sexta-feira, 30 de julho de 2010

jazz after midnight

para onde corre a água para onde
corre a água para onde corre
a água para onde
corre a água
de montante para jusante e ali jaz
água jazz

quinta-feira, 29 de julho de 2010

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Ficção sobre ficção e um poema apócrifo

Nunca vo-lo disse, Joaquim das Vacas era poeta.
Naqueles lugares de terra e sol imensos, há quem toque concertina; quem cante entre dois copos; quem se entretenha falando do que sabe e não sabe da vida alheia; mas o Joaquim das Vacas fazia versos de improviso. Era poeta.
Construía com perícia as quatro décimas, cujo último verso repetia, por ordem, a quadra do mote, e recitava-os de memória vezes sem conta, a propósito de tudo e de nada. Prodigiosa memória, que guardava o acervo poético de uma longa vida!
Sempre que no grupo aparecia mais um, era quase certo que Mestre Joaquim, como normalmente era tratado, iria soltar a musa, improvisar ou, na maioria das vezes, desfiar o rol dos versos antigos, que alguns contestavam por já os terem ouvido vezes sem conto. Era no entanto uma contestação, se o termo aqui tem cabimento, efémera.
Os temas eram os de uma vida de canseiras, do trabalho de sol a sol, dos louvores do pão e de outras sementes, da exaltação dos melhores filhos da terra, do louvor à Reforma Agrária. Este era o mundo de Joaquim das Vacas e por isso o cantava nos seus versos.
Eis o poema que mais vezes lhe ouvi:



Sem terra fui lavrador,
dono das estrelas do céu.
No chão junquei meu suor
mas de nada me valeu.

Do frascal até à seara,
como as palmas das mãos,
conheci ruins e sãos,
do vulgar à coisa rara
e até a ferida que não sara.
Na terra esqueci a dor,
suportei frio e calor,
acordei nela manhã cedo,
mas revelo agora o segredo:
sem terra fui lavrador.

Tive braços para ceifar,
para espalhar as sementes
e colher frutos pendentes.
Com pouco mais para dar
que o corpo para trabalhar,
todo o universo foi meu,
enquanto pude, enquanto deu.
Só ao deitar fui morgado,
senhor de mim já cansado,
dono das estrelas do céu.

Não conheceu abandono
porque foi maior o amor,
quantas vezes feito de dor
à terra de que fui dono,
e digo-o em meu abono:
soube seus desejos de cor,
confortei-a, dei-lhe amor,
e sem pedir nada para mim,
reguei-a como a um jardim:
no chão junquei meu suor.


A idade passou-me à frente
dos anos que não dei conta.
Mas hoje já tanto monta,
pois já só tenho o presente
e pouco daqui para a frente.
Do quanto pude ser eu
ou do que esta vida me deu,
o que me toca mais fundo
foi ter toda a terra do mundo
mas de nada me valeu.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

sexta-feira, 16 de julho de 2010

VISITA IMAGINÁRIA A BRECHT


Por que haveria de chover de forma tão copiosa
no dia que desembarquei em Augsburg
vindo de Munique,
quarenta e quatro anos após a morte de Bertolt Brecht?
No ramo, os cravos vermelhos
pendiam como lágrimas de choro convulsivo
e as suas pétalas tingiram o chão
já encharcado de outros prantos.
Dramatizo. Não era assim tanta a chuva.
Não era Augsburg, não era Brecht, não eram cravos
e muito menos chorando de forma tão pouco digna.
O mais provável é não ter feito esta viagem
nem este texto ser meu.
Toda a literatura de Brecht grita dentro de mim.
Isso é verdade.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

AINDA JOSÉ SARAMAGO

Um dos textos de José Saramago que mais me impressionaram, foi em Objecto Quase, editado em 1978, o conto A Cadeira. As obras fundamentais do escritor não tinham visto então a luz do dia.
A narrativa poderosa e metafórica de A Cadeira é algo que nunca esquece, por mais anos que vivamos. Lembro-me que a minúcia era tanta, a descrição era tal, que quase exasperava. Porém, era impossível largar o texto. Teve que ser lido por uma vez e só no fim pude desfrutar do prazer que tal leitura me proporcionou.
O texto de que falo era metáfora da célebre queda sofrida pelo ditador Salazar em 1968: “A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar”…
A cadeira dos nossos dias, no rigor do termo, não estará igualmente a desabar.
O bicho que lhe mina a madeira e deixa buracos, quase sulcos, não passam de pueris armadilhas. Também a almofada que forra o assento, sendo o suporte ideal para quem se instala com nenhuma vontade de levantar o rabo, é podre e mal cheirosa. Fede de mentiras, de promessas não cumpridas e de tantas outras malfeitorias, que a simples insinuação do utente de se levantar é imediatamente julgada como nova malfeitoria.
Dizem alguns, em alegada defesa do sentado, que não é a cadeira de antanho; esta é uma cadeira democrática, desconfortável, onde só tem assento quem for dono de um elevado espírito de sacrifício e sentido patriótico. Pois seja então. Não se sacrifique mais por esta gentalha em pé: levante-se e caminhe, não se lhe pede tamanho sacrifício.
Não faltarão cadeiras oferecidas quais rameiras, estofadas, em mogno ou design modernaço, mas cadeiras. Democráticas ou não, capazes de suportar tamanho rabo, ainda que à custa das nossas costas…
A cadeira parece assim recorrente na história portuguesa, bem como a dança das cadeiras. Mas não é a dança que nos preocupa agora; preocupa-nos simplesmente a cadeira e a forma como se senta quem dela faz lugar absoluto contra tudo e contra todos.
Deixemos pois, que se mantenha sentado, mas não para que descanse ou lhe pareça que todos os que estão de pé foram invadidos duma espécie de comiseração para com o instalado, e muito menos que aguardam pacientemente a destruição pelo bicho da madeira. Não, desta feita, é necessário deitar a cadeira abaixo.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

ESTAMOS BEM SERVIDOS


Tudo serviu para encher o sapatinho:
pechisbeque, algodão doce,
pós de Maio p’ras frieiras, vinho
com gasosa, juras, pão com chouriço,
só para crer – pouco que fosse –
nestoutro salvador de serviço.

De opíparo manjar, no concreto,
sobra um mísero espantalho
(segundo filho de Gepetto)
com ar refinado, falso, o malino,
que não passa de açorda d’alho,
a puta de chapéu fino.*

*Designação popular da açorda d’alho

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A PROPÓSITO DE BURROS E DE OUTRAS BESTAS


Primeiro que não, que nem pensar,
depois, bem vistas as coisas, votas.
Agora (é tarde) escusas de argumentar:
já vai longe, assobia-lhe às botas.

Há coisas que é moléstia experimentar
e, para más figuras, é melhor sair de cena:
uma, é ensinar os pássaros a voar,
e às pedras é escusado, não vale a pena…

segunda-feira, 5 de julho de 2010

GOLDEN SHARE


O sol é revogado,
o vento e as nuvens não resistem à severa maioria
e não há consenso para o luar.
A taxa aplicada ao oxigénio será alargada
aos animais domésticos – excepto os peixes,
que pagarão imposto anual, líquido –
até à promulgação da lei da respiração por cabo.
A maioria chama agora crise a tudo o que mexe.

A maioria garante o dia de 24 horas
a sucessão do dia e da noite e a fotossíntese.
Gratuitamente.
Todos os restantes divertimentos
deverão constar na declaração de irs.
Não haverá mais lugar para invocar
a retroactividade da fome, com excepção
para os subscritores da bula.

Parágrafo único:
Nenhum cidadão poderá morrer sem autorização
de sua excelência. Por escrito.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

ANEXIM QUEBRADO VII


a fome não passa
não tem graça
quando o diabo amassa
a árdua carcaça
e a fome não passa