sexta-feira, 27 de agosto de 2021

ANEXIM CRUZADO


Olha lá, ligeiro irmão,

que pressa a tua, onde vais?

Trocas a fome pelo refrão:

o primeiro milho é dos pardais.

 

E o segundo e o terceiro,

se à vez forem todos hoje

quebra-se o anexim embusteiro:

devagar se vai ao longe.

 

Que o capricho ou fatalidade,

a ventura não te deserde,

porque também manda a verdade:

quem tudo quer tudo perde.


 

sábado, 21 de agosto de 2021

SOL E DO


Quando o sol arrefece,

a modos que entristece

em arrepiante glacê.

Apenas ri quando aquece

ou porque lhe apetece

sem saber bem porquê.

 

Um ror de tempo enroupado,

sei lá em que vergonhas,

não sei se dorme, se sonha,

se o céu o traz ocupado

ou fica envergonhado

por ter chegado atrasado

à partida das cegonhas.

 

Este sol habituado

ao palco diurno do fado,

que nem por um dia se acoite,

se bem que triste ou magoado,

e mesmo se estiver cansado

nunca saiba o que é a noite. 


 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

PÁSSARO OCRE


Não era afinal de ouro

nem possuía riqueza,

e fosse embora tesouro

era-o por singela beleza.

 

Amarelo-torrado, canário,

tudo lhe ficava a matar;

profissional do canto, operário

de antes morrer que cantar.

 

Morreu ocre e mudo,

escravo do tudo ou nada,

sem liberdade e, contudo,

numa gaiola dourada.

 


 

domingo, 15 de agosto de 2021

O GALHETEIRO DE CAMPAINHA


A tentação do aparador ainda hoje persiste:

a campainha do galheteiro era irresistível

e como ouvir aquele trim-trim de bicicleta

sem que a minha avó desse por isso?

A missão era ingrata, impossível,

Excepto aos meus ímpetos de menino…

De um lado do guarda-loiça havia copos e chávenas,

que só de tempos em tempos tinham serventia,

mas do outro estava o galheteiro e a sedutora campainha

exposta à imaginação de como tocá-la e ouvi-la

sem que os demais dessem conta.

Este princípio de vida permaneceu até hoje:

como fazer o impossível, como?

E o impossível ali, a dois passos, guardado no aparador.


 

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

QUERIDAS CEGONHAS


Há cegonhas que já não se dão ao trabalho

das migrações

aqui têm casa, que vão ajeitando galho a galho

durante gerações.

 

Por cá têm vida estável e habitação social,

salvo eventual revés,

aqui vivem e morrem de morte natural

e são elas que trazem os bebés.

 

Faz parte da paisagem permanente,

este príncipe das nuvens, voador:

plana, compete com o céu diariamente,

é a gaivota do interior.


 

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

PRECLARA DÚVIDA


Um prolapso do sol

um pedaço de sal

uma côdea de pão mole

um percalço ocidental

 

de escabeche um carapau

para uma fome futura

no fundo não é bom nem mau

mas dura dura dura

 

um passo de caracol

menos mal menos mal

um peixe no anzol

quanto é que isto vale?


 

sábado, 7 de agosto de 2021

CONSELHO VITRUVIANO



Vitrúvio queixa-se de novo:

- Que sina esta! De mim ninguém tem pena.

uma vida em quarentena,

oh redimensionado povo!

 

E a lamúria continua:

- Tirem medidas. Façam dieta,

todo aquele que arquitecta

uma vida ideal e saudavelmente nua.

 

Mil jejuns é a receita,

comer e beber também mata

e ponham-se no meu lugar, em espargata,

é uma quarentena perfeita, 




 

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

NADA


Nada não existe por nada ser,

que sendo nada, algo tem,

alguma coisa tem de acontecer

para ser nada, de onde vem?

 

Nada é o que não tem nome

e morre antes de nascer;

é o mesmo que morrer de fome

sem ter vontade de comer.

 

Ou seja, é conversa fiada,

quando nada há para contar

e então alguma coisa é nada,

para tanto dar que falar.

 

O tempo que leva isto tudo

sem encontrar substância

é porque o nada absoluto,

mais que tudo é abundância.


 

domingo, 1 de agosto de 2021

O OFÍCIO DE POETA


O ofício de poeta tem que se lhe diga…

Matéria-prima em ruptura permanente

e, pior ainda, o que mais intriga

é que todo o verso se crê urgente.

 

O tecido é frágil, fino, quase puído,

junta palavras bailarinas numa dança

e que por fim se transforma em vestido,

todo enredado em si, como uma trança.

 

Não tem prova, se for a gosto, assentar bem,

e a sobranceira figura logo ali se retrate

com o aprumo mais exacto que ela tem,

o poeta não passa de um erudito alfaiate.