quinta-feira, 31 de julho de 2014

FAMÍLIA


Família é o que se pode arranjar:
leva o dia a vender o seu suor
e à noite (se aprouver) faz amor,
deixa os filhos brincar,
semelhante ao dia anterior,
diz coisas de sim e de não,
brinca no computador, vê televisão
seja que programa for.

Para além disso não há mais nada
a não ser a morte de outros familiares
ou em guerras sujas, aos milhares,
e sobra caminho, a mesma estrada
há tantos anos tida como futuro
dos idos e dos ausentes nas molduras
em cómodas de memória e amarguras:
uma espécie de clarão no escuro…

Família é assim como um está lá,
hoje um piquenique  a ver se aquece
e amanhã se verá o que acontece,
blá, blá, blá, deus dará.
É claro que a rotina corre perigos
como tudo o que é comprado feito,
excepto se lhe for dado um jeito,
escolher a eito e ter amigos.

Assim se redime dos pecados,
atritos vários, más lembranças,
pensando nas recorrentes heranças
dos queridos antepassados.

terça-feira, 29 de julho de 2014

EM LOUVOR DO DIA


Quem amanhece com o sol aos seus primeiros fios
de luz, não pode o dia inteiro levar com a mesma fé,
cuidando-se bravo marinheiro d’antanho, cuja maré
deixa a ver navios.

O sol quando desponta fere a vista mas dá vitalidade…
Porém, quando declina, abona tal angústia e moleza,
que às vezes, suponho ser capricho da natureza
ou coisas da idade.

Acordo, o esplendor do dia começa nesse instante,
e eu acedo como avezinha frágil e estremunhada
aos primeiros raios de sol, que após a madrugada
me fazem  particular errante.

E, navegando, pensar que o meu caminho é ao paladar
das ondas – que daí tirem o sentido todos os perversos –
pois que uma coisa sou eu e outra os meus versos,
sem indícios de naufragar.

Dou de barato uma onda viva ou um mar crispado
por um instante  de deslumbre insigne ou simples ansiedade:
quero mais ao sol, à luz provada da vida e à claridade,
que da noite aquele bocado.

domingo, 27 de julho de 2014

HAIKAI MUSICAL


As cerejeiras e as ameixeiras
não são visíveis daqui,
apenas oiço as suas melodias.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

HAIKAI NULO


Nada além do céu
e um mar de areia
onde nos afogámos.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

O MELHOR LUGAR DO MUNDO



Deste mar que nunca chega,
deste sol que nunca morre;
de todos sou  e, por regra,
sou sempre o que não me ocorre.

Se me ocorresse, não era já
o que antes desejava ser:
nem sol do lado de lá,
nem onda que vai morrer.

No miolo do sol, ardente,
ou acalmado no mar profundo,
esse é o meu lugar permanente;
o melhor lugar do mundo…

segunda-feira, 21 de julho de 2014

EU ALGURES



Às vezes não sei se sou um ponto
algures no profundo universo,
sequer o beco em que me encontro,
ou sou todos os lugares, no inverso.

Há momentos em que sim, digamos, minto,
fingindo o bom tempo e a bonança,
mas isso são coisas que digo e não sinto;
são práticas que apendi, de boa vizinhança.

In verso sou, declamado ou em surdina,
como nuvem exposta, propositadamente nua,
ensaiando passes de columbina
sob o véu que me intromete entre a terra e a lua.

sábado, 19 de julho de 2014

SOBRE AS ÁGUAS



Escrevo sobre a espuma das águas,
o impulso é natural e imutável.
Recuso a rima, as mágoas, prefiro a dor,
que é mais persistente, inalterável…

Escrevo na água, disse, efémero,
como bicho esgravatando imprevistos,
ao ponto de encontrar coisas do género:
sal, almas ocultas ou anticristos.

Mas todo o descoberto é natureza
consabida ou agora pronta a despontar.
Se nada for é pelo menos impureza,
que em nada impede o mar de ser mar.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

MALMEQUER


Malmequer a vida inteira,
bem me quer a pura flor.
Este mal, queira ou não queira,
é, meu bem, um mal menor.

Bem me quer eternamente,
o bem querer adivinhado.
Com o bem, bem pode a gente;
com o mal é que é o diabo…

Pior, mas muito pior,
por cada pétala arrancada
para em vão buscar amor:
- mal me quer, muito, pouco, nada.

terça-feira, 15 de julho de 2014

"ENVERGONHADAS"


-E as meninas, qual é vossa graça?
E por que me viram as costas?
Não gostam de ver quem passa
ou hoje estão maldispostas?

Que lindas são, mesmo assim,
de rosto voltado para o chão.
Será por causa de mim
ou problema de educação ?

Ponderem, não custa nada
O Sol está radioso e quente,
embora mande a verdade:
não nasceu para toda a gente.

domingo, 13 de julho de 2014

MALVAS


Às malvas, é dito vulgar,
como coisa sem valor.
Não é justo assim falar
de tão generosa flor.

Serena flor, benigna rama,
- nunca o diria se não fosse -
e não se livra da fama:
o seu chá faz bem à tosse.

Outrossim para a malícia,
mas aqui com outro fito,
dizem ser uma delícia,
aguar de malvas o dito.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

SOAGEM


Livre como as aves, a chupa-mel
sinuosa com as cismas da aragem,
tem neste silvestre carrossel
o sol e o melífluo odor da soagem.

Irmã do vento, sem abrigo e nobre,
que ser humilde tem que se lhe diga:
não se é inferior por se ser pobre
ou suportar de pé o vaivém da vida.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

MEIO SEGREDO


Ainda não, mas vai acontecer um dia
esmerar-me e contar-vos um segredo,
digo, meio segredo, por simpatia,
de modo a continuar segredo.

Se vos contasse tudo perdia
o segredo e a história toda a graça.
Assim, pela metade, fica para outro dia
o alvoroço da praça.

Contando que vos conte um dia
o segredo meio guardado,
pode a notícia tardia
ser mais do vosso agrado.

Ou não. Se então já não tiver
meias palavras de lado,
tanto faz ter como não ter
meio segredo guardado.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

"ARROZ"


Passei ao teu terraço,
só para ver o jardim
vi-te as flores no regaço,
que nascem dentro de mim.

Parecem lábios ao longe,
ao perto sugerem beijos,
digo assim porque me fogem
as rimas dos meus desejos.

Quis pôr uma na lapela
para ficarmos a sós
mas tu deste-me com ela,
como quem dá o arroz…

sábado, 5 de julho de 2014

OLAIA ou Árvore-de-Judas


Quase nem me apercebia
desta beleza pendente:
cachos de flores, nem os via,
em orgia florescente…

Se Judas, em seu lugar,
baixasse do tronco robusto,
lá se ia o meu olhar
e não ganharia p’ró susto…

São lustres de ornamento,
se não lhes tocais, olhai-as,
que à vista dão alimento
e luz ao espírito, as olaias.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

ALOENDRO


Se me enganas recorrendo
a poses de virgem ardente,
chamar-te-ei aloendro,
que mata traiçoeiramente.

Os panos de popelina
das pétalas que te esboçam,
são para mim a morfina
que os meus lábios adoçam. 

Ainda assim fico tentado
tal é a embriaguez,
não vá de tal ficar aguado
pois só se morre uma vez…

terça-feira, 1 de julho de 2014

EXÍLIO II


Os pássaros voavam, é certo,
(quase todos migrantes)
com lágrimas e sonhos a coberto,
agora como dantes.

O céu era o limite.
Voar assim, com o vento norte,
atingiam o zénite
mesmo sem passaporte.

Se hoje se repete ou se permite?
Sim. Boa sorte.