o Sol e a claridade,

ocultos entre as malhas que o império tece,

mas quem viu aquele Abril de tenra idade,

não perdeu o brilho e não esquece.

 

sábado, 25 de março de 2023

SONHO


SONHO

 

Sê sincera

não me ocultes nada

deixa que te veja como se fosses transparente

ou melhor, como se não existisses.

Despe-te.

Consegues ver-me?

Que mais vês além da nuvem

há uma eternidade prestes a desabar, torrencial?

Esse é o meu melhor momento:

aquele que vou adiando,

como é o teu aí prostrada,

nua, contemplando um sonho a haver.


 

quinta-feira, 23 de março de 2023

CONDENADO AO AMOR

 


 

Acusado de um beijo

na forma tentada,

é simples ensejo

para pena pesada:

 

aérea fantasia

de fogo fátuo,

espontânea poesia,

versos de amor perpétuo.


terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A VOZ DO MAR


O mar atirou-me

um búzio para que ouvisse

o som das suas loucuras,

dos seus lamentos.

Começou por uivar blasfémias,

que todo o som ali contido

era tudo quanto existia,

que todo o som ouvido

além do búzio

continha perigos

difíceis de conter e imaginar.

Ele, o mar, era o senhor absoluto

de tudo quanto existia:

uuuuu…uuuu… uuuu… - Dizia.

Ele era a alegria e o medo;

o bem e o mal;

a palavra e o segredo.

Era ainda o horizonte e o infinito

e o sal da verdade.

Deus, qualquer deus era invenção sua,

dele, do mar.

Senhor da língua e das onomatopeias:

Uuuuu…uuuu…uuuu…

Mar por ser imenso, como gente,

tudo e nada dentro de um búzio, apenas.


 

domingo, 26 de fevereiro de 2023

FANTASIA



Assim te relembro no que há em mim de mais profundo:

busto de mar e espuma; saia apertada, de areia fina…

e sempre que assim te lembro desvaneces e, imagina,

já te não vejo e o que afinal recordo em ti é todo o mundo.

 

Todo o mundo, todo o mundo que me corrói e mina.

Íntimo, imaginado, que numa fracção de segundo,

me cega e convoca mais premente e mais fundo,

muito aquém donde começa; muito além donde termina.

 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

RODA DA VIDA


Havia uma roda, a roda rolava

por ser seu ofício, ofício de roda,

que rolando a seu modo andava

rodando toda a vida, não a vida toda.

 

A roda era a água e a água escondida

rolava a roda na roda em seu labor

em busca de água, de água e de vida,

sem queixa nem mágoa, como prova d´amor.

 

Passou o tempo, a água também.

O vento, o sol, o bom e o mau tempo

e uma vida inteira, que nunca se atem,

sem vida nem roda, água de ar e vento.

 


 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

MALES DE ALMA



 

Há dias em que a alma vai com a camisa usada

e nem damos conta de ficar em tronco nu dentro do peito.

De pronto, uma réstia de sol dissipa a madrugada,

ateia o fogo e faz-se água cristalina o gelo contrafeito.

 

Melhor assim: alma escovada, uma penugem dispersa

própria da idade. Nada há como sentir o que de nós se fala.

Breves correntes de ar, alguma náusea de forma imersa,

que vindo à tona, vê-se na cara, logo se acorre a calafetá-la.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2023