domingo, 30 de dezembro de 2012

NOVÍSSIMO EQUILÍBRIO



A este canto não acorre mal
e mal que for não tem comparação
ao susto, ao calibre que por aí se USA;
a este canto não acorre nada.

Neste canto ileso ninguém implora,
chora, perde tempo com orações e preces,
se derrete na erupção súbita da montanha:
neste canto não ocorre nada.

Neste canto, quase ingénua sepultura
de orgasmos sonoros ou talvez tímidos,
emprenham à vez mulheres e cabras sãs:
a este canto não acorre nada.

Neste canto não ocorre nada.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O PRIMEIRO MILHO


“O primeiro milho é dos pardais”
-e tu, onde pensas que vais?

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

NEM TAIS NEM MAIS


O tempo que me foi de desenganos,
(da esperança vã ao engano puro)
numa correria de anos e mais anos
com os olhos sempre postos no futuro.

Tenho agora tantos anos como natais,
o que, a dividir por dois, não é muito.
É como digo: nem menos nem mais,
e ponho já uma pedra neste assunto.

domingo, 23 de dezembro de 2012

COLECÇÃO DE HAIKAIS SOBRE UM FÓSFORO ACESO



Fogo-fátuo
é fumo consumido
- a labareda morta.

Um clarão, nada
mais que um lampejo
extinguindo-se.

Chama efémera
chama-me e
arde-me, ateia-me.

Cinzento é tudo
o que arde dentro
por dentro.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

POEMA DO MEU NATAL


Não se sabia quantos sóis haveriam de nascer
ainda e quantas luas novas e quartos crescentes
e luas cheias e outra vez quartos, mas minguantes,
e já eu dava sinais de desassossego, às voltas
de outra coisa redonda, que era o ventre da minha mãe.
Depois nasci e, sem me conhecer (nem eu a ela)
fui assistido sujo e nu por uma parteira velha
e experiente, porém simpática, foi o que me disseram.
Bastou tirar os cinco quilos de mim daquela aflição
para acreditar sem esforço nas suas qualidades.
Nunca sobre isto se escreveram estórias transcendentes,
comemoro normalmente os meus aniversários,
embora preferisse manter-me sem eles, os anos,
que, todos juntos, me vão dando algum trabalho.
Já lá vão sessenta e não estou arrependido de nada.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

NATAL DO PINTAINHO


Saiu a tempo, em tempo o pintainho
para ser o natal de quem o come.
Em casa de pobre vai chamar-se peru,
vão chamar-lhe um figo,
o pintainho é que não terá oportunidade
de chamar mais seja por quem for,
apesar de ter muitos nomes o natal cristão.

domingo, 16 de dezembro de 2012

COMISERAÇÃO


Quero dar-vos conta do que entendo por comiseração.
Aumentou a esperança média de vida, acontece
de vez em quando, mas isso não faz parte do poema.
Todos os dias me levanto cedo
para ver primeiro o que os outros só verão depois
e para mim já não constitui qualquer novidade.
Não é bem este o motivo que me leva a saltar da cama
aos primeiros acordes do galo de serviço:
levanto-me e acontece que não vejo nada de especial,
a não ser os vizinhos que, por qualquer motivo,
têm que madrugar e amanhecem com o rosto amargurado.
Começo então o poema:
é sobre o que entendo por comiseração.
Os cães farejam ainda indecências e lixos nocturnos;
os gatos, esses, dormem finalmente o sono dos justos.
Eu percorro a cidade sem audição ou cheiro: vejo apenas.
Olho para tudo o que sempre esteve, inexorável,
no mesmo sítio. Trauteio os restos de uma melodia da véspera,
como um disco que se partiu e repete
aquele momento imprevisto e absurdo e coço
a virilha direita, não porque tenha comichão,
mas porque é hábito coçá-la como todos os homens fazem.
No céu, os pardais ou outros pássaros cinzentos
que os substituem para me confundir,
parecem-me contrariados e eu tenho pena deles.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

POEMA DATADO



Não dato este poema
de Água Derramada
porque não estou lá,
perto de Grândola.

Tampouco de Nova Iorque
porque nunca lá passei,
bem como da Lua,
que vejo sempre daqui.

Este poema leva
uma data de tempo
em que permaneço
por aqui, no universo.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

DESTA ÁGUA BEBEREI


Há coisas que nunca farei,
por exemplo: correr atrás de galinhas.
Não faz o meu género
e ainda menos o delas.

Na capoeira, que é o seu lugar,
na panela, que é o seu destino,
mas num poema para quê
se apenas eu esgravato?

Nunca me tinha acontecido
galinhas invadirem-me um poema
(primeira e última)
Vou correr com elas de vez.



terça-feira, 11 de dezembro de 2012

AI, POESIA


Não tenho o direito de dar à luz
todos os poemas que construo
entre as veias e a memória
(creio que é por aí…)

Muitos ficam irreconhecíveis;
aguados de náufragos vocábulos,
onde as palavras socorristas
não chegam ou não lhes podem valer.

Chega mesmo a acontecer
ao verso afoito e já metáfora
perder o poema, ainda a caminho,
algures, preso ao âmnio preguiçoso.

domingo, 9 de dezembro de 2012

AGORA



São iguais o antes e o depois,
pretextos de quem chora:
não existe nenhum dos dois,
tudo o que existe é agora.

Antes, lágrima de saudade;
depois, um desejo ardente.
Nenhum é pois verdade;
tudo é fantasia, tudo é aparente.

A dor que me dói é esta dor, não
me magoa a dor de outrora,
mas se depois, por qualquer razão,
voltar, será de novo agora.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O SOL E AS NUVENS




Vem aí um sol com nuvens que não vejo
ainda, nem sei qual dos dois vai dominar:
sei que um se anuncia e é meu desejo
e outro que se interpõe sem se anunciar.

Dos dois não há escolha, não há opção:
um é o desejo, o rumo dos nossos passos;
o outro é o que se tem por contradição,
mas nada disso nos fará baixar os braços.

Sobre a tese, a antítese e a síntese, aprendi
que toda a vida se faz de contestações,
de dúvidas, de refazimento aqui e ali

e sei também que muitas são as contradições
do sol que conforta e queima só por si.
E se assim não for, haverá ainda mil soluções.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

MADEIRO


Ensopado de maresia até aos joelhos,
acompanhava os das sortes na recolha da lenha
e desta, pelo menos um ou dois madeiros que se vissem.
Todos cantávamos, alegres,
apesar da estafa de uma tarde inteira,
por caminhos maus, que não eram maus caminhos.
Um paganismo digno de um painel de azulejos…
Só o fogaréu dessa noite, talvez da próxima,
compensava tamanha empreitada.
Depois as brasas e por fim as cinzas:
sempre ficam as cinzas, eternamente cinzas.



segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

PAPA PRESÉPIOS


Maria sempre virgem que nem o musgo orvalhado,
e, com mil requebros, recolhido da dura rocha
pelas minhas mãos infantis e crentes de tudo.

Eis o presépio mais estúpido, de quantas coisas estúpidas
se podem anunciar, salvo as minhas mãos
e a inocência perdida em dois mil anos de imposturas.

Sobre a vaca e o burro mais nada há que se diga:
o burro era burro, qualquer um sabia
e a vaca, afinal, não passava duma … vaca.

Apesar de tudo, duraram o tempo suficiente para os amar
a ambos, ao contrário do Menino Jesus,
cinicamente nascido e crucificado, ano após ano.

Que pai ou mãe suportariam tal martírio,
senão uma família assexuada, fútil e perversa,
capaz de cuspir na minha mão pueril suja de musgo?