sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

PROVA DE VIDA (último)

Os poemas que se seguem pertencem a um conjunto de inéditos com o título genérico PROVA DE VIDA.
Não tão “inéditos” que não sejam conhecidos, no todo ou em parte, por alguns amigos mais chegados, mas ainda assim, com valia e interesse para aqui serem incluídos.

Agora, o meu amigo Luís Gaspar e o Estúdio Raposa quiseram divulgar alguns destes poemas . Com excepção do primeiro poema, não lhe darei aqui a mesma sequência, uma vez que, em tempos, já publiquei quase todos os restantes em Corpo de Poema.
Façamos então esta visita guiada em Estúdio Raposa

FOTOSSÍNTESE


Continua radioso este sol,
apesar de tanto alimentar o meu olhar.
Não se lhe notam no rosto rugas ou ocasos.
Apetecia-me dizer que só a mim pertence,
mas sei de outros que o partilham com a mesma devoção.
O que mais me fascina é a sua luminosidade,
e é caso para dizer que nada
o faz de forma tão brilhante…
A demonstração está no oxigénio de uma vida inteira.
Uma prova de vida.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

DESARRUFO


Há dias em que o verbo não sai,
além de gralhas, brancas e azia.
Ai!
O mal que me faz a poesia…

Outros, em que a vida é modorra
de tão madrasta e vazia.
Porra!
Vem, era a brincar… poesia!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O CIRCO


Sei agora das lágrimas dos palhaços
vestidos de caleidoscópio,
do embuste dos truques ilusionistas
e da esperteza involuntária dos animais amestrados.
Sem o maiot de lycra e as lantejoulas,
a trapezista já não é a gaivota voando sobre o mar redondo da pista.
Eu mesmo perdi a fantasia:
a realidade não tinha que ser assim.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

SALÁRIO


Ah, quanto custa este sal,
este sal-gema,
salgado ofício
de apaladar a vida?
E quanto deste sal
não mata a fome
para só matar o vício?

Vale uma jornada
ou a eternidade?
Vale! Vale o que vale
e o seu contrário.
Vale uma porção de vida
a arbitrariedade
de um salário.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A GUERRA

I
Havia notícias duma guerra longínqua
e, ao mesmo tempo, presente em todos os gestos e falas.
Mais gestos do que falas.
Os nossos eram os bons e acenavam com um adeus sombrio
quando embarcavam em Lisboa.
Os que ficavam no cais imitavam-nos,
mas com lenços e lágrimas, num mesmo adeus sombrio.
Não se sabia se o inimigo também embarcava desta forma
e se chorava, se tinha um cais,
família e despedidas com lenços, lágrimas e um adeus sombrio.
Os nossos não morriam nunca,
como nos filmes; desejavam prosperidades todos os natais
e escreviam aerogramas para as madrinhas de guerra,
prometendo regressar mais saudáveis do que nunca.
Que soubéssemos, como disse,
os nossos eram os bons
e isso transformava-nos em inocentes querubins de alma branca
e olhar atónito, sem lágrimas que não fossem de imitação.

II

Um, dois, esquerdo, direito.
É verdade, andei por aí suando que nem uma besta,
por causa duma coisa chamada pátria,
que por dentro era áspera e cinzenta
e, por fora, espiava-me como se fosse um criminoso.
Aprendi várias formas de matar
e conheci os calibres
que me poderiam ajudar nessas missões.
As balas, essas, tive-as sempre na mão.
Em Cabo Verde, as culatras não faziam sentido
e pereciam de ferrugem e de pó.
Era um pó castanho que tudo cobria
e isso era já mal bastante.
Sobravam mornas e coladeras.
Gingava na tabanca,
embriagava-me de aguardente e grogue,
esticava a noite até o sol raiar
e adormecia a sono solto até ao nascer de outros sóis.
Deixámos dito, nôs terra é pa nôs povo.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

PLANO DE VOO


Desde a nidificação
ao voo mais que perfeito,
sei de cor a migração
das aves do meu peito
.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

AS FEIRAS


Chorei por mil tambores.
Todos me pareciam magníficos.
Com qualquer um faria marchar o soldadinho de chumbo,
escondido algures, mas com certeza dentro de mim.
Talvez tenha conseguido um ou dois, talvez três.
Normalmente ofereciam-me pandeiretas,
que eram mais baratas. Eu pensava apenas que eram de menina
e por isso as rejeitava.
Se fosse mosca e presenciasse aqueles despiques,
Saint-Exupéry acharia, certamente, cativantes os meus apelos,
ao contrário do meu pai,
que não lhes encontrava muita graça.
Mas os feirantes adoravam-me e até me faziam festas,
mesmo que não me conhecessem de parte alguma.
As feiras, mais do que as simples festas,
tinham a minha preferência.
As festas aborreciam, prolongavam-se demasiado
e tinham poucos motivos de interesse para a criançada.
Por outro lado, as feiras,
para além do ar de festa que eu lhes via nos balões,
nas luzes e cores e na gente sempre em movimento,
tinham o encanto do regalo que eu podia levar para casa,
continuando a divertir-me
e a atormentar os ouvidos de todos,
até à próxima.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

PARQUE INFANTIL


No parque infantil, as folias eram tudo menos pacíficas.
Havia como que uma hierarquia tácita
que geria a distribuição dos equipamentos.
Os mais novos raramente tinham direito ao fleumático e solene baloiço:
uma espécie de tirania reinante
relegava a maioria para a barca, e os seus balanços enjoativos;
os cavalinhos, que rodopiavam até à náusea;
o sobe-e-desce, propício a grandes trambolhões;
e o escorrega, que puía os calções e as carnes mais sensíveis.
A solução era o choro convulsivo
que a servente entendia sem grandes explicações.
Mas assim alteravam-se as regras
e isso poderia ter as consequências menos desejadas
nas próximas tardes de domingo.
O melhor era que os mais velhos se cansassem de tanto vaivém,
e deixassem o lugar vago
para os que há muito espreitavam oportunidade.
Sorte assim valia os cinco tostões da entrada.
Numa placa metálica, quase sempre encoberta pelos arbustos,
sobrevivia à ferrugem uma quadra de João de Deus
exaltando os nossos inocentes corações.
Quando a minha vez chegou já tinha perdido o interesse pelo baloiço
e nunca mais voltei ao parque.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

AS PRIMEIRAS LETRAS



Enquanto discípulo involuntário,
quiseram que as corrompesse.
Inocentemente, construí e soletrei ditongos,
deduzi os sons pela Cartilha,
massacrei a gramática como pude.
Queria que as letras me servissem, e isso era impossível.
Dedilhei-as ainda, ensopei-as de saliva
e sublinhei-as com tinta e raiva para que se colassem a mim,
mas só com amor vieram.
Não sabia ainda da sua utilidade
e do quanto viria a gostar delas.
Pensava: para quê juntar as letras em papel
para dizer coisas, se posso até gritar as dores da alma
ou os frenesis do corpo?
Mais tarde, reparei que eram janelas
com vista para as palavras
e com estas e um pouco de imaginação poderia construir metáforas
e outras ilusões.
Poisavam nas minhas mãos como pequenos pássaros
nos peitoris debruçados para a rua;
nidificavam nos meus ombros
para melhor aconchego em todas as migrações.
Foram ficando.
São minhas companheiras fiéis.
Sem palavras.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

FILHOS



Temo-los como as árvores têm frutos,
temo-los como as árvores alongam os ramos
e as folhas e as flores,
temo-los como nos temos para além de nós.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

MÃE



As minhas mãos
não fariam mais que segurar-te um só dedo,
mas era já uma amarra segura,
o porto em que queria acostar,
e foste tu que partiste, mãe?
Que parte de ti são os cuidados e os reparos?
Que parte de ti são as insónias e as canseiras?
Que parte de ti são os abraços e os afectos?
Que parte de ti são os primeiros passos e palavras?
Que parte de ti é o coração e a cantiga para adormecer?
Que parte de ti sou eu e que outra parte és tu, mãe?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

PEQUENAS COISAS

O pião e o berlinde, o arco e a bilharda; a fisga,
a bola e o botão; a carica velha disfarçada de ciclista,
eram os satélites predilectos do meu universo
– como lhe chamo agora – todo mundo, e o mundo era a minha rua.
De longe a melhor de todas as ruas:
para as corridas intermináveis,
para a incessante procura de esconderijos únicos,
para a invenção de novas brincadeiras.
O Tó Luís era o mais inquieto e sol de pouca dura,
a Maria dos Santos e a Rosa Maria quase nunca saíam de casa,
mas com Quim Manel passava horas sem conto.
Com ele e com a minha avó Teresa,
que me deu cuidados de mãe e toneladas de Farinha Amparo,
e me levava às missas do Mês de Maria
com a fé na promessa de um gelado no regresso.

Apesar de tudo, os dias decorriam ao ritmo de carrossel de feira,
como uma festa sem data, sem termo e sem publicidade
ou outras banhas da cobra.
Havia ainda um largo e nele um chafariz
com água que apenas os animais aproveitavam
em demorados, quase intermináveis sorvos,
– como fazia o macho do Barba Danada –
que lhes matava as sedes presentes e talvez outras mais antigas
e não saciadas no exacto tempo.
Eu bebia com o olhar toda aquela água
até sentir o estômago farto e inchado de tanta imaginação.
Dos pequenos acidentes, lembro-me apenas de um braço partido,
curado em água e sal e vinte dias de paciência,
arranhões vários, sem grande significado,
e uma pelada, que o meu pai debelou com muita bonomia
e algodão embebido em Trichophytina.
Os dias eram inteiros e enormes.
Não havia meio-dia, nem as inclinações do sol faziam qualquer sentido.
O tempo corria até ao fim da rua
e regressava com a mesma pressa de chegar a lado nenhum.