sábado, 30 de março de 2013

MANIFESTAÇÃO



De braço erguido, uns, revoltados
outros sem saber erguer os braços,
muitos apenas de dentes cerrados,
davam vivas e abaixos, conforme os casos.

Fazia aflição de os ver a todos,
a gritar coisas simples, da ocasião;
era um mar de povo, gente a rodos,
fazendo pela vida, exigindo o pão.

Nos cartazes e panos, em letras garrafais,
impunham soberania e, em verdade nua e crua,
aos vilões a soldo, ministros serviçais,
apontavam-lhes um só caminho: Rua!

quinta-feira, 28 de março de 2013

TELAS FINAIS - O SILÊNCIO

Beta esperava-o sentada à mesa entretanto posta. O arroz e os pastéis de bacalhau já estavam entre o morno e o frio.

- Que cara trazes, homem.

- É a minha ou já não me reconheces.

- Vá, não desconverses. Senta-te e come.

- Não tenho apetite.

Contrariando a afirmação sentou-se, olhou para Beta fixamente, trincou um pastel de bacalhau e mastigou lentamente.

- Vens de barriga cheia, é o que é…

- Por falar nisso, que me dizes tu dos boatos que andam por aí?

- Ó valha-me Deus, Zé, quantas dessas é que eu oiço diariamente de outras vizinhas? E até de mim não é a primeira.

- Pois, mas logo o Alexandre.

- És mesmo tonto! Não vês que são invenções dessa bruxa lá de baixo? Viu-o há uns tempos vir cá a casa para lhe arranjar a bainha das calças, lembras-te, e isso para ela é a prova provada, a bruxa!

- De qualquer modo não tenho apetite, come tu.

Beta ficou em silêncio. Por um lado sabia-lhe bem todo aquele ciúme, mas por outro estava preocupada com o ar abatido, de ombros caídos e testa pregueada que o marido ostentava.

Optou por calar-se. Na verdade não tinha grande coisa a acrescentar, pensando apenas que a culpa é dos mutismos diários, do entra e sai, da rotina que esmaga sem aviso e faz apodrecer todas as palavras úteis no momento e supérfluas se requentadas.

Sem adiantar mais palavras à conversa, não fossem elas, as palavras, significar o que não está certo de querer dizer, José Cruz saiu de casa sem avisar. Beta apercebeu-se pelo estalo do trinco da porta ao fechar.

Desceu as escadas saltitando e reconhecendo de cor cada uma delas. Todas são diferentes se as subimos e descemos diariamente durante anos, como é o caso.

Na rua o silêncio do costume. Ninguém. Quem com ele se cruza, também caminha mudo e sozinho. São simples passadores de outros lugares.

No café do bairro sim, ouviam-se vozes. Discutia-se futebol, talvez.

Atirados para a periferia, os moradores dos modernos bairros deixam o coração da cidade ladrar como um cão, miar como um gato, balir como um jovem bêbado e jamais tiquetaquear como um coração de verdade. Limitam-se a passar com outro destino; a incursões mais ou menos culturais; não a estar, a viver. Sem coração a vida não é possível.

Empurrou lentamente a porta de vidro e a vozearia cessou como se estivesse conectada ao punho da porta. O balcão entupia e ficava oculto pela clientela que se revezava em rodadas de cerveja. Só uma mesa estava ocupada por quatro parceiros do jogo das cartas. Estes continuaram a bater os trunfos a cada vaza com estrondo no tampo da mesa.

A dona do café, de avental cintado, mostrou o rosto anguloso de camafeu romano por uma nesga entre a barreira formada pelos clientes, dirigindo-se a José Cruz:

- Deseja alguma coisa, senhor…

Por incrível que pareça, nunca ali tinha entrado.

Não reconhecia qualquer dos rostos. Sentiu-se um estrangeiro na sua própria rua. Arrepiou caminho sem responder à mulher que não sabia o seu nome e voltou ao caminho para lado nenhum.

Os candeeiros de iluminação pública dão sinais. Competem em altura com os prédios e, se não lhes chegam aos telhados, pelo menos iluminam as ruas quando cai a noite. É chegado o seu momento de glória, mas a sua ainda intermitência obriga José Cruz a olhá-los porque os seus olhos estão ciosos de ver tudo o que há muito tempo não enxerga. Não se sabe o que pensa, sabe-se que caminha, mãos nos bolsos em direcção ao lado poente do bairro.

Afinal ainda sobrevivem as velhas habitações que o empreiteiro dava mostras de odiar visceralmente. Esboçou um sorriso mordaz ao pensar que aquelas casas, afinal, sobreviveram ao Calisto, falecido já.

A curiosidade e a algazarra proveniente daquela espécie de pátio, fizeram-no aproximar-se a confortável distância. Parou por instantes.

Havia por certo uma qualquer comemoração: ouvia-se música à mistura com gritarias de crianças brincando. Um bidão serrado ao meio fazia de assador. O fumo do churrasco chegava até si de forma intensa e agradável. Era uma festa com certeza ou então seria assim que aqueles moradores, marginais para os restantes habitantes do bairro, se comportavam todos os dias. Não tinha resposta. Tantos anos a viverem ali ao pé e é a primeira vez que dá razão da existência daquela gente.

Subitamente ficou com fome. Atribui a gula ao cheiro dos assados. Ainda há pouco tempo o estômago lhe rejeitava um insignificante pastel de bacalhau e agora sente uma fome profunda, que o cérebro lhe recria por cobiça quase infantil.

Era noite já feita. Agora sentia-se mais só do que nunca. Gostava de fazer parte daquela festa mas não era ali o seu lugar. No seu mundo são mudas as criaturas, escondem-se atrás de cortinados e persianas, espreitam e, quando falam é sobre vizinhos com apelidos numéricos, sobem e descem as escadas silenciosamente e fecham-se em casa como bichos.

Regressou a casa. Apressou o passo. A fome roía-lhe as entranhas.

José Cruz estava convencido que, saciando aquela fome, fosse ele a fome que fosse, mudaria o rumo da sua vida, resolveria todas as angústias e males dentro de si.

Beta via uma telenovela na televisão da cozinha. “Ainda bem”, pensou.

- Já guardaste os pastéis?

- Ia guardá-los quando a novela terminasse…

- Não é preciso. Estou com uma fome de morrer!

Quando Sancho Pança, popular escudeiro de D. Quixote e por ele levado à efabulação maior do que seria comportável a um cérebro preguiçoso, disse a Joana, sua mulher, quais os planos e sonhos que tinha para ambos, dela nem ouviu perguntar: “Que é isso que dizeis, Sancho, de senhorias, insulas e vassalos?” Não ouviu Sancho Pança nem leu ainda José Cruz no livro encadernado que decora a estante da sua sala de estar.

É claro que aqui se vive e morre como em qualquer outra parte do mundo, mas nestas ilhas entre ilusória felicidade e profunda mágoa, a única diferença é que, por estas bandas, sem que os interessados o saibam, se habita em caixões de silêncio muito antes do silêncio do caixão.

fim

terça-feira, 26 de março de 2013

TELAS FINAIS - O AMIGO

Há algum tempo que circulam no bairro rumores acerca de um infiel relacionamento de Beta. Por ser como é, um boato e nada mais que isso, não sabemos também quem o inventou e o colocou para fora das persianas fechadas quase sempre, dizem, por causa dos insectos e poeiras e jamais pelo que de dentro possa contaminar a rua. O que sabemos e se o não soubéssemos já teríamos, pelo menos, algumas suspeitas, é quem mais propaga o dito, quem mais se empenha em difundir a novidade, seja ela verdadeira ou falsa, para o efeito não é isso que conta.

- Isto não é de agora: há muito tempo que dou razão das visitinhas fora de horas…

Perpétua, mulher sem mácula, religiosa até mais não poder, assumia desta forma a quem com ela se cruzasse o desabafo em jeito de limpeza moral e defesa de católicos costumes.

É claro que no bairro, mesmo que o neguem, já toda a gente sabe do enredo, mesmo aqueles que sabem mais ou menos de quem se trata. Mais: toda a gente associa o imbróglio a Alexandre Monteiro, afinal a única visita do casal após a partida de Sónia para França.

É desta forma, ao mesmo tempo inverosímil e, por esse exacto motivo, mais dolorosa ainda, que o escândalo chega aos ouvidos de José Cruz.

O próprio amigo lhe deu conta. Esperou-o à tardinha, à saída do banco e desabafou tim-tim por tim-tim tudo o que nesse dia ouvira.

- Sabes que falo com muita gente, Zé. Fiquei para morrer.

- Entre nós nunca houve segredos, não era agora…

- Dizem que a beata lá do teu prédio garante ser eu, mas eu juro que nunca toquei na Beta com um só dedo que fosse. Era o que faltava!

- Eu sei, Alexandre, eu sei… Toda a gente menos tu.

- Assim também não, Zé! Estás a admitir que há alguém e isso não é justo. Por que não falas com a Beta?

A cabeça de José Cruz não era agora recheada por um cérebro ordenado, com lógica ou método adequado para uma reflexão ou juízo equilibrados.

Além disso, o que por dentro o corpo contém tinha desmoronado. Os órgãos pareciam não estar no seu lugar e ao mesmo tempo todo ele se transformava num objecto oco, sem acção e sem pensamentos, vazio como nunca antes tinha acontecido, excepto quando conheceu Beta, mas nessa ocasião tudo voltou ao lugar, tudo se recompôs com o sim que ela lhe deu e até lhe pareceu com um vigor que antes não tinha. Agora não. A cabeça não pensava, as pernas entorpeciam como se estivessem dormentes e o peito ardia num fogo lento, doentio, fátuo.

Alexandre a tudo assistia em silêncio. Um silêncio presente, solidário. Desde o início da conversa que tinha a mão no ombro do amigo. Fazia-o para que as suas palavras tivessem o peso da amizade, para que sentisse o pulsar do seu coração verdadeiro.

José Cruz distendeu os ombros e Alexandre, reparando então onde a mão lhe tinha ficado, retirou-a, apertou ligeiramente o braço do amigo em sinal de ânimo:

- Coragem, pá!

Ficaram mudos frente a frente durante algum tempo, até que Alexandre, com o propósito de descomprimir, abriu o rosto e fez uma pergunta aparentemente disparatada:

- Alguma vez leste o D. Quixote de la Mancha, Zé?

Vezes sem conta olhou já para o livro na estante da sala do amigo e daí o pé de conversa.

José Cruz estremeceu. Aquela pergunta transportou-o para a vida. De repente sucederam-se imagens e memórias de acontecimentos até agora íntimos que o conduziam a casa onde agora gostaria de estar.

- Que pergunta é essa?

- Nada, leste ou não?

Vendo bem, Alexandre estava agora mais saudável, na tentativa de contagiar o parceiro.

José Cruz ainda hesitou na resposta a dar porque ia mentir, sabemo-lo nós, mas acabou por sacudir-se, levantou o queixo e, com ar displicente, murmurou:

- Já li, sim, há muito tempo. Já não me lembro…

- Pois se te lembrasses saberias que esse tal D. Quixote usava um elmo que afinal era um alguidar e toda agente, digamos assim, troçava pela figura que fazia.

-Onde é que queres chegar? Não estou a perceber nada!

- Calma. O que acontece é que, a propósito, D. Quixote no seu modo de nobre que só ele achava ser, digamos assim, disse uma frase que te pode ser útil, D. Quixote aparte. Disse ele: A quem o contrário disser farei conhecer que mente, se for cavaleiro, e se escudeiro, que mente mil vezes.

José Cruz fez um sorriso de simulada compreensão, abraçou Alexandre como se não o tivesse visto ontem, nem anteontem, nem em todos os outros dias que a estes precederam.

Era sobretudo um abraço em que procurava selar a amizade e, neste instante, a amargura de ambos; conter o dique de remorsos, raivas e outros sentimentos que não sabia muito bem explicar e lhe apertavam o peito como lanças que picam, ferem e, no entanto, não matam para que o sofrimento seja ainda mais profundo.

- Vou andando.

- Vai. Tem presença de espírito. Dá notícias.

continua

segunda-feira, 25 de março de 2013

TELAS FINAIS - A VISITA

Sónia e o marido voltaram a adiar a vinda a Portugal para visitar os pais.

- Nunca sabemos quando há disponibilidade. – Disse ela à mãe pelo telefone.

- Tenho tantas saudades vossas, filha…

- Que se há-de fazer, mãe, julga que nós não as temos também? É a vida! O Paulo (assim se chama o marido) está sempre em viagem e com reuniões inadiáveis… Saem sempre as contas furadas.

Quando José Cruz chegou à tardinha soube da notícia. Pesaroso, não soube o que dizer.

- Convidei o Alexandre para o jantar.

Ela esboçou um sorriso de assentimento, embora estivesse à espera que ele a confortasse, amenizando assim as saudades que sente pela ausência da filha, levantou-se lentamente, apoiada na mesa da cozinha, vestiu o avental e dirigiu-se para a despensa, olhando vagamente as prateleiras sem saber ao certo o que a levou àquele impulso e muito menos o que quer encontrar.

Ele foi espreitar o mundo pela pequena janela da cozinha, cujo parapeito fica ainda mais diminuto por causa dos vasos de flores perfilados na metade fechada.

Deste lado só o campo existe. Ao fundo, fazendo contraste com o céu, o recorte sinuoso da serra, mais próximo, por enquanto, árvores de várias espécies, imitando ondas e, no logradouro, entulho, erva mal nascida e pequenos pássaros em vespertinos voos, preparando o recolhimento em duas oliveiras solitárias e sobreviventes da fúria construtora dos idos de oitenta.

Tudo tem uma aparência tranquila. Nas faldas da serra onde nasceu vê a criança que foi, correndo, subindo às árvores, de calções encharcados pela água da ribeira, onde procurava rãs e peixes mais afoitos primeiro, e depois lagostins vermelhos de água doce, quando estes invadiram tudo o que era água de ribeiro ou de barragem. “Como o tempo passa”, pensou.

- Zé, vai abrir a porta, deve ser o Alexandre.

De tão absorvido que estava com aqueles pensamentos, nem ouviu a campainha e estremeceu quando Beta o alertou mesmo ali nas suas costas.

- Vai já! – Gritou, como se a demora assim encurtasse.

Alexandre trazia embrulhada uma reserva de tinto alentejano, uma estrelícia de cores exuberantes ainda envolta no celofane e um sorriso que nunca se lhe apagava do rosto.

- Vês, - disse Beta, virando-se para o marido – como o Alexandre me compreende? – e, refeita da dor de há pouco, - era mesmo o que estava a precisar: dum mimo como este!

- Vá, não exageres, é só uma flor. – Quis acalmar o amigo.

O cheiro apetitoso do jantar impregnava já a cozinha.

- Vão para a sala. Já não demora muito.

José e Alexandre obedeceram. Tocavam-se, sorriam e comunicavam com frases curtas e imperceptíveis para Beta.

Quem agora os visse, diria que não se enxergam há anos. Nada mais falso: estiveram juntos não havia mais de duas horas. Encontraram-se no bar do costume, beberam três rodadas de imperial e falaram do que então lhes ocorreu falar. O convite para jantar foi feito e logo aceite quando se despediam. Hoje não era dia de entrevistas para Alexandre, vinha mesmo a calhar.

Na sala, sentados nos habituais sofás, o convidado olhou de soslaio para os livros da estante e conferiu os autores: Cervantes, Dumas, Verne, dois volumes, e Shakespeare.

Não entendeu assim José Cruz:

- Está tal e qual como a deixaste a última vez. – E apontava para a garrafa de uísque.

Alexandre não lhe fez a desfeita e anuiu com uma gargalhada:

- Venha de lá a menina…

A televisão estava desligada como convinha:

- É só desgraças. – Disse José Cruz.

- A propósito, já ouviste falar da tramoia que envolve por aí uns banqueiros e amigos com offshores…

- Não se fala doutra coisa lá no banco.

- Não me digas que o teu banco também está metido nisso!

- És parvo ou quê. Tudo gente séria!

- Como nós…

Alexandre soltou de novo uma forte gargalhada. Beta assomou à porta da sala, querendo averiguar a que propósito vinha tal algazarra. Surpreendida pelo imediato silêncio de ambos, disfarçou:

- O jantar está pronto. Gostas de jardineira, Alexandre?

- Eu só não gosto que me batam.

- Então caminhem para a mesa.

Os homens sentaram-se à mesa e Beta imediatamente colocou pratos, talheres e copos. Trouxe depois uma terrina fumegante com a jardineira.

- Que cheirinho, disse Alexandre.

Beta sorriu, colocou a estrelícia no centro da mesa e, virando-se para o marido, pediu:

- Zé, vai à cozinha buscar os guardanapos e o pão que me esqueci. Traz também o vinho.

Estavam de novo todos juntos. São como uma família, mais, os laços de amizade que os une respira-se naquela sala tão pouco utilizada e agora tão repleta de satisfação. A jardineira era o pretexto para este apetitoso convívio de irmãos cujo sangue é apenas o que a cada um faz bater o coração para que vivam e convivam.

- De que tanto se riam há pouco?

Perguntava Beta enquanto servia os pratos. Primeiro o de Alexandre, depois o do marido e finalmente o próprio.

- Nada, cortou José Cruz.

- Não sabia que “nada” dava vontade de rir…

- Falávamos de banqueiros corruptos - esclareceu Alexandre – daqueles que quando vocês vieram para aqui morar esbanjavam dinheiro como água, era só facilidades, lucros, investimento, alguns estão à perna com a justiça.

- Não lhes acontece nada, como é costume. – Atalhou Beta.

José Cruz e Alexandre concordaram.

Este era o tempo em que os jornais noticiavam a crise. Como bem sabemos, noticiam os jornais aquilo que os donos mandam e estes mandam noticiar crises, falências, perigos de rupturas financeiras e outros eufemismos que têm o significado mais prático e doloroso no corte de salários, nos despedimentos colectivos, na repressão dos direitos cívicos, na carestia de vida e na extinção de serviços públicos para quem vive, claro está, da venda da sua força de trabalho. Aqueles que esbanjaram, corromperam e delapidaram os cofres do estado e actuaram como modernos bandoleiros, pilhando para si e para os seus, serão sempre pessoas bem-intencionadas, gente de bem, porventura iludidos por gente sem rosto, mas sempre gestores de honestidade à prova de bala. Nunca serão punidos, nem a pena que venham a ter compensará todo o mal que já fizeram.

Beta sabe de tudo isto por experiência própria, mas hoje não quer ouvir mais tristezas. Já lhe bastam as da ausência da filha:

- Vamos lá mas é falar de coisas boas.

Beta, ao contrário dos dois homens, estava elegantemente vestida como é seu costume. Tinha tirado o avental. O vestido liso, azul-marinho, de malha fina, fazia sobressair a curvas das ancas e o volume do peito. No generoso decote pendia um colar de pedras grossas de pechisbeque com matizes a condizer com o vestido e os lábios carnudos, agora um tanto desbotados pela jardineira, apresentavam um fino contorno avermelhado, desenhando as comissuras de forma quase perfeita.

Eis a sua vantagem quando impõe a mudança de tema na conversa.

- Estive hoje na loja onde trabalha a tua namorada, Alexandre.

- Minha namorada?! – Disse ele com espanto.

- Sim, aquela que me apresentaste uma vez no centro comercial. Ela adora-te.

Alexandre ajeitou-se melhor na cadeira, serviu de vinho o copo vazio, deu um pequeno gole e atacou:

- Eu também gosto dela, mas somos apenas amigos.

José Cruz nada disse: limitava-se a assistir, e Beta, com um sorriso de censura, retorquiu:

- Nunca mais tomas juízo, rapaz…

Ora, juízo! Para que diabo queria aquele “juízo” de que falava Beta! Que Alexandre não é pássaro de gaiola já o sabemos, mas compromissos do género deste que agora se fala, para os anos que leva de alegre celibato, mais do que gaiola, seria um castigo, uma prisão: as mesmas penas que, em sua opinião, cumprem os seus amigos em troca duma vida de compromissos e de canseiras.

- Ná, nessa não caio eu. – Disse com ar convencido.

Finalmente, José Cruz decidiu intervir:

- Que mania a tua de arrumares toda a gente. Saíste-me cá uma casamenteira! Parece que não conheces o Alexandre…

A conversa tomava agora caminhos sem consenso e Alexandre não teve outro remédio que não fosse o da mentira piedosa:

- Bem faz-se tarde e ainda tenho que rever umas tabelas novas…

- Já, Alexandre? – Lamentou Beta.

José Cruz encontrou no lamento o pretexto para criticar a mulher:

- Começas com essas conversas de sacristia…

Despediram-se no entanto como sempre fazem: o amigo é como família, voltará quando lhe apetecer. Tem ali “uma casa às ordens”.

Já nas escadas, Alexandre sentiu passos junto à porta de Perpétua. Parou para escutar melhor e vieram-lhe à cabeça algumas interjeições de indignação. Não as repetiremos nós.

Estava uma noite fresca. Silenciosa sempre.

“O melhor é ir para vale de lençóis”, disse entre dentes.

continua

sábado, 23 de março de 2013

TELAS FINAIS - O CASAMENTO

Agora, com a nostalgia já mitigada e transformada em sorriso numa subespécie de mofa, comentam as fotografias do casamento, apontando com o dedo o que então era comunhão de bens e de apetites e o tempo transformou em burlesco e demudado, porque a vida lhes moldou a forma de pensar, as inclinações dos gostos e a consistência da alma. Chamam a tudo isto evolução por mera falta de vocabulário mais adequado.

Mas as fotografias lá estão no álbum próprio e uma delas, em caixilho, a dois, permanece na cómoda do quarto em lugar destacado, a par duma outra em que a Sónia, de quatro anos, sentada num banco de estúdio, faz o gesto da “pitinha põe o ovo”.

Mas no dia do casamento, nesse tudo tinha cor e luz; tudo era novo e brilhante. Se em algum lugar assim não foi, nada constou, excepto o preto e branco dos seus fatos de circunstância, mas mesmo esses tinham matizes em que o futuro não era beliscado, pelo contrário, davam o tom solene do evento, fazendo deles únicos e de profícuo destino.

A celebração religiosa teve vestes de panos brancos e de aleluias pelo ensejo que as Escrituras guardam, mas também por assumirem eles essa ressurreição comemorada para uma nova vida reforçada com o casamento.

- Vivam os noivos! – Gritou Alexandre, já um pouco entrado de misturas alcoólicas.

- Vivam! – Responderam em coro os restantes convidados.

E os noivos abriram o baile com uma imitação barata duma valsa de Strauss.

Olhavam-se nos olhos com ternura. Efabulavam quanto aos dias felizes, aos filhos que haveriam de gerar e tudo o que mais permita a vida a partir daquele ponto azul, agora invisível, mas sempre tiquetaqueando no peito, que é o ninho de ambos, novinho em folha, como é o bairro, a rua e o que demais esperam do futuro.

Não passava o enlevo para os convidados, que por estas ocasiões apenas querem festa, incluindo Alexandre, que vai correndo de mesa em mesa com mimos para as solteiras.

Para os noivos é diferente: já desejam ficar a sós, tocarem-se, para além dos fatos obrigados pela cerimónia, na pele que adivinham tentadora de prazeres não saciados por qualquer valsa, por mais apaixonada que seja.

Em casa, no ninho azul, só haverá lençóis bordados nas orlas e travesseiras de igual modo desenhadas a fio de seda. A ocasião é única e o casamento é para toda a vida. Ainda há pouco o juraram na igreja e por isso trocaram alianças e beijos de compromisso. Mas os beijos em que agora pensam são de natureza mais simples e pagã, de promessas bem distintas: precisam das labaredas que o desejo ateia e faz dos corpos almas transpiradas até se abandonarem de cansaço, prazer e satisfação de todas as dores e males que possam existir, num êxtase semelhante ao que hoje ouviram do padre na celebração religiosa da Missa Pascal, que precedeu os votos que ambos fizeram.

Era já tarde noite quando a festa terminou. Vieram então despedidas conforme a condição de cada um mas todas renovando os votos de felicidades, com mais ou menos perdigotos saltando das bocas, com mais ou menos embargos da fala, todos bem comidos e melhor bebidos. Estava na hora de cada um voltar ao seu lugar, incluindo os pais dos noivos que não “queriam incomodar” e tinham contratado já um carro de aluguer para os levar de volta à aldeia.

A casa cheirava ainda a tintas e vernizes, haveriam de trocar esses odores por perfumes próprios como os animais fazem para marcar o terreno. Tirando esse pequeno incómodo, a casa estava perfeita. Tão perfeita como a vontade de a habitar e, por fim, poderem dizer: a nossa casa.

quinta-feira, 21 de março de 2013

TELAS FINAIS - O NEGÓCIO

No escritório, o empreiteiro em pessoa veio à porta receber o jovem casal. Era um tipo de meia-idade, obeso, de cara redonda e vermelha, a bem dizer, mais a ponta do nariz, onde pequenas varizes azuis sobressaiam, do que as faces bolachudas e descaídas para o pescoço flácido e rugoso como uma persiana. Esfregava as mãos sapudas em concha ao mesmo tempo que mostrava um sorriso de imitação cheio de dentes amarelos.

- Casadinhos de fresco, hem?

Beta não abriu a boca. Apenas fazia um sorriso forçado sempre que o empreiteiro a fixava com olhar que lhe causava nojo. Foi José Cruz quem assumiu o diálogo:

- Casamos para a semana, ainda somos noivos.

- Nesse caso em que posso servi-los?

- Uma casa. Queremos comprar um andar.

- Ora é isso que eu faço. Têm algum em vista?

- Praticamente.

- Há muito por onde escolher. Mas entrem e sentem-se, tenho fotografias.

- Nós já temos uma ideia. Os prédios azuis da rua de cima são seus, não é verdade?

- Os prédios azuis, os prédios azuis… material de primeira. Tão jovens e já sabem o que é bom!

O homem vendia o seu peixe de forma descarada. Todos os prédios são feitos dos materiais que sobram de outros prédios e os azuis não são excepção.

- O quinto direito. Tem uma placa na varanda…

- É o que eu digo: os jovens sabem mais que os velhos. O quinto direito, o quinto direito. É o melhor!

Calisto, o empreiteiro, sócio gerente da empresa Calisto & Calisto, Ldª., cujos sócios são, além do próprio, a sua excelentíssima esposa, que de casas percebe, como costuma dizer em privado, o mesmo que de lagares de azeite, sendo que nunca viu ou esteve perto de tais engenhos.

Sentindo que o negócio estava garantido, Calisto falou longamente sobre as excelentes condições do local, dos acessos, da proximidade dos principais serviços públicos, das lojas que ali iriam abrir, da óptima fracção que era o quinto direito, “a melhor de todas!” e, claro, da supervisão do Engenheiro Valência que, teve o cuidado de sublinhar em tom tão magoado como fingido, o advertiu para o baixo valor, muito próximo do preço de custo, que ele, Calisto, estava a pedir.

- Há um pequeno senão, certamente já repararam, as casas degradadas ao fundo da rua. São de gentinha que viveu sempre ali e acha que por isso tem o direito de nos explorar, pedindo agora milhares de contos para abandonarem o local.

- Isso a nós não nos faz qualquer diferença.

- Eu sabia, eu sabia, rapaziada nova quer lá saber disso. Mas aquilo vem abaixo não tarda, que o Engenheiro Valência não brinca em serviço.

- E quanto pede o Senhor…

- Calisto

- O Sr. Calisto, pelo quinto direito?

- Rapaziada nova, rapaziada nova… oito mil contos, sem garagem.

Pela primeira vez desde que entraram no escritório, José e Beta olharam-se de frente: ele com cara de “o que dizes” e ela com a de “tu é que sabes”. Na verdade não era sítio para conversas, por isso José Cruz rematou:

- Amanhã vimos cá dar resposta.

- Muito bem, muito bem. – Aceitou Calisto despedindo-se – Olhem que há por aí muita gente a vender gato por lebre…

As manhosas dúvidas de Calisto não tinham fundamento que não fosse a própria ganância e a arte de vendas aprendida nos antros da especulação e da esperteza saloia, que foi a sua escola.

Quando no dia seguinte o casal regressou ao escritório Calisto & Calisto, Ldª para confirmar o que confirmado estava, ambos exibiam um sorriso de orelha a orelha, o empreiteiro percebeu que o negócio estava fechado.

Os pais de José Cruz amealharam durante uma vida de sopas e côdeas. Agora resolveram abrir os cordões à bolsa, como o tinham feito já na altura em que o filho foi estudar para a cidade, verdadeira razão de tão sacrificado aforro. Valera e continuava a valer a pena pelo Zé, único filho, bancário de profissão, com uma bela carreira à sua frente, mas por enquanto a precisar dum empurrão, de um impulso, como fazem os pássaros aos filhotes maduros nas primeiras tentativas para abandonarem o ninho.

- Viemos para sinalizar o andar.

- E já trataram do empréstimo com o banco?

- Eu sou bancário, está tudo tratado.

- Cá me parecia que a sua cara não me era estranha…

Calisto esfregou as mãos em concha, como sempre faz quando a vida corre de feição, e tirou duma gaveta a papelada para a celebração do contrato.

Daniel Filipe diz em A Invenção do Amor: “Segue-se um programa de música de dança”. É o que acontece durante as próximas semanas com José Cruz e Maria Alberta.

Sem outro pensamento que não seja casa, casamento, papéis e registos, convites, testemunhas, assinaturas, compromissos, tanta coisa para garantir a felicidade e convoca-la para toda a vida!

A felicidade é um baile: roda, roda, roda sem parar, até a cabeça tomar o ritmo da roda, igual ao ritmo do mundo, sempre volteando em busca do equilíbrio e da ventura.

Continua

quarta-feira, 20 de março de 2013

TELAS FINAIS - COMEÇA A VIDA

Quando à tardinha saiu do emprego, já o nosso bancário levava em mente a fórmula mágica de pedir Beta em casamento. Tinha falado com o seu gerente e estava praticamente tudo apalavrado: o empréstimo seria aceite e descontado em prestações mensais no ordenado, com juros bonificados, que assim procedia o banco com todos os funcionários.

Ainda teve tempo de ir a casa mudar de roupa, que tanto papel e conversa fazem transpirar como assentar tijolos, tirar a gravata para se sentir mais confortável e dar aqueles toques de arranjo, próprios de quem quer agradar e tem na aparência jovem a melhor forma de o demonstrar.

Todo o cuidado era pouco para que a conversa fluísse natural. As palavras tropeçavam-lhe no cérebro a quererem sair ao mesmo tempo e o pior seria que assim fosse, deitando tudo a perder. Primeiro falaria do empréstimo e só depois a proposta de casamento. Desta forma seria irrecusável para Beta, pensava. Teria tempo bastante. Por enquanto ainda ela se curvava entre agulhas e dedais e só por volta da hora de jantar chegaria a casa.

E se fosse esperar a bem-amada à saída da fábrica? Era uma boa ideia, mas não saiu da sua imaginação: foi Alexandre o autor da sugestão, que de psicologia feminina é enciclopédia actualizada. Por estes anos de euforia cega, Alexandre Monteiro não tinha ainda trabalho certo. Fazia biscates de mecânica automóvel e, boa parte dos seus êxitos com as mulheres, eram devidos às “bombas” por ele conduzidas para experimentação, em revisão, que lhe confiavam os clientes.

Encontraram-se os dois amigos de forma que nos atreveríamos a classificar de casual, se não fosse o hábito e a constância diária de tais encontros.

- Vais busca-la e falas com ela pelo caminho… Fica a conversa mais arejada.

Comemoraram aquele momento de felicidade antecipada com umas quantas rodadas de imperiais e despediram-se com um abraço franco e cúmplice, de grande amizade também.

- Primeiro a compra do andar, não te esqueças – advertiu ainda Alexandre, ao mesmo tempo que procedia à ignição do topo de gama que lhe fora confiado para mudança de filtros e óleo.

José Cruz disfarçou com uma pastilha de mentol o hálito da cerveja e pôs os pés a caminho. Não tinha pressa e tinha, ao mesmo tempo, toda a pressa do mundo.

Bateram as sete da tarde e, poucos minutos após, já as operárias saíam em grupos de três e quatro, gesticulando conversadoras. José Cruz mal podia esperar, a Beta tardava. Saíam mais mulheres, dezenas de mulheres em passo apressado. Nunca teria imaginado que ali trabalhavam tantas operárias. No banco onde trabalha apenas resiste a D. Adélia no pbx, já de idade avançada, ex-bancária em Angola no tempo colonial, e quando se reformar de sortes a vaga será preenchida.

Ao contrário, da fábrica de confecções saíam mulheres e mais mulheres, muitas delas quase crianças. Algumas, não muitas, eram suas conhecidas e acenavam-lhe de longe com um sorriso de cumplicidade gaiata. Por fim a Beta, vinha sozinha e compunha dentro da mala algo impossível de ver àquela distância, mesmo se compreendesse a quantidade de coisas que ela guarda naquele mundo complexo que é uma mala de mulher. Embora um pouco contrariado pelo atraso, tal era a ansiedade, José Cruz olhava para a namorado embevecido. Apesar de trazer o cabelo apanhado no estilo rabo-de-cavalo, Beta estava linda como nunca. Muito branca de carnes mas toda ela torneada como uma estátua de marfim, bamboleando ao seu encontro. No rosto redondo sobressaiam os lábios desenhados a vermelho em permanente sorriso. Haveria de explicar que o atraso se devera ao acabamento dumas peças para entrega no dia seguinte. Com a pressa, não reparou na falta de linha na canela da máquina e, como então lhe ocorreu pensar, quanto mais depressa mais devagar…

Reconheceram-se no mesmo instante mas só ela fez cara de surpresa.

- Que fazes aqui, Zé?

- Venho esperar-te, não te agrada?

- Claro que sim, mas… quando a esmola é grande…

José Cruz rebentava já se não contasse o motivo que ali o trouxe:

- Queres casar comigo?

O tempo de espera acabou por lhe baralhar a ordem das propostas tão bem ensaiadas e aconselhadas pelo amigo.

- Estiveste a beber?

- Não… sim, mas…

- Não, sim, em que ficamos?

- Não comeces já com essas coisas, não é nada disso, o assunto é sério, Beta.

José Cruz parou um pouco, respirou fundo, colocou a mão no ombro da namorada e assim esperava ir direito ao assunto que, de forma tão atabalhoada tinha iniciado pelo fim. Sentia-se agora mais seguro de si e tinha todo o tempo do mundo para detalhar os seus planos.

Beta aninhava-se naquele seu cantinho entre o braço e o peito do namorado, sentia por fim o conforto que não teve durante o dia de trabalho, entre os trapos e o barulho das máquinas em permanente taque, taque, taque, quando não dos berros do patrão ou do chefe de linha para que acelerasse, para que se lembrasse que alguém estava ali a pagar cada minuto de menor rendimento, cada suspiro que interrompesse a produtividade.

- Falei com o meu gerente e o banco vai conceder-me empréstimo para compra de um andar.

Ela sentiu que o braço dele a apertava com mais força à medida que falava. Com maior ternura também. Estava mais do que justificada a imprevista espera de hoje.

E por que não nos casamos primeiro, Zé?

Beta optava pelo o sentido prático das coisas, pois que o casamento nunca esteve em causa, mas tão só à espera da melhor oportunidade, e prosseguiu:

- O empréstimo fica mais acessível concedido ao casal… Podemos marcar já o civil e…

José Cruz tinha sido ultrapassado, mas disso não se importava, bem pelo contrário. Nestes assuntos as mulheres são bem mais objectivas e era escusado fazer as voltas do rio torto para chegar à solução que, sem o terem alguma vez conversado, era algo que ambos há muito guardavam e aguardavam.

Haveriam de casar-se pela igreja daí a pouco mais de meio ano, no Domingo de Páscoa. Já o sabemos nós; hão-de eles combiná-lo quando o tempo amadurecer e eles acharem oportuno.

O tempo corria por conta própria por isso poderiam também eles inventar o tempo e percorrê-lo a passo, conversando, dando tempo ao tempo.

Já entravam por caminhos de novas construções urbanas, talvez o local onde, sem o saberem ainda, queriam assentar arraiais e fazerem-se à vida.

Ali, onde há meia dúzia de anos era mato, árvores de fruto do lado de cá e mais ao longe se erguiam sobreiros, eucaliptos, plátanos e, de quando em vez, uma ou outra tília, está agora povoado de prédios de muitos andares, perfilados como pelotões militares, à espera de dono, como reza o cartaz de caixilho desengonçado à entrada da urbanização e, por enquanto, a fazer sombra ignorada por árvores de judas, chorões, jacarandás, tílias e outras espécies de que nunca viremos a saber a graça, por definharem e morrerem antes de deitarem rama, tendo a estaca por única companhia.

E foi por estes itinerários que Zé e Beta se aventuraram hoje. Se lhes contássemos o que acabamos de descrever, tê-lo-iam negado. Os seus olhares procuravam um ninho, um lugar lá bem no alto de um daqueles prédios enormes e de cores bizarras. O resto não é da sua conta, é o que pensam.

- Aquele, um T3… a família cresce e a mobília virá aos poucos. – Improvisava ele perante o ar embevecido da namorada ou, melhor dizendo, da noiva, que sobre esse assunto já não resta qualquer dúvida.

Para que nos entendamos, estes prédios não são ruins pelo tamanho ou pela opção cromática, não, o dano de que falámos é a adulteração do espaço urbano, a descaracterização da traça identificadora de um dado local, duma povoação e da cultura e da memória dos seus habitantes. Além disso, de outros males falamos agora, é a tratantada, em número igual ao dos tijolos utilizados, que foi necessária para justificar a sua construção.

Mas não é esse o assunto que preocupa o nosso casal. Quase ninguém dá importância a duas portas abertas na mesma direcção do vento; sabe do prazer da corrente de ar, se o calor for de causar suores. Na verdade, poderá mais tarde maldizer uma constipação ou até uma pneumonia. Na maior parte dos casos culpa esse desgraçado anjo decisivo chamado destino.

continua

terça-feira, 19 de março de 2013

TELAS FINAIS - DINHEIROS E MAIORIAS

O início dos anos 80, do século XX, deu à democracia portuguesa nova roupagem e linguagem a que já nos tínhamos desabituado há meia dúzia de anos. Era o tempo e a ânsia de sermos Europa, mesmo que para tanto deixássemos de ser Portugal.

Os olhares matreiros e de soslaio, o dinheiro a rodos que pingava de todos os lados e o neoespertismo nacional, preenchiam notícias e ganhavam terreno nas ruas, nas empresas e no aparelho de estado. Nisso as autarquias não fugiam à regra. Fundadas em legislação democrática, cedo se tornaram verdadeiros polos de desenvolvimento, geradoras de crescimento e progresso em benefício das populações, cujas carências, especialmente no interior, obrigavam a um esforço empenhado e colectivo dos cidadãos e autarcas. Outras, porém, mereciam outro tipo de atenções.

Os PGU’s começavam a ser aprovados, mas havia, nestas últimas, quando não resistência, pelo menos a atitude displicente que tanto podia ignorá-los, como alterá-los dum dia para o outro.

O mais importante de tudo era o “negócio”, a oportunidade de compra e venda de terrenos; de locais para demolir, alterar, construir de novo, o tempo daqueles que, olhando aos próprios bolsos mais que às almas das freguesias, compravam quintas e quintinhas, cobiçavam locais de alto rendimento em zonas urbanas. Para tanto era necessário um amigo na autarquia ou que sobre ela tivesse influência decisiva.

Da noite para o dia algum solar desabava a camartelo, algum prédio crescia como se fosse elástico, algumas árvores pareciam ter sido engolidas pela terra mãe, não fossem os vestígios de serrote. Não tardaria, muito mais rápido do que seria de esperar, que os altos prédios, como grades de cerveja empilhadas, não se mostrassem como novos habitantes do espaço, arrogantes e iguais, iguais e arrogantes, sem qualquer parentesco com o que ali sempre existira, de tudo fazendo igual, igual, igual e incaracterístico.

Era o tempo dos tijolos e das vigas de betão armado, para os quais não há ciência humana, lei ou limite, estética ou cércea.

Por esta altura dava José Cruz os primeiros passos na banca. Um rapaz vivaço dentro do seu fato completo. Atendia ao balcão com simpatia a todos por igual, que assim mandavam as regras impostas pela gerências e os princípios que trouxera da aldeia. Depressa passou a efectivo. Na fila para o gabinete do gerente eram quase sempre as mesmas respeitadas criaturas. Iam pedir dinheiro vivo. O progresso exigia uma rua seguida de outra rua e logo um bairro e outro bairro, aqui, ali, uma cidade em cima doutra cidade. José Cruz via esta gente entrar e sair vermelha de sorrir, estalando ruidosamente as mãos após a assinatura dos contratos de novo empréstimo, e presumia que a felicidade dos clientes era também a sua, a da sua família, não tardaria muito.

Na Câmara Municipal pontificava uma qualquer eminência parda, de nome Valência, que engenhava, cortava, abria e dava azo a esta correria desenfreada.

- Falou com o Valência sobre aquilo que lhe pedi?

- Ele não fica prejudicado…

- Ah, claro que não! Ele sabe que pode contar com a instituição.

- As coisas são assim mesmo: onde há cinco pisos, há seis…

- Ou sete!

Agora não podiam deixar de soltar uma gargalhada cúmplice, agarrados de mão direita, cliente e responsável do banco. Pela algazarra que invariavelmente acompanhava a despedida, todos os funcionários olhavam com discrição, procurando não melindrar os clientes do balcão, para a porta do gabinete do gerente.

Sendo nesta altura frequentes este tipo de atendimentos vip, a verdade é que todos aqueles homens se assemelhavam: vermelhuscos de carnes, caras de lua cheia, barrigas alarves e linguagem que soava a falsete, para além dos escandalosos pontapés na gramática.

Primeiro os pedreiros e serventes, depois carpinteiros e armadores de ferro, todos vão subindo à medida que os edifícios tomam altura. A empreitada é de sol a sol; de sol a sol os vemos como artífices da obra nova. Algum tempo após o edifício fecha-se como um casulo. Tem então a forma definitiva de prédio urbano e gigantesco. É o tempo de estucadores, electricistas e pintores darem o seu melhor em igual empreitada oculta e silenciosa. Não tardará que a cidade ostente chamativos cartazes anunciando o empreendimento aos melhores preços por fracção e condições extraordinárias de financiamento.

E aí estão os novos gigantes, talvez como aqueles de que fala o livro que José Cruz poderia ter lido num Domingo de Páscoa ocioso, não fosse a sua falta de hábitos de leitura, a ocupação dos seus sentidos com outros monstros invisíveis, que povoam as entrelinhas das circulares do banco e, no melhor sentido, a proveitosa conversa com Beta.

Quando pela manhã o sol bate na fachada dos recém-criados mordomos da cidade, a luminosidade das suas cores berrantes ferem de morte o nosso olhar. À primeira vista dá a sensação que Deus enlouqueceu e naquele mesmo instante os pintou de cores diabólicas como castigo por todos os pecados que por dentro contraíram, desde o mais fundo alicerce até à última telha colocada.

Serão em breve habitados por todos os querem casar, experimentar o que agora é mais moderno ou simplesmente mudar de ares, que a banca facilita e até incentiva. Por enquanto, estes que pela demanda de casa nova se acercam dos escritórios da especialidade, estão todos em pé de igualdade quer para a banca, quer para os empreiteiros e vendedores. Tarde de mais saberão que assim não é. Mas isso são contas de outro rosário. Esse tempo virá depois.

- É só facilidades…

- É dinheiro a girar, meu amigo, é dinheiro a girar…

Era um diálogo avulso ouvido por José Cruz ao balcão do banco.

- E por que não eu entrar num negócio destes? – Pensou –.

Não havia mãos a medir para tanto cliente ávido de um andar, pequeno que fosse, e dele pudesse dizer com orgulho, “é meu”. É certo que muitos se ficavam pela satisfação de dúvidas e logo desistiam para não esticarem demasiado a corda dos seus proventos. Agradeciam as explicações, levavam uns prospectos para lerem em família e por aí ficavam.

Mas também havia os que se aventuravam sem cuidar de fazer contas, tal era o entusiasmo criado pela propaganda da banca, nos cartazes que cercavam a cidade e o boca-a-boca constante sobre tais novidades. A verdade é que ninguém queria ficar para trás.

A oposição na autarquia marcava agenda com inúmeras ilegalidades e compadrios. Falava até do endividamento e desnorte, que a uns beneficiava, a outros iludia e à grande maioria prejudicava.

O entendimento da maioria, porém, era outro bem diferente.

Segundo estes, o progresso era evidente, os cidadãos respiravam sorrisos de contentamento e, como ainda há pouco se ouvia no banco, o dinheiro gira, gira, gira.

E é tanto assim, que a maioria dos eleitores voltou a eleger aqueles que tanto bem-estar proporcionavam. Eis como José Cruz raciocinava.

Os relatórios municipais transbordavam de números, cifras e demais arengas, que quantificavam a grandeza e o regozijo de um mandato de sucesso. A maior parte das vezes era Valência que elaborava os dossiês e os apresentava como fabulosos documentos de prova da excelente gestão autárquica. Valência procedia como os generais que após a batalha, tendo garantido o seu quinhão nos despojos, contam as espingardas e desdenham dos soldados que as empunharam, para anunciarem vitória sobre o inimigo. A maioria e o presidente exorbitavam com tal progresso, tanto empreendimento. Depois de tanta promessa podiam dizer que a obra aí estava. Evidentemente uma grande obra.

O órgão deliberativo assim o confirmou. A maioria e todos os que de juntas de freguesia eram presidentes se levantaram, e já não era sem tempo, que os rabos doíam de tanto assento, dando com a sua levantadura aval à nobre causa. Nada que não fosse esperado de tão fidedigna gente.

continua