segunda-feira, 31 de outubro de 2022

AS EMENDAS


Quando um dia dei por mim,

já compunha rimas em versos,

digo versos ou coisa assim,

que depois, juntos ou dispersos,

se fizeram à vida, cada qual por si,

a tal ponto que hoje em dia

já não me pertencem, já os perdi

e há até quem lhes outorgue a autoria.

 

Mas regressam quando lhes dá gana,

lambuzam-me de beijos, como gatos,

e quase me sufocam, os filhos duma cana!

-pai, pai, dizem – vai buscar os pratos;

temos fome de metáforas e de rimas,

quem nos faça festas como tu fazias…

E eu, que remédio, acolho as obras primas:

rais partam as rimas, rais partam as poesias! 


 

terça-feira, 18 de outubro de 2022

BONECA DE TRAPOS


Se tivesse que escolher – tarefa ingrata – de toda a traquitana

seria, com vantagem, a boneca de trapos a minha eleita:

carão de rosas rubras, pobre remendada, qual franciscana,

saia de chita garrida e rodada de mil farrapos feita.

 

A boneca de trapos era um primor. De uma blusa fininha,

pendia um braço arrancado, faltava-lhe uma sobrancelha

por excesso de amor. Foi sempre assim até ficar velha. 

Digam o que disserem, a boneca era linda porque era minha.


 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

LUZ E SOMBRA


Como vou dizer-te que os braços são asas cadivas,

se os teus olhos, estrelas antigas, estão ausentes?

Morto é o silêncio; a natureza é o som das coisas vivas

onde todos os gritos e penas estão presentes.

 

Não sabes onde mora a luz e que tem isso a ver 

com a sombra? A luz e a sombra já não são paralelas;

são cortinas de pano cru para o que der e vier,

de cretone, de cambraia, tudo dependerá das janelas. 


 

terça-feira, 11 de outubro de 2022

CHORO DE CRIANÇA


As lágrimas das crianças não têm uma ordem definida:

a regra é que possam ver-se derramadas, copiosas,

de resto, as primeiras não são como as que virão em seguida

e as que vierem depois são de sono, repetidas, melosas.

 

Depois de enxutas, as pálpebras colam, que bom é o braço

da mãe. Logo vem um par de asas, um pássaro enorme

e o rosto da criança voa (é um anjo) a sono solto no regaço,

que importam agora as lágrimas, que importam? O menino dorme.


 

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

A GUERRA


 

A guerra tudo devora; nada é à prova de bala neste mundo:

esmaga os ossos, a carne e as sombras que projecta.

O seu rosto é o pó e a cinza, restos de sangue imundo,

no prometido lugar azul uma mancha viscosa e preta.

 

Até hoje, nenhum soldado ganhou uma guerra. Os generais

são os vencedores em todas elas: coçam-se, riem do povo,

exibem os galões e os dentes escovados nos telejornais

e falam de coragem, de valentia alheia feita de sangue novo.

 


 

domingo, 2 de outubro de 2022

À QUEIMA-ROUPA


Uma bala nunca vem por bem

e se apontada na nossa direcção,

nada a desvia ou detém,

de fingido afecto toca-nos o coração.

 

Uma bala nunca vem por bem,

galga o espaço, imita um assobio

e se nada a desvia ou detém

cumprirá a sina da pólvora que a pariu.