quinta-feira, 29 de agosto de 2013

NOVE LUAS


Nove sóis de luz
nove sóis de Março
‘inda mal eu nasço
já além me pus
já além me pus

Nove vilas corro
nove vilas venço
e não me convenço
que um dia morro
que um dia morro

Nove ais de mim
nove encruzilhadas
mil enganos nadas
e chegou ao fim
e chegou ao fim

Nove meias solas
nove quase amores
novecentas dores
nove carambolas
nove carambolas

 Nove aguas turvas
nove nuvens rasas
dai-me as vossas asas
às primeiras chuvas
às primeira chuvas

Nove luas novas,
nove luas cheias,
são como colmeias,
novas caras novas
novas caras novas.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

COMO AS AVES


Muito haveria de matutar,
não fosse persuadido ateu,
ver bem vivas as aves voar,
que ao morrerem deixam o céu.

Mas assim é: efémero adejo,
etéreo e cheio de esplendor,
como é em nós claro desejo
viver a vida e morrer de amor…

Se, asado, permitisse a natureza,
seria libelinha ou beija flor:
batias as asas com destreza

qual redemoinho voador,
de peito aberto e sem defesa,
sentir fugaz evolar-se a dor.    

sábado, 24 de agosto de 2013

LARGO DE S. MARCOS


Não cristaliza o verso se não disser:
em s. marcos ganhei o meu primeiro par de asas
e a minha mãe trepou às nuvens
com os seus pulsos brancos de defunta

soube então pelos animais como se prende a vida
a um fio de água
a mesma água de alma verde do chafariz

ah  meu alpendre de granito quanta pena tenho
de te ter ultrapassado já mil vezes
(a minha avó dizia: vai só até ali
para a estrada não)
minha sala de visitas
cadeirão dos mais amigos

anda  vem comigo meu s. marcos
deixa de fingir encruzilhada
temos água  apenas água de saudade
memória de água e musgo
e o mundo a começar ali à esquina:

a esperança volta pontualmente
com as primeiras chuvas

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

RUA DE SANTA MARIA


A rua de santa maria cheira a hortelã
ao meio dia  a mesas postas esperando
e a suor autêntico ao fim da tarde

mas não sabe nada das suas irmãs ruas

rua dos chões
onde vivia o presépio

rua dos lagares
há sempre um par de calças por lavar

rua das cabeças
e preferida pelos pardais e pelos putos
- e que bem vão ambos de calções

rua do poço das covas
quem passa ilude-se subindo
há-de descer alheio na hora certa

rua dos passarinhos
sempre tão limpa e vazia
que segredos guarda?

rua dos cavaleiros
é possível o trote com tal inclinação?

hoje não se ouve o pregão dos agriões
nem do carvão de braseira
ela apenas saúda os nossos passos apressados
com as suas correntes de ar e as suas lágrimas
ao canto das janelas

terça-feira, 20 de agosto de 2013

MONTINHO


Um pássaro de vidro canta
a melodia que pode encantar
outro pássaro de vidro

um pássaro tem as penas que tem
suspensas  umas outras por cumprir
as penas que um pássaro tem

um pássaro não sabe que o cipreste
cresce em pose oficial
de diligências à porta da gaiola

um pássaro canta por falar
e não sabe por que levo ao arraial
uma flor vermelha com as ancas descompostas

um pássaro de vidro
ou uma rosa de plástico

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

BAIRRO DO CANSADO


Pelo Cansado vai à romaria
da Senhora de Mércoles  quando voltares
traz-me o torrão que eu tanto queria

e na Alameda triste como dantes
de dois sentidos no bom sentido
e tão mal sentidos nos restantes

insólito o seu ar magoado
mortiço d’alma o dia inteiro
morto noite dentro o bairro do Cansado

Só gramaticalmente vivo:
Cansado aqui

é substantivo

domingo, 18 de agosto de 2013

SENHORA DA PIEDADE


Senhora da piedade calça as alpercatas
que hoje é dia de mercado das batatas

senhora da piedade salta para a estrada
não queiras na capela estar sempre fechada

senhora da piedade não se ouve o tropel
dos jovens que enchiam o velho quartel

senhora da piedade olha o menino afoito
que caminhando diz duas vezes quatro oito

de ti só tenho uma curiosidade:
por que é que te chamam senhora da piedade?

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

PARA UMA MARCHA DA PRAÇA VELHA


Por aqui passa a gente
aos paços de antigamente:
passam cavaleiros  peões
ao trabalho  nas procissões
e com a gente a passar
passa o tempo sobre a praça
ai  já não temos vagar
p’ra lhe achar a mesma graça

ref.  S. Pedro tem as chaves
       da rua de Santa Maria
       e o povo tu bem sabes
       as chaves da freguesia

menino da rua nova
vai fazer a tua prova
vem p’lo arco de regresso
trocas as voltas do avesso
menino enquanto demoras
na praça  em cada quelha
o relógio bate as horas
que fazem a praça velha

ref. S. Pedro tem as chaves
      da rua de Santa Maria
       e o povo  tu bem sabes
       as chaves da freguesia

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O RELÓGIO


As andorinhas bordam sons
em pautas de improviso
nos fios da electricidade
- são as horas de música

o gigante emergido do casario
é como um velho farol
de largas sobrancelhas
- são as horas de fogo

às vezes são as horas necessárias
que procuro  outras
já não valia a pena
- são as horas repetidas

afinal não passou dum susto
hoje é sábado e
exactamente treze horas
- são as horas de sobressalto

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O PASSEIO


Quando vem Julho e Agosto e te vejo abertas as janelas
e nos peitoris tanta gente a sussurrar os desencantos
é que me lembram as flores  o cheiro da água
e que trazes um terraço no lugar do coração

Quando os nossos filhos embalam as bicicletas à beira-mãe
(- o menino já anda só em duas rodas…)
ou descobrem bichos amigos nos canteiros
é que me lembra o tempo que fez  o que faz
o que se deus quiser há-de fazer
e que trazes um terraço no lugar do coração

Quando as palavras dormem nos lábios dos velhos
e se repetem  e se repetem
é que me lembro que afinal ainda me demoro ao sabor do corpo
e que trazes um terraço no lugar do coração

domingo, 11 de agosto de 2013

FINISTERRA



Antecedendo um ciclo de poemas da minha plaquete (En)cantos de Castelo Branco, 1998, ilustradas com fotografias antigas que o meu amigo Francisco Costa me ofereceu, publico hoje estas duas quadras, este poema de (H)ora Essa.

Chegada ao fim, que quer a terra ao mar?
É sede ou pressa de ali se dissolver?
Que pode querer a terra senão continuar,
achar caminho, tentar sobreviver?

Mas se é o mar que adentra insaciado
em cada quinhão de terra, nos areeiros,
então façamos nós o que nos têm ensinado
e sejamos, enfim, eternos marinheiros.


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

GÉNESE


Nada nasceu do nada, nada singrou do vento;
tudo tem pai e mãe, o que tu és e eu sou agora
tem um princípio, uma matriz, uma semente
e não valem escusas, deixar nada de fora.

O que és, és. Outros são o que são. E tu não és
o que os outros são. Tu és tu e isso é quanto basta
todos somos um risco, um recomeço, resvés,
sejas preto, branco, amarelo ou de outra casta.

Se assim não for, se não entenderes assim,
então é porque não existes, não és dos meus.
Serás bastardo, coisa rara, animal extinto ou ruim,
talvez caso perdido, bicho medonho ou deus. 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

JÁ NÃO OS POSSO OUVIR


Dizem por aí uns tratantes
que emprego há e até sobra:
para estas mentes brilhantes
somos pau para toda a obra.

Até onde vai a manobra
desta cáfila de governantes:
com o seu mamar de cobra
querem-nos pior que dantes.

E por que mentem tais bestas,
com este cinismo febril?
Falas mansas como estas
são para matar de vez Abril.

O capital, coitado, lá vai
andando a soro e sobressalto,
mas ai de nós se a banca cai,
cairemos nós de mais alto.

Paguemos, dizem, por isso,
em impostos, corte a corte
e, se ainda assim for preciso,
paguemos com a própria morte.

E por que mentem tais bestas,
com este cinismo febril?
Falas mansas como estas
são para matar de vez Abril.

Hoje tiram hospitais, saúde,
amanhã, professores, educação
depois abrem o ataúde
e confiscam-nos o coração.

Meninos brincando a sério,
com ideias mal combinadas,
já lá não vão com remédio;
já só lá vão à lambada!

E por que mentem tais bestas,
com este cinismo febril?
Falas mansas como estas
são para matar de vez Abril.

domingo, 4 de agosto de 2013

ESPERTEZA


Sei dum conto
no era uma vez
e acrescento um ponto

e acrescento um ponto

havia um freguês
com ares de tonto
mas soube o que fez

mas soube o que fez

cobriu-se de pronto
não perdeu vez
mas olha o que conto

mas olha o que conto

não há quatro sem três
muniu-se de apronto
e vê mais do que vês

e vê mais do que vês

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A VIDA


A vida é um caminho
em espiral  redondo
como se fosse um ninho

como se fosse um ninho

afastando o hediondo
o que é mau ou daninho
tirando aqui e ali pondo

tirando aqui e ali pondo

por fim e já velhinho
se diz está avondo
chega de tanto espinho

chega de tanto espinho