quinta-feira, 29 de abril de 2010

PEDRAS, PARA QUE VOS QUERO


Uma pedrada no charco
(sou eu que pergunto):
é uma pedra no sapato
ou uma pedra no assunto?

quarta-feira, 28 de abril de 2010

DO FUNDO DO CORRIMÃO


Dois aurículos, dois ventrículos,
batendo a todo o vapor,
são excelentes veículos,
se o prédio não tem elevador.

terça-feira, 27 de abril de 2010

PÉ DE COBRA


Esta quadra não existe,
é fruto da imaginação.
Mas há quem, a rastejar, insiste
com os pés assentes no chão.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

CÂNTARO DOS CÂNTAROS


Deixo o assunto claro, minha filha,
directos à matéria, faremos a ponte:
por bojuda e bela que seja a bilha,
mesmo assim eu prefiro a fonte.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

CRAVOS MURCHOS


Acontece com o mamar da cobra
- a trova virou manobra -
e eis a prova deste bico d’obra:
de toda a obra quase nada sobra.

Do bravo tempo resta um travo
amargo; e o que é mais grave,
é fazerem de nós parvos,
fingindo que os cardos são cravos.

Apenas de amor que não trai,
se faz Abril, mas isto vai, isto vai!

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A MORTE


Pensar a morte não é coisa d’infante:
não cabe em tanta vida condensada
o fim de tudo, num só instante;
um ápice ou, mais que efémero, nada.

Não há quase neste fatal conceito,
que tudo reduz à insignificância
ou ao trilho que se inicia já feito,
não antes, mas depois da transumância.

A morte colou-se a mim para ficar
(longe ainda d’agonia, a meu ver).
Contraditória, tira vida em vez de a dar
a quem tem mais experiência de viver.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

POSSIVEL POESIA


A mão não acompanha
o ritmo do alfabeto da alma;
limita-se a traduzir as vibrações do corpo
em parangonas alinhadas.
Dentro, os versos movem-se,
inquietos: são um fluido de vontades.
O poema escrito é residual,
lixo onde a essência cumpre
pena perpétua.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

ACTO(R)POLÍTICO


Um mau actor não é um bom político.
Um mau político não é um bom actor.
Um bom actor não é um mau político.
Um bom político não é um mau actor.

Um bom político é um bom actor.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

O POEMA CHATO


Preocupado com a métrica,
burilei o mais que pude, mas o verso não se continha:
fugia, assimétrica, a poesia.
Quis dar-lhe a forma dum soneto inglês
mas saiu um monstro monostrófico e sem pátria.
Quando, por fim, lhe procurei a rima,
teimosa, não saía, mas levei com ela em cima.

terça-feira, 13 de abril de 2010

GUERRAS


Dos exércitos em confronto
- além da enorme vala comum -
só os generais são notícia

sábado, 10 de abril de 2010

CUIDEM-SE


Que se cuidem os que apagaram as vésperas na memória
e desdenham do dia que virá
que se cuidem os que falam por falar e os que não têm boca
para abrir
que se cuidem os troianos e também os gregos
e todos os que por enquanto não têm nacionalidade definida
ou a rejeitaram ou mesmo
os que nunca deviam ter nascido em parte alguma
que se cuidem os que têm família de nome
os que perderam toda a família numa catástrofe natural
e os que naturalmente rejeitam a família
que se cuidem os ignorantes os indigentes os estultos os marginais
porque deles são os reinos dos céus
e deputados ministros senadores e presidentes
porque deles são os reinos da terra
que se cuidem locutores e jornalistas que nos dão conta
de todo o lixo noticioso à hora da refeição
os que parecem pedir desculpa pelas más notícias
e os que dizem ou escrevem fingindo dor
ou mordendo teatralmente o lábio inferior
que se cuidem os cegos os que não querem ver
aqueles a quem foi tirada a possibilidade de ver
e os outros que vêem mais do que devem
os vesgos e os estrábicos
bem como os que vêem apenas o argueiro no olho do parceiro
que se cuidem os modernos mercenários
seja qual for a cor do capacete e o alfabeto da cartilha encomendada
que se cuidem os deuses digo todos os deuses
incluindo os fundamentalistas apáticos e desinteressados deste mundo
se de outro não fizerem parte
que se cuidem os doidos varridos desde poetas
aos mais humildes maníaco-depressivos
que se cuidem os narcisos e os que já não se suportam
que se cuidem os agentes humanitários e as gentes cuidadas
que se cuidem todos incluindo os que julgam tê-lo feito sempre
o critério é que aparentem os cuidados universalmente aceites
mas cuidem-se
porque o mais pequeno descuido pode ser a morte do artista.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

VÁ DE RECTO


A catequese abre portas
(em tese),
Jesus entra pelas janelas
(de luz)
e as crianças, senhor, por que fogem elas?

No evangelho, o padre
(velho)
faz de conta que o demo assedia
(sagaz)
os anjinhos na sacristia

Para que serve aos apóstolos
(serve?)
a religião por vacina
(a injecção)
e as embalagens de vaselina?

terça-feira, 6 de abril de 2010

HORAS MORTAS


Vou comprar, se não te importas,
para matar o tempo, uma espada.
Assim, salvo o não fazer mais nada,
atulharei a vida de horas mortas.

sábado, 3 de abril de 2010

NARIZ DE PALHAÇO


Onde irei por um nariz de palhaço
na testa, na barriga ou no braço?

Um nariz redondo e vermelhão,
capaz de fazer rir o mais sisudo
e circunspecto, caso não,
pelo menos que ria antes de tudo.

Ah, lembrei-me, afinal, por um triz:
vou colocá-lo na ponta do nariz.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

GERÚNDIO BIPOLAR


Que fazem duas traineiras no horizonte, cintilando
por imposição das ondas;
que fazem duas gaivotas debicando aos meus pés
os restos da última faina;
que fazem a água e a areia circulando sobre mim ou eu sobre elas
(não é o meu forte, a astronomia);
e o que fazem duas varinas rezando, dois pescadores
consertando as redes que o mar comeu;
que fazem dois sois e duas luas coincidentes no mesmo céu
e que faço eu dividido entre este mundo e o outro?