segunda-feira, 30 de novembro de 2015

FACE E VERSO


Se o mundo tivesse rosto
seria ainda mais evidente,
numa das faces o sol posto
e na outra o sol nascente.

Tal como a cara da gente,
em que ser não é suposto
ter o mundo pela frente
e envelhecer de desgosto.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

BRINCOS


(Na primeira pessoa, brinco
e vou afinando a aselha
que, vistosa, no sujeito finco,
em prévio buraco na orelha…)

É aparente o erro gramatical,
pois a flor, só por si é bem capaz
de me lembrar o bem e o mal
das minhas brincadeiras de rapaz.

Então, corsários e cavalheiros,
no tempo semiótico das reguadas,
salteávamos os expostos canteiros
para os dar depois às namoradas.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

A CHEIA


Não tinham margens os rios
que te falei:
eram itinerários devassados,
escassos juncos de enfeite
e um mar imenso a que chamavam foz.

Os rios não tinham margens, já o disse,
- ou que assim possa definir-se –
era tudo água de improviso
o estuário em que quase morri de sede.

domingo, 22 de novembro de 2015

DANÇA


Dança que dança
e torna a dançar
um pé que avança
o outro no ar

Dança que dança
(ai pé que te atrasas…)
dá voltas à trança
que os braços são asas.

Dança que dança
com um pé atrás
e o outro em lança
coração onde estás?

Dança que dança
o baile mandado
que pla noite avança
sem estar acabado

Dança que dança
que em tua defesa
hoje há lembrança,
é dança inglesa.

Dança que dança
em bicos de pés
dançar já não cansa
uma, outra vez.

Dança que dança
dança a compasso
sem perder a ‘sperança
sem perder o passo.

Dança que dança
(que dança comprida!)
mas dança, dança, dança
a dança da vida.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

VER O QUE NÃO VEJO


Que vejo eu quando não vejo,
quer queira ou não queira,
se nada ver é ver o que não desejo,
quase morrendo  de cegueira
e, no entanto, vejo que não vejo;

Que há para ver onde não há
nada para ser visto quando está,
do quanto está para não ser visto
ou não quer deixar-se ver,
oculto, vá que não vá…
e de tanto ver desisto
de ver o que não está a acontecer.

Vejo de não ver, cego de ver,
está visto.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

GIRASSOL


todos ao sol
todos por um
girassol

um girassol
um por todos
ao sol

há sempre algum
girassol
em sítio nenhum.

sábado, 14 de novembro de 2015

CAVALOS


Ah, mas se eu pudesse, como o vento,
tocá-los com um dedo só que fosse,
que indizível seria esse momento!
Que contentamento tão fino e doce.

Porém, fogem-me, por encantamento
quase me trespassam sem tocá-los,
como tudo o que afinal invento,
sejam poemas, neblinas ou cavalos.

Compraz-me vê-los soltos, surreais,
pégasos de nós, furtivos e imortais,
em aparição furtiva, mas tão real,

que a fantasia do que sejam, afinal
não passa de sonho ou coisa tal,
que apenas se pressente … e pouco mais.

domingo, 8 de novembro de 2015

ESTE MUNDO E O NOSSO


A certa altura, o buliçoso rapaz
esquadrinha o bolso dos calções,
e, entre o pechisbeque e dois piões,
descobre que o pretérito perfeito,
é o tempo que menos falta faz.

O que importa agora é o sujeito,
e ao que teve pode acrescentar
perto ou longe, os advérbios de lugar,
os caminhos por andar, a fantasia,
e tudo o que de mais tiver proveito.

É o princípio dos verbos a conjugar
muito além da física quântica
e, sem preocupações de semântica,
opor à regra a lei da utopia:
- Ninguém morre sem eu mandar!

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

LEMBRETE


Não me faço de credos, súplicas ou preces,
de penas, plumas, sombras, atalhos, escoras;
faço-me de tijolo como a casa onde moras,
e as demais coisas simples que conheces.
Ou talvez não! Se a vida te acontece felizarda,
com elmos, filtros, senhas de desembaraço.
Como te digo, não é disso que me fiz ou faço:
faço caminho e caminhando me protejo:
não peço nem quero um beijo por um beijo,
não dou nem aceito um abraço por abraço.

Já neguei o que depois me fez chorar!
Enganos todos temos, incertezas quanto baste,
às vezes sombras, nuvens e medos, por arrasto,
mas jamais cruzar os braços e esperar.
Das cores distingo as que quero, excepto pardas,
fluorescentes e néones de delicado traço…
tampouco confundo um aeroporto com um terraço.
Se o tempo urge corro, dou aos braços e adejo,
mas não peço nem quero um beijo  por um beijo,
não dou nem aceito um abraço por abraço.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

MONDEGO


Amava Coimbra, até como a si mesmo,
e todas as promessas eram em si postas:
- um dia perco-me e subo a esmo,
nem que por ti escale o quebra costas…

Eu galgarei as margens loucamente!
Amanhã bato-te à porta em segredo.
Dizia, apaixonado, caudalosamente,
por basófia, ‘inda no leito, o rio Mondego.

Na manhã seguinte, trinando a madrugada,
já se omitia, da véspera, tão ousado.
Era apenas fala, sina, noite mal passada;
destino presumido no seu fado.