quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

ARTIFÍCIOS

 


Não vale a pena a indignação, sempre se acaba

por sofrer de dois males: a indignação já referida

e a moléstia que tal acarreta.

Por isso não vejo porque andemos por aí a indignarmo-nos,

azedos como limões verdes.

As pessoas com quem nos cruzamos

não vão entender a nossa indignação e até são capazes

de ver em nós o motivo da sua própria indignação.

Por isso se torna imprescindível não nos tornarmos reféns

dessa prorrogativa constitucional

e mandar à merda quem acha que ver um foguete no ar,

mesmo de lágrimas é descobrir a pólvora.


segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

VOLTO AOS VELHOS CAMINHOS



Do pomar trouxe todos os frutos que encontrei:

uns são poemas, gomo a gomo;

dos mais doces jazem cascas de laranja…

 

Ah! Por fim abri os braços, respirei;

acordei finalmente de prolongado sono

e disse para os meus botões: desta fruta já não se arranja.

 

Comi dos frutos, pois, que melhor pudera?!

Camisa aberta, alma consumida,

mais não tinha nem mais me era dado…

 

Fez-se manhã de inverno, escura era,

que a noite ao vê-la lhe deu a própria vida

e me salvou a mim e ao braçado de laranjas então roubado.

 

 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

UM VELHO SOM


Um som já velho, reciclado,

vira o disco,

não sei onde ouvi isto.

 

Fede. Velho e relho, insisto,

percorre o tubo enviesado

este som antepassado.

 

Que som este, estafado,

de notas falsas, um misto

de purgatório e Jesus Cristo.

 

Como a sensação do já visto:

na música o mesmo fado

e na letra o caldo entornado.


 

sábado, 16 de janeiro de 2021

SERENIDADE


A serenidade é um urso na primavera,

que depois do sono, do sonho de urso,

tem sangue-frio e espera

que a vida siga o seu curso.

 

Essa é a serenidade que conheço

se outra existe, com outro nome,

terei de voltar ao começo,

admitir que o urso tem fome.

 

Acorda, urso! A vida não é eternidade,

e deixa por agora a serenidade!


 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A VER SE NOS ENTENDEMOS


As coisas não são assim:

toma lá, dá cá;

duas para ti, duas para mim

e o assunto fica como está…

 

Não: é preciso que se entenda

o deve e o haver,

não fiques tu com a encomenda

e eu, como sempre, a arder.

 

Vamos por partes:

ao fim de tanto barulho,

(não te descartes),

que trazes tu no embrulho?!

 

- Rosas, senhor…

- Valha-me a santa da Agrela!

Tanto alarde, milagre de tal clamor,

só me faltava agora cair nessa esparrela!

 


 

sábado, 9 de janeiro de 2021

MARÉS


Grande novidade era o mar,

o que outrora foi esperança

da aventura de navegar

foi o meu sonho de criança.

 

Ondas - tinha-as alterosas –

diziam. Outras de apanhar à mão;

umas como os espinhos das rosas,

outras como bolas de sabão.

 

Primeiro foram trilhos e vento,

mistérios, desassossego, ficções,

mas para mim, deslumbramento

pago em banhos e escaldões.

 

Não é o mesmo este mar antigo,

igual para toda a gente:

um exultante, que vinha ter comigo

e outro rancoroso e indiferente.


 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

DA CABEÇA AOS PÉS


Irrequietos que eles são,

abrem caminho a passo

como o bater do coração,

batendo sempre a compasso.

 

E não cessa o caminho

que vão fazendo ao andar,

a toda o gás ou de mansinho,

caminhando sem parar.

 

Galgando a vida inteira,

pé ante pé ou pezudo,

pezinho de lã, de veludo,

não tem fim esta canseira.

 

E apesar desta andança

(pé que anda e tropeça)

perdem o pé e a esperança,

pois quem anda é a cabeça.


 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

ESPERA


É escusado chamarem-me, que eu não vou,

não saio daqui. O Inverno tem-me ocupado

por algum tempo (por enquanto não nevou)

mas este frio é como se tivesse já nevado.

 

Virá talvez a chuva, agrava a disposição:

nada de horrores, apenas preocupações minhas,

lastros de um ano mau, de um tempo em vão,

não vou tardar, deixem vir primeiro as andorinhas…