quinta-feira, 28 de junho de 2012

A MORTE



Pode a morte não ser coisa agradável.
Só mentindo ouvi quem a desejasse,
para chamar a atenção dos achaques
que moem de morte a vida.
Mas nunca ouvi quem dela contasse,
como experiência própria,
possíveis dores ou moléstias, desvantagens,
dessa ausência de respiração.
Dá para ver que não aceita alternativa
e só por isso, admito, não será flor que se cheire.
Tenho-a olhado pelas lágrimas dos que ficam.
Dela falarei se me garantirem de forma mais democrática
de que só se morre duas vezes.

terça-feira, 26 de junho de 2012

OS DESENHOS



Os desenhos que me encantam
são traços que a memória vai tecendo.
À primeira vista quase nunca os entendo;
vejo o que me apetece: tudo e nada.
Só de os pensar, dedilho-os como renda de bilros.
Dizem-me os desenhos que me espante, que me evada.
Não, isso não!
Serenamente vou tecendo, construindo o napperon
de teias de algodão e espero
sento-me depois para comemorar
já saciado.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

BUGANVÍLIAS




Podia chamar-lhes sinos se não fosse a haste
(não a alma)
que as eleva, se não fosse pagão o meu quintal.
Sobem as paredes, voam como podem.
Toda a fragilidade se transforma em volúpia,
o pátio enche-se de vermelhas mariposas.
Esta manhã são a causa essencial do meu sorriso.

sábado, 23 de junho de 2012

AS FLORES



As flores, o cheiro das flores
e a perfeição que exibem sem vaidade.
As flores são o contrário do mundo, digo
a pulcritude da terra áspera que as impele
para a luz do sol e dos meus olhos.
As flores são o contrário do que morre,
do que fere e do que sangra
(pode ser suor apenas, mas sangra sem o sabermos)
dentro de nós que as cheiramos e admiramos
pétala por pétala a sua beleza natural.
São tudo isso as flores e são também faróis de esperança
que trazemos no olhar até que a morte nos junta.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

POESIA DE VIAGEM



O céu e as árvores;
as árvores, o céu e as casas,
algumas casas, pouquíssimas.
A memória raramente guarda as casas;
a memória apenas espreita pelas janelas.
Não se vê gente no céu ou nas árvores
e não se sabe se as casas têm gente.
Não se vêem vestígios de gente.
Ainda tenho esperança em que alguém apareça
vestido de céu, de árvore ou de casa
e me abrace, dizendo:
bendito seja o teu regresso!
Saberei então que a viagem chegou ao fim.

terça-feira, 19 de junho de 2012

NOTICIÁRIO



Que digo de mentiras e vilezas?
Que direi se minto sobre as dores
que me concedem e eu concedo,
de vontades que não vejo alcançadas,
se por andar esmago vidas, não a minha,
que as outras vou pisando sem dar conta.
Direi pouco, muito pouco:
sejam vis e mintam, mintam-me!
Não será maior a minha dor
que a vontade de vos pisar.

domingo, 17 de junho de 2012

MANIFESTO



À frente, os da frente com bandeiras e protestos,
os de trás vão em frente com mais bandeiras.
Quando agitam as bandeiras todos protestam,
todos são a voz que exige, o punho que confirma.
A luta é exigente, o frente-a-frente:
à voz de em frente marcha toda a gente
ou há gente que a passo fica para trás?


Vamos em frente, protestos, bandeiras e voz,
todos, a nossa gente é toda a gente:
os que vão à frente e os que dão um passo em frente!

sexta-feira, 15 de junho de 2012

JORGE DE SENA


Jorge de Sena não saiu de casa
dia dezoito de janeiro de mil novecentos e setenta.
O mesmo aconteceu em 7/12/70 e 1/12/1974.
É possível que também assim tenha procedido
noutras ocasiões, não posso garanti-lo.
Consequência de Sequências.
Copiei os seus versos a lápis,
o livro era caro para as minhas posses
e guardei a sebenta durante algum tempo.
Reencontrei-a num aniversário recente da sua morte,
em Santa Bárbara, Califórnia,
em quatro de Junho de mil novecentos e setenta e oito.
Longe portanto de saber deste meu arrojo,
provavelmente arrependido por não ter saído de casa
durante aquele ror de dias
para espairecer e escovar da alma o pó,
evitando assim cuspir poemas, cuspir nos poemas
e legar-nos cuspidelas poéticas.
A saliva, é certo, tem qualidade literária,
mas não se cospe no poema que se escreve.

terça-feira, 12 de junho de 2012

COMBOIO


Dois carris, uma travessa:
u-u-u, há quanto tempo,
quanto fumo, quanta pressa.


Falta lenha, contratempo:
u-u-u, a água já condensa,
passa-tempo. passa o tempo.


Se leva gente? Homessa!
chega a tempo, chega a tempo,
leva pressa, leva pressa.


Já chegou, vem à janela,
vem à tabela, vem à tabela.


U-U-U-U-U U-U-U-U-U

sábado, 9 de junho de 2012

CAMARINHAS



Quero lá saber que as camarinhas
não sejam o fruto do pinheiro…
se o erro de botânica é grosseiro,
as memórias do fruto são as minhas.


Não lhes chamei pérolas de fantasia,
pois se acres, doces eram e tão a jeito,
p’ra quê estragar o bom proveito?
- Chamo-lhes agora, que é poesia.


No pinhal, um piquenique de bolinhas
brancas de sabor meio esquisito,
não se compara a pasteis com palito
em nada, este manjar de alvas camarinhas.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

PUXÃO DE ORELHAS


Tenho felizmente bons amigos. Generosos na sua maioria. É o caso do Celestino Alves, de seu nome completo Álvaro CELESTINO ALVES de Castro. É um jovem com perto de cem anos a quem não vejo há uma dúzia bem aviada…
Em meados de 80 do século passado, aquando da edição em livro de CORPO DE POEMA, o Castro, assim o trato, editou também PUXÃO DE ORELHAS, um magnífico livro de quadras populares. Reli-o há dias e comovi-me com a dedicatória que então me fez. Venho hoje partilhar convosco este meu contentamento e, ao mesmo tempo, transcrever uma das muitas quadras do livro, perspicaz e actual, como é o seu autor.

“Dos fracos não reza a história”.
Discordo! A História reza
que os fracos, p’ra sua glória,
fazem forças da fraqueza.

terça-feira, 5 de junho de 2012

COM PASSOS DE CARACOL


Toca a andar
que toca a todos
por igual
um toca
e os outros na toca?
ou toca a todos
ou ninguém toca

e o caracol lá vai:
troica troica troica.



sábado, 2 de junho de 2012

CEREJ/ZAS


Cerejas, para que possam reconhecê-las,
são pequenas luas doces e vermelhas,
que tanto podem tingir a boca ao comê-las
como pender aos pares nas orelhas.


Cerejas são a carne de um desejo,
dum abraço a que a memória nos convoca.
São, além do mais, um lábio, um beijo
e a sede que a sua ausência nos provoca.


Ah, a sede, pois, hei-de falar dela um dia,
quando suplicantes cachos irromperem
neste pomar de empréstimo, estufa fria,
onde os lábios secam e as cerejas morrem.


Então gritarei se ainda valer a pena, vede:
estas sempre foram o vosso desdém da sede.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

DOR DE AUSÊNCIA

Imagine-se um qualquer objecto, complexo ou vulgar, que desperta em nós um desejo irresistível de o possuir, de o tocar a todo e a qualquer instante, de o olhar como seu, como parte de si. Agora, que este objecto é definitivamente algo que não nos pertence, nunca nos pertenceu. É um objecto de culto. Haveremos de imaginar que é nosso todo o tempo em que o arrebatamento permanecer. Dói que não nos pertença. Diferente é se o objecto, aquele de que falávamos, nos pertence por inteiro, nos permite por isso o contacto permanente, talvez o afago, o olhar embevecido durante o tempo e no local que bem nos aprouver e, de forma brusca, o perdemos. A isso chamo dor de ausência. Assim somos. Perdi as Teses do III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro em 1973. As Teses reunidas em capas próprias, por temas, não os livros que com elas foram depois editados, que o Dr. Vasco Silva recolheu e generosamente me ofereceu então, uma vez que não pude participar lá, na cidade da ria. Talvez as Teses sobrevivam ocultas por trás duma estante ou por baixo dum amontoado de papéis abandonados em tanta mudança dos últimos tempos. Talvez estejam ainda intactas e com os separadores que lhes ia colocando, fazendo separação entre trigo e joio. Talvez estejam ainda à minha espera em pródigas mãos para me serem devolvidas, talvez com um sorriso nos lábios de quem, sabendo o valor que lhes atribuo, espere em troca um sorriso meu de perpétuo agradecimento. Talvez tudo isso ou coisa alguma. A verdade é que por enquanto a sua ausência me dói. Muito.