segunda-feira, 31 de outubro de 2016

OUTONO


O tempo voa de qualquer maneira
e disso não faz nenhum segredo.
Uma hora que se oferece prazenteira
e a noite ateve-se mais cedo.

O sol é agora de pouca-dura,
nem aquece o lugar que é seu:
insinua-se, parte de forma prematura,
e deixa-me o olhar vazio refém do céu.


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

ABRAÇO


Um abraço
dado
é um laço
premeditado 

a razão
de braço dado
com o coração

nó consentido
bem apertado
com sentido
figurado

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

DRAPEAUX ROUGES



Tem pelo menos uma coisa boa este Outono:
o inconformismo dos plátanos, a folha solta;
recusam a morte sazonal; “a voz do dono”,
e empunham bandeiras vermelhas de revolta.

Efabulo. Pois as pobres árvores, já enxutas,
nada pensam. É o seu ciclo; a sua essência.
Mas a vida faz-se de etapas e de lutas:
compõe-se de mudança e resistência.


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O BAILADO DOS PÁSSAROS


Asada dança, alada melodia,
enquanto há vento há esperança,
rodopia, balança; balança, rodopia…

Se o par desfila e balança
ou voa ou adejará um dia.
A dança desafia; desafia a dança.

Enquanto o par porfia,
se volteia e de júbilo avança,
basta já de tanta filosofia!

sábado, 22 de outubro de 2016

GUERRA DE PALAVRAS


Vou carregar a pistola
com palavras já usadas,
bem sonoras, versadas,
aprendidas na escola.

São como balas reais:
fazem brecha no impacto
quando disparadas de facto
e vêm a ser mortais.

O primeiro tiro é à sorte,
que se não mata, intimida;
o segundo, certeiro, faz ferida
e se não matar é uma sorte.

Com tiros para o ar e demais
palavras sem sentido
pode alguém ser abatido
por danos colaterais.

Aqui chegado, fim de papo:
nem mais um tiro no pé,
nem frase de rodapé
e meto a pistola no saco!

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

VOZ PRÓPRIA


O ruido confunde-me, de vozes povoado:
que sim, que não, que assim-assim…
Perco-me, fico sem saber qual o meu lado;
em qual deles faço parte de mim.

De repente, o silêncio é absoluto, agora,
a voz sucumbiu, subitamente morreu
ou então o som que se extinguiu por fora
grita-me por dentro e sou finalmente eu.

Oiço vozes recônditas, íntimas, familiares,
pouco me importa se de boa ou de má fala:
são minhas, não duvido, e por isso peculiares,
são as vozes de mim que ninguém cala.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

PINTOR DE PALAVRAS



A palavra cinzento mata devagar
e a vermelho lembra hemorragia;
a palavra preto dá claustrofobia,
não adianta pintá-la, falta-me o ar.

A palavra amarelo pouco me rala:
tanto me faz que exista, como não;
já a palavra verde lembra-me o pão
e a azul entranha-se como uma bala.

Quase todas me servem de bengalas:
o branco e o lilás para dormir a sesta,
as demais uso-as uma vez por festa…
Palavra que me apetece pintá-las.

sábado, 15 de outubro de 2016

PERFUME DE ROSA


Hoje cheira-me a rosas. Há sempre um dia
no Outono que me cheira a rosas.
Melhor: a pétalas de rosa caídas na minha mão.
Aquietam-se fingindo que dormem
e exalam esse perfume, que é eterno nas rosas.
Hoje cheira-me a rosas, sou eterno como elas
e o aroma que se desprende
paira, cerca-me os sentidos,
para que eu viva perpetuamente em seu botão.
Quando o Outono chega, este é o único privilégio
que a alma me consente.


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

CONTEMPLAÇÃO


O tempo enche-me de horas passo a passo,
as pausas e o tempo inteiro a horas várias,
de forma que não sei onde arranjar espaço
sem recorrer às horas extraordinárias.

Se estou bem, o tempo voa, acelera,
porém, se fico mal nunca mais passa.
Com tudo isto já não sei o que me espera:
Se fique mal, se fique bem ou o que faça.

Melhor seria que o tempo passasse e não
me tivesse em conta a cada passo ou momento
e que esta aparente contradição
sem passar por mim, me fosse apenas passatempo. 

terça-feira, 11 de outubro de 2016

DA VIDA


Não não tenho pressa
não sou de pressas
ainda que o julgues
ou isso te pareça essencial

deixo a tarde adormecer num beijo
quero da noite apenas a cintura

eis o meu recado: não tenho pressa
e ao dizer-to fico
com uma pressa enorme que amanheça

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

D'


Vai-lhe tão bem
o lenço no regaço
ou será que ela vem
nas ondas que eu faço?

A modos que voa
são seus seios asas
ou sou eu que à toa
plano sobre as casas?

Leva-a consigo o vento
com carícias e pressa
ou sou eu que a invento
para meter conversa?

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

DAS ESTÓRIAS


Minha paciente memória desfia
como a um terço de ave-marias
as mil versões do capuchinho

em todas me vejo menino triste
por aquela avó sem despensa
a quem o lobo engole em desespero

só mais tarde graças a subtis pedagogias
a pobre avó consegue a elementar assoalhada

hoje as coisas voltam a estar feias
e não se sabe mesmo se o lobo
a não comeu já pela segunda vez

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

PARTIRAM AS ANDORINHAS


De repente, quase sem dar por ela,
as andorinhas partiram num até breve
convocado de urgência. Da janela,
vejo um céu inquieto, que de nada serve

assim, pendente, sem nada para contar,
de vacilantes nuvens, feito sala de espera,
com sinais de que lhe falta o ar,
suspenso até à próxima Primavera.

sábado, 1 de outubro de 2016

DA BOLA


Houve um tempo em que cheguei a dar uns toques
falava com eles
como também diziam

passei da bola para as canelas do verso
o alvo dos meus pontapés de escape

porém aquele tempo deixou as suas marcas
tantas que ainda hoje
me dói perder em casa