quinta-feira, 30 de abril de 2009

DA COMPOSIÇÃO IV



CONTROVERSO


Tem aguarelas mortas
a nicotina
que nos suspende
amor
talha a ilusão do verso
num ritmo cardíaco
controverso

a língua do teu corpo fica ainda
mais ardente
mais entregue

mais fundo o tempo que desejo
num verso exausto imaginado
interdito
imperfeito


("Corpo de Poema" 1985)

DA COMPOSIÇÃO III



REVERSO


Teu peito
provocante
aberto

e descoberto a fios
de madrugada
respira ainda o beijo
quente
o ventre
líquido e substancial
do teu corpo em verso
violento


("Corpo de Poema" 1985)

DA COMPOSIÇÃO II



INVERSO


Sempre à mesma hora
enquanto o gebo hindu de prata
faz o raio xis do nobel mais recente

dispo-te a roupa interior
ao inverso
da cronologia estabelecida

guardo a tua imagem nua
perpetuamente fria
e estendo as minhas flores
em grassada lenta

sempre à mesma hora

cobertos pelas rugas
e os orgasmos que inventamos


("Corpo de Poema" 1985)

quarta-feira, 29 de abril de 2009

DA COMPOSIÇÃO



VERSO

Devagar
tão breve como lábios frescos
versejando
a lentidão da sesta
e o prazer do número impar
a cada página

cinzelar-te
a sombra a sol maior
neste querer-te lenta
sensual
voluntária e leve
em fatias de verso adocicado

deixar
escorrer-te o tempo
pelas tranças indefesas
ou pelas súbitas entrelinhas
transpiradas

derramar
então a cinza
a lava das veias
dilatadas

"Corpo de Poema* 1985

terça-feira, 28 de abril de 2009

Foto de J.Filipe Bacalas sobre Guernica de Picasso

A GUERRA


Havia notícias duma guerra longínqua
e, ao mesmo tempo, presente em todos os gestos e falas.
Mais gestos do que falas.
Os nossos eram os bons e acenavam com um adeus sombrio
quando embarcavam em Lisboa.
Os que ficavam no cais imitavam-nos,
mas com lenços e lágrimas, num mesmo adeus sombrio.
Não se sabia se o inimigo também embarcava desta forma
e se chorava, se tinha um cais,
família e despedidas com lenços, lágrimas e um adeus sombrio.
Os nossos não morriam nunca,
como nos filmes; desejavam prosperidades todos os natais
e escreviam aerogramas para as madrinhas de guerra,
prometendo regressar mais saudáveis do que nunca.
Que soubéssemos, como disse,
os nossos eram os bons
e isso transformava-nos em inocentes querubins de alma branca
e olhar atónito, sem lágrimas que não fossem de imitação.
(Do livro inédito "Prova de Vida")

sexta-feira, 24 de abril de 2009

AOS MENINOS DO ENSINO BÁSICO DE VIANA DO ALENTEJO





Ao Luís Silveira
que me ensinou como os meninos
sublimam a figura do pai quando
desenham o Sol nos seus cadernos.


OS DESENHOS


Os meus desenhos?
Que importância têm os meus desenhos?
Eram só riscos e rabiscos,
coisas de menino a aprender a ver o mundo:
um pássaro voando alto, como uma onda descuidada,
subindo mais que a sua condição;
um sol sorrindo a um canto da folha de papel;
uma casa e uma árvore,
ao centro de um jardim com flores vermelhas,
semelhantes a papoilas e pouco mais.
Melhor assim: não voei,
não tenho um sol só para mim,
nem uma casa e uma árvore e flores vermelhas,
semelhantes a papoilas,
mas tenho os meus desenhos
de papel e de memória.


Do livro inédito "Prova de Vida"

quarta-feira, 22 de abril de 2009

MAIO, MADURO MAIO/QUEM TE PINTOU?

Capa do "LP" de José Afonso


CESÁRIO VERDE

O sentimento, ambos sabemos, é verdadeiro.
E a palavra crespa, tudo menos tosca,
qual obra-prima às mãos de um torneiro:
primeiro o parafuso e só depois a rosca.

E então sim, o engenho serve, enrosca,
é incisivo, ganha forma por inteiro.
Só aparelhada é que a obra busca
o uso, o dom e o desígnio certeiro.

Ah, mas as estilhas eram supinas,
talas eruditas, solenes, finas,
em jeito superior e garganeiro.

E prescreviam para obra de pedreiro
a prancha, o andaime servente e corriqueiro,
a quem erguia prédios muito acima.


(Rebuçados Caramelos & Sonetos)

terça-feira, 21 de abril de 2009

SEJA ENTÃO MAIO DE UMA VEZ POR TODAS

algures na internet


JOSÉ RODRIGUES MIGUEIS

De que valeu aos mais a escapatória,
o palco, os veludos, as purpurinas?
Aqui combatíamos pela efémera glória
a troco de tafetás e popelinas.

Tivemos, porém, deste lado, a história
macerada de várias sortes, de várias sinas.
Um tempo insano cuja memória
se faz de medo e caixas de aspirinas.

Aquele que nos zelava e não dormia,
- Inventor do absurdo e da sordícia -
atulhou-nos as algibeiras com lama.

Sabia-se em Nova Yorque ou em Alfama,
que em Portugal o cárcere, as letras pela rama,
a côdea e a tabuada, já eram bastante pedagogia.
Rebuçados, Caramelos & Sonetos

segunda-feira, 20 de abril de 2009




BEIJA-FLOR

Quem por beija-flor
me tome,
saiba que o faço por amor,
não por fome.
(Rebuçados Caramelos & Sonetos)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

APRESENTAÇÃO DE REBUÇADOS, CARAMELOS & SONETOS

Dizia eu



RETRATO DE POETA

Nunca me fizeram um retrato
de poeta.
Mas fotografaram, pintaram e até esculpiram Pessoa
com o inevitável chapéu de feltro e o par de lunetas
que repartia com todos os heterónimos.
Não tenho um único retrato
de poeta.
Ao contrário de Walt Whitman,
que foi imortalizado em pose de patriarca iluminado,
velho, de barbas esgadanhadas muito além da decência
da pilosidade poética.
A Baudelaire que era feio, fizeram-no
com certeza por maldade.
Eu é que nunca posei
enquanto poeta,
com a mão apoiando o queixo, como os românticos
ou ambas todo o rosto, como os surrealistas.
Ou será ao contrário?

Vá lá, por favor, façam o meu retrato
de poeta,
que não tardam aí poetas do futuro,
desejosos de escrever sobre ele um ou dois versos
dum poema magnífico.

Parte da assistência



Com a Profª. Lurdes Barata, que apresentou o livro, e o Editor, João Carrega


REBUÇADOS, CARAMELOS & SONETOS



José Gomes Ferreira

Em quantos dos teus livros escrevinhei
cumplicidades, elogios e outras simetrias?
Bebi nos teus versos muito do que sei:
das palavras, das raivas e das alegrias.

Certa manhã, de melíflua luxúria, viajei
para Campolide no carro em que seguias
e, posso garantir-te, também eu reparei
na mulher reclinada na tua companhia.

Da simbiose de murmúrios e protestos,
brotaram ímpias odes e manifestos,
com a ardência de súplica verdadeira.

Criaste versos de chumbo, clandestinos,
com remetente e endereço de destino:
abaixo-assinado, poeta, José Gomes Ferreira.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

HOMENAGEM

Devo dizer que nunca tinha ouvido a expressão "poesia do coisismo". Foi através de Fernanda Botelho, na Colóquio/Letras da Gulbenkian, numa crítica ao meu "Alegria Incompleta", vinte anos depois da sua publicação. Não tive oportunidade de cumprimentar a escritora. Falecera pouco antes deste acontecimento.
Eis o rascunho do seu texto crítico e esta minha (tardia) homenagem a Fernanda Botelho.








Da água
Impossível canonizá-la
mas somente canalizá-la.


Se assim não fosse os meus lábios secariam
e a concha da minha mão
perderia a inocência.

Vem água, vem ser o meu primeiro canto,
Inundar-me o peito com o teu suor
e as tuas lágrimas.

terça-feira, 14 de abril de 2009

ABRAÇO SOLIDÁRIO

Ultrapassar Os Limites - poemas solidários - 1980

La estória és nuestra
y la hacen los pueblos

salvador allende

CABO VERDE

São cisnes
de bronze
e sal
à beira mãe

deixai-os navegar
ventos
chuvas

são filhos d'África
ilhas de ternura.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

AMERICAN WAY (3)


OS NORTE-AMERICANOS
(Rhapsody para George Gershwin)


Al Capone era um tipo simpático
(tendo mesmo em conta a cicatriz)
se comparado com McCarthy
e tu, George, deste-lhes música sem o saberes.
Hoje, os americanos dizem que são águas passadas.
Na Europa, dizem o mesmo sobre a inquisição.
É gente que se satisfaz com o que tem
e tem mais do que necessita para se satisfazer.

Deus morreu em 1929 e foi crucificado
em Wall Street. De então para cá,
os norte-americanos mitigam a fé com anjos órfãos
e fazem milagres no cinema.
(Oh George, volta a compor Rhapsody In Blue
e reabilita todos os pretos da América!)

E, já agora, embarguem o Canadá,
eles parecem sorrir de felicidade
quando vos espreitam lá de cima,
como ursos polares em jeito de provocação
e deixem Cuba viver em paz.
Metam-se com gente do vosso tamanho!

Ah, e deixem, duma vez por todas,
de me fazer crer que o jazz é uma prostituta bêbeda
a banhos no Mississipi.

(Um quase plágio de Bertold Brecht)

Quem dizimou os Apaches e em Siting Bull
todos os índios da América?
Os livros escolares americanos dizem que os búfalos se extinguiram
e, por arrastamento, pereceram os que deles dependiam.
Quem escravizou os negros de África
e quem contratou as naus que os resgataram?
Acaso há um estreito de Bering no Atlântico?
Quem lucrou em Chicago com a proibição do álcool
e com armas semelhantes matou os seus filhos
por suspeita de contaminação bolchevique?
Guantanamo é território de Cuba,
mas são cubanos todos os seus habitantes?
Quem invadiu Granada? E quem sabe o local exacto~
em que se despenhou o avião que transportava Omar Torrijos?
Em onze de Setembro de 1973
Allende foi assassinado no Chile.
Pinochet o ditador de serviço.
Sozinho? Quem estava a seu lado?
Os marines dos EUA jogavam a roleta russa
em bares improvisados nos bairros pobres de Saigão e morriam
traiçoeiramente baleados.
E quem mais morreu, em sua casa, queimado com napalm no Vietname?
Quem cozinhou a guerra do Golfo
e quem comeu a fava?
Por que sobrevoaram Nova Iorque os aviões terroristas?
Por que são de paz os B52 que sobrevoam Cabul?
Quem atirou a primeira pedra e quem se junta ao apedrejamento?

Tantas histórias,
quantas perguntas.

AMERICAN WAY (2)


OS NORTE-AMERICANOS III
(Rhapsody para os norte-americanos)



Servem para tudo os americanos do norte.
No sul, chamam-lhes gringos e ianquis, que significa canalha,
lixo, espécie indesejada ou filhos de Satanás.
No mínimo, significa coisa ruim.
Não são tal. São apenas americanos do norte, como são
os ursos, os búfalos e o Kid Carson, que afinal não lhes sobreviveu.
Servem para tudo os americanos do norte.
No seu próprio lugar inventaram o wild west e Hollywood, mais tarde,
para contaminar o resto do mundo
com o seu modo de viver e o seu Kiss Me Deadly.
E, apesar de tudo, são baleados a milhares de quilómetros,
na testa, no coração e, quantas vezes no rabo,
por armas que fabricaram em sua casa.
Servem para tudo os americanos do norte.
Acham o fast-food uma ideia gastronómica genial,
a obesidade uma consequência do progresso económico
e as epidemias fruto da má vizinhança.

Servem para tudo os americanos do norte.

AMERICAN WAY





OS NORTE-AMERICANOS
(Rhapsody para Allen Ginsberg)






Escrevem versos brancos como quem vai à Lua
e vão à Lua cavar poemas ainda mais brancos.
Para o bem e para o mal, conhecem o mundo
até às Caraíbas e jamais o meu vizinho carpinteiro,
de nome Joaquim, que jura ter feito
um guarda-fatos em mogno para um milionário californiano.
De sonetos (incluindo ingleses) nunca ouviram falar;
sabem de sondagens, tácticas militares e de napalm,
de multinacionais e de petróleo.
Não são nunca culpados de coisa alguma:
chatearam-se em Pearl Harbour e vingaram-se em Hiroxima.
O Mayflower não levou todos os bandidos e prostitutas
europeus. Destes, a maioria já é autóctone. E isso vê-se
nas eleições políticas que realizam,
nas guerras que exportam, nas revoluções que inventam
e na leviandade com que dizem my god.

É verdade que há os Óscares, os Nobel
e as medalhas olímpicas, mas a verdadeira história
norte-americana é a de Bufalo Bill.
As fontes não revelam quantos milhões não têm abrigo
e não há notícia de Apaches nem de Cherokees
(eu sei, Allen, de Sacco e Vanzetti também)
mortos em nome do american way of life.
Borrados de medo em Hanoi, não conheceram Jonh Reed,
de quem muito aprenderiam sobre os outros.
Preferiram embebedar-se em Saigão, vomitar
no Mar da China a última ração de combate
e lamber o chão em Woodstock
Ninguém como os norte-americanos
soube dignificar de forma tão eloquente
o nome da sua moeda fiduciária,
dos seus heróis de banda-desenhada
e das suas histéricas lágrimas em Manhattan.









quarta-feira, 1 de abril de 2009

"A POESIA ESTÁ NA RUA"

Vieira da Siva - A Poesia Está Na Rua


Poemas de Abril é o tema de uma boa iniciativa promovida pela BECRE e Oficina da Criança, que decorrerá em Viana do Alentejo de 20 a 30 de Abril e se destina aos alunos dos Jardins-de-infância, 1º. Ciclo do Ensino Básico, 3º. Ciclo do Ensino Básico e Secundário (diurno e nocturno), bem como à comunidade educativa.
Como o tema indica, a iniciativa integra as comemorações do 25 de Abril ao mesmo tempo que as associa às crianças e jovens e ambos à poesia. Lá estarei.

Toda a poesia que fale de alegria, de amor e de liberdade é poesia de Abril, não só porque Abril é isso mesmo, mas também porque antes de Abril não havia liberdade para tornar pública poesia com aquilo que muitos poetas e muita, muitíssima outra gente pensavam e gostariam de dizer, e foi esse mesmo Abril que o permitiu.
Não é preciso, por isso, que os poemas evoquem concretamente o mês de Abril ou mesmo que tenham sido feitos após Abril de 1974, para se considerarem poemas de Abril. Por seu lado, a poesia do amor, da alegria e da liberdade, também ajudou a construir Abril.


ABRIL

Em Abril, já o grito de revolta era maduro,
já o trigo intenso rompia na seara.
Em Abril, já a claridade era sol puro,
que, pela bondade, era ainda coisa rara.

Ao matiz das papoilas nada se compara,
nem aos cravos ardentes, que do escuro,
brotaram rubros, naquela manhã clara,
ao mesmo tempo a luz e o seu futuro.

Nada a declarar. Além da liberdade,
em rascunho, alguns apontamentos
clandestinos para esse Abril de tenra idade.

Cresceu. Foi Maio noutros momentos,
foi em pouco tempo uma eternidade
e foi depois Novembro e outros ventos.