terça-feira, 30 de outubro de 2012

FÓRA DAQUI!



Estes, que de espontânea geração
se implantaram de unhas afiadas,
sem pátria, rosto ou nobre condição,
erguem barreiras, intransponíveis paliçadas
a mando de medonhas divindades
e novíssimos coios emergentes.
Se for o caso, faremos as nossas barricadas
e mandaremos até tocar trindades,
armados de mil razões e alma até aos dentes.

Acabou o tempo, cães imundos!
não há mais lugar para indulgentes elogios!
Enquanto é tempo oiçam nos gritos profundos,
o repúdio, as vais de revolta, os assobios,
que não queremos saber mais de novidades
da morte que em vós nos vai matando
ou impostos falsamente vitais e urgentes.
Nós somos daqui em todas as idades,
feridos, é certo, de quando em quando.
Esparta não tinha rampas para deficientes.

domingo, 28 de outubro de 2012

FALSO POEMA SOBRE A CHUVA


Pobres nuvens, estas que choram
compulsivamente sobre as ruas,
já de si cobertas de lágrimas.

Pobres nuvens desfeitas
em lágrimas desfeitas.

Encharcadas até aos ossos
de água e sonhos
que escorrem na valeta, por esta ordem,
e pela ordem inversa
quando o ofício é osso duro de roer.

A verdade é que as nuvens não cessam de chorar
as lágrimas que já não temos
por tudo o que nos molha
e que afinal é chuva sem poesia alguma.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

PARTIR DO ZERO



O sol não aquece
o frio não gela
o rio não corre
as estrelas não brilham
as aves não voam
o fogo não arde
e o lume das nossas mãos
tem chama que não queima
os frutos não amadurecem
os sinos não dobram
as horas não passam
as bocas não falam
o vento não sopra
a carne não sangra
a fome não passa
e esta estrada não leva a lado nenhum
as palavras não gritam
não gritam os homens

o melhor é começar de novo:
partiremos do zero
p’ra ver o que isto dá.



terça-feira, 23 de outubro de 2012

EXPECTATIVAS


Bolas não numeradas
não são do totoloto:
-bolas! que bolas bastardas
saíram ao gafanhoto.

Zero é coisa nenhuma,
jackpot é muita sorte.
Ele vê-se cada uma
nesta vida, que é de morte.

Da sorte, que eu conheça,
a fazer fé no gafanhoto,
só algumas dores de cabeça
e sonhos de totoloto.

Mas o tema não termina
com mais bicho, menos bicho,
que esta vida não é sina:
a passos? Não, isso é lixo!

domingo, 21 de outubro de 2012

NO CORAÇÃO DAS HORAS



Na Torre, onde faz tempo,
as horas batem por fora,
há um relógio por dentro,
que faz o tempo hora a hora.

Marca as horas boas e más
com preceito e exactidão
de frente, de lado e de trás,
faz das tripas coração.

Marca a vida em compassos,
em esperas e pontualidade,
retalha o tempo em pedaços,
fingindo não ter idade.

A idade (provado assédio)
é o que o relógio recorda
e não resta outro remédio,
que paciência… e dar-lhe corda.

sábado, 20 de outubro de 2012

PERSPECTIVA


Não é por pintá-lo que há-de
ser perfeito um qualquer dia,
muito menos p’la obliquidade
do sol é meio-dia.

Não é o mate da aguarela
que ilude a cor do outeiro,
nem a subtileza revela
possibilidade de aguaceiro.

O que há para ver é a casa,
as flores, o mundo perfeito.
Assim a gente se compraza
e bom proveito.



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

SEI DE UM BARCO



Sei de um bote, um barco ou um navio
repleto de soldados e marinheiros,
e de outros, que por destino ou extravio,
não foram muito além dos areeiros.

Sei de uma jangada de vela panda,
que os ventos enchem de areia e sal,
aparentando navegar, mas já não anda
e se dá pelo nome de Portugal.

Foi um pássaro que me disse, inquieto,
que a estibordo mete água, afunda
sem remédio, como boia moribunda,

sem se saber já se foi mal do arquitecto
ou se de outros infortúnios foi objecto
para tal sina e desgraça tão profunda.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A MINHA JANELA

Remeteram-me há dias por e-mail esta graciosa fotografia. Esse é o motivo que me leva a repor o poema "A Minha Janela", publicado há já algum tempo aqui no Corpo de Poema.


A minha janela fechada
tem todo o mundo lá dentro,
que os meus olhos e o tempo
guardam por tudo e por nada.

Se aberta de par em par,
a janela da minha casa,
dá-me alento e o golpe d’asa
que preciso para voar.

Vejo o mundo da janela
tudo o que mexe na rua
vejo o sol e vejo a lua
só de fora a vejo a ela



domingo, 14 de outubro de 2012

A IMPORTÂNCIA DAS PEQUENAS COISAS


A ravina do olhar com lágrimas,
essa mesma, a que permite a queda
do céu carregado de estrelas
sem nunca chegar ao fundo;
a ravina para onde empurro
tudo o que não quero ver ou sentir,
incluindo as lágrimas
e demais subtilezas da alma que há em mim
é onde guardo as pequenas coisas.

Há dias salvei de morte certa
o que restava duma folha branca
separada do bloco de apontamentos.
Escrevi um recado breve
e pu-la bem à vista de quem o precisasse.
Foi alvo de todas as atenções
durante o período activo de validade.
Depois afundou-se na ravina
do olhar com lágrimas, essa mesma,
a que permite a queda
do céu carregado de estrelas
sem nunca chegar ao fundo.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

MAR IMERSO


Vai batendo o mar da calmaria:
pesado, embate nos rochedos e deixa n’areia
plúmbeas manchas de azedume
e cólera que o seu fundo descobre pouco a pouco,
sedento duma brisa que o acorde e solte
em ondas sucessivas, em maré-cheia e ondas de feição.

Algum sal paira em círculos à superfície, não o bastante…
Falta o vento, falta o vento!



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

SEMENTES DE FOGO


Prescreveram todos os frutos; apodreceram!
Pior: quem se atrever a mastiga-los
morrerá logo ali corrompido de veneno imundo.

O pomar proscrito à nascença incendiou
de insolação, desfez-se de águas torrenciais,
enlouqueceu de suplícios em tempo de branduras.

Onde estão os frutos sãos, que tenho fome de os ver?
Que viveiro foi a louca morte das sementes?
Que paraíso é este de águas mornas?

Que resta agora por incendiar senão o coração dos homens?

domingo, 7 de outubro de 2012

ÁGUA, UMA AUTÓPSIA

Analisada a composição, em suma:
duas moléculas de hidrogénio
para apenas uma de oxigénio,
é água, sem dúvida nenhuma.

Pelo ar dolente dá para ver,
sofreu maus tratos e escravidões,
espargida por mil religiões,
contabilizada em deve e haver.

Desperdiçada, mal compreendida,
acolheu aqueles, que ao naufragar
lhe rogaram pragas de arrepiar.
Foi tudo na vida, tudo em vida.

Acarinhada no desvio ou conduto,
teve amores também entre o povo
hoje aqui, depois ali, sempre em recovo,
mas nunca por si, antes pelo fruto.

Tem cor esverdeada, sabe e fede
e alimentou o mundo mesmo assim,
morta-viva correndo para o fim,
a autópsia é clara: morreu de sede.



sábado, 6 de outubro de 2012

"PORTUGAL COM FUTURO"






Não se pode adormecer
na batalha p’la razão,
que hoje voltamos a ter
pelo trabalho e p’lo pão.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O MENINO

O menino disse: quero a lua
e a mãe não lhe deu atenção;
pediu pão o menino da rua
e a mãe deu-lhe o coração.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

PEQUENO INTERLÚDIO






Na seara, oiro sobre azul
parece coisa perversa,
são manigâncias do sul
dito assim ou vice-versa.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

ERA PARA TE ESCREVER E NÃO ESCREVI



O que tinha para te dizer eram uis, ais
de mim, e não os achei relevantes:
coisas miúdas, não tinha comigo vogais,
e a par sobravam-me as consoantes.

Esbocei ainda uma mão cheia de frases,
daquelas que insinuam outras, suspeitas,
e doutras que não são certezas, mas quases
e desisti por serem todas frases feitas.

Pensei: que lês tu do que eu te escrevo,
queres lá saber se morro ou passo fome!
O teu interesse não está no meu acervo,
mas lá onde haja ecos do teu nome.



segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O SOL E O SUL


Longe o sol e o sul, ambos bastardos!
Onde a seara loira, que é do pão?
Que não vejo senão veredas de cardos;
ao sul somente o sol da solidão.

A mentira é causa híbrida sem saída
deitada à terra, que se atira à cara,
seca de semente e fruto, inconcebida,
onde o sol e o sul brilhavam na seara.

Terra onde as papoilas detêm sonhos
e o sol ao sul brilhando ainda nos meus olhos.