sexta-feira, 30 de outubro de 2009

CATECISMO


Águas passadas, Noé
nadou onde havia pé.

Ao acordar, disse Abraão:
- hoje faço serão.

Não acredito em Moisés
e, no fundo, tu também não crês.

Era questão de tempo, estava escrito:
sobre Jesus estava tudo dito.

E de mais não precisou Jeová
para dizer, convencido: - Agora é que já está!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O DESPLANTE DA FLOR


desplante:
a planta
em flor
desponta

a planta
pronta
em flor
de espanto

suplanta
pétala
a pétala
ou seja lá o que for

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

INCONSEQUENTE



Só com o ver o trilho, a terra batida,
já o meu olhar progride muito além
do que ao ser humano é permitido,
que é caminhar quando o olhar vem

ao meu encontro e o caminho feito.
Só me abalança o estar presente,
longe de estar perto para o efeito
- inexplicavelmente ausente –

se o resultado for onde agora estou
e não onde me leva este caminhar.
Melhor é não ter para onde ir ou
seguir o rasto vagabundo do olhar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

CÃO POLÍCIA



-Travesti – de gatas,
tem tal perícia
em quatro patas,
o cão polícia.

Tem tal jeito
(de gatas)
o cão perfeito,
ainda de alpercatas.

Ladra, morde
por meia dúzia de ossos.
com sorte,
de outro, não os nossos.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O MEU GATO



Sei menos dele do que ele de mim:
altivo, mas por natureza insensato,
tem-me na mão só com olhar, enfim,
faço-lhe tudo. Sabe-a toda, o meu gato.

Não é por mim que ele me procura.
Descobre-me gestos, usos e sons,
e assim se insinua com doçura
dando-me em troca afagos e ronrons.

E eu o que lhe dou, o que lhe faço?
Nada. Contento-me em que seja meu.
Marco o terreno e dou-lhe espaço
tal como se o meu gato fosse eu.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

VIAGEM



Ao longe, um sereno povoado.
- Assim o vejo, assim o penso:
paredes brancas com telhado,
chaminés soltando fumo denso.

Só o fumo é sinal de gente,
que não ainda ao meu olhar,
distante, mas aparentemente
já sou eu, além, a fumegar.

Ambos partimos sem norte,
o fumo e eu, lado a lado,
ver de novo, com igual sorte,
ao longe, um sereno povoado.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

CREPUSCULAR ALEGRIA


Brisa de efémero sorriso
transitório, qual mercê;
redondo sinal de aviso
no instante em que se vê.

Depois esfuma-se, fenece,
vem a noite tocada a vento
e o que afinal permanece
é o sorriso do momento.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

REMISSÃO


Agora vejo o rubor do teu rosto,
a aurora boreal do teu olhar.
Vejo açucenas e fogo posto
queimando-me dentro e devagar.

E uma centelha de luz e flama
fulmina-me. Fico cinza e nada,
fumos, pó, restos de chama;
um chão estéril após a trovoada.

Ainda assim sou lisonjeiro,
como pé de água sobre brasas:
detono as veias e, prazenteiro,
troco as minhas armas por asas.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

DAS ÁRVORES



Alegria incompleta onde as palavras
nidificam entre pássaros e metáforas

em cada madrugada tingem mais de pólen
e sobressalto o empedrado das avenidas
das solenes avenidas com bar ao fundo

respiração avulsa e inquietude
é quanto as árvores podem dar-nos
se ainda tivermos tempo e fingimento

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

NUNCA MAIS



Há muito tempo que o Jacinto não fazia uma das suas. Em criança chamavam-lhe o desassossego, assim, com letra minúscula. Cresceu e os anos encarregaram-se da sua conduta e dos seus bichos-carpinteiros.
- Já não tens idade para essas coisas, ó Jacinto.
Era o que os pais lhe diziam constantemente, apesar dos seus quase trinta anos vividos com a pressa duma prova de cem metros e o fôlego de um corredor de maratona.
Quando regressa a casa com a noite quase toda em cima da cabeça, o seu maior prazer é ainda o de trepar o velho limoeiro no quintal das traseiras da casa e entrar pela janela do quarto, para que ninguém lhe aponte o mostrador do relógio ao pequeno-almoço do dia seguinte. E isso é sinal evidente de que a criança inquieta e pouco dada a contemplações, coisa de adultos, ainda mora dentro de si.
Do limoeiro conhece cada tronco, cada bifurcação dos galhos e, salvo os mais recentes, todos os nódulos que o ajudam nas escaladas furtivas. Teria também criado com certeza laços com folhas e limões, mas as primeiras são caducas e os frutos fazem parte do consumo próprio da família, sempre que o destino ajuda, como a seguir verá.
Pelo Natal de há uma mão cheia de anos, era Jacinto um adolescente com os miolos em ebulição e formigueiros no corpo, quis transformar o limoeiro em árvore para a quadra festiva. Ligou fios, fez derivações, enroscou lâmpadas e, por fim, passou as gambiarras por entre os ramos, de modo a que quase nada ficasse por iluminar.
Erro seu. A potência foi demasiada e, se não disparassem os disjuntores, o curto-circuito teria feito do velho limoeiro um monte de carvão. Foi um Natal muito triste. Não recebeu prendas e ainda por cima passou a noite de consoada a ouvir recriminações.
- Nunca mais!
Resmungava, contrito. Mas tal arrependimento, ainda que saído das suas entranhas, tinha o valor que tinha.
Mesmo assim, a pior façanha foi no dia do seu décimo aniversário, alguns anos antes. Para acautelar a casa de moléstias e correrias desastrosas para os teres e haveres, a mãe montou no quintal o aparato para o lanche e deixou o Jacinto e os convidados à solta, descuidando assim da preocupação de os controlar ao centímetro:
- Dali não passam.
Não passaram. Do chão não passaram. É que o aniversariante teve a peregrina ideia duma batalha campal, consistindo no arremesso de limões, previamente colhidos para os apeados e a rodos para os emboscados nos ramos da polivalente árvore de fruto, entre os quais se incluía.
Resultado: duas cabeças partidas devido a quedas desamparadas, alguns ossos fora do sítio, rasgões, arranhões e nódoas negras avulsos. Foi o balanço.
Parabéns, Jacinto!
Atirou-lhe o pai quando à noite regressou a casa.
- Vejo que os anos não passaram por ti. Continuas o mesmo desassossego de sempre!
Jacinto ouviu o responso de congratulações por detrás da ligadura de gaze enrolada em volta da testa que quase lhe tapava os olhos, apesar de tudo vivos, mas naturalmente pesarosos:
- Nunca mais!
Balbuciou incomodado com os acontecimentos do dia.
Em tudo quanto Jacinto tocasse, reservada estava a bronca. Uma espécie de Rei Midas do avesso.
Chegou mesmo a convencer-se que os azares lhe aconteciam por uma fatalidade muito própria já nascida consigo. Às vezes, sentia como que um impulso, um sinal de alta-frequência imperceptível para os outros, que o impelia para a asneira. Melhor dizendo: para caminhos que conduziam à asneira.
Poderia ser até que os citrinos tivessem algum poder ou influência negativa, como acontece nos filmes fantásticos. Mas não. Quando lhe sopra aquela campainha de sonar na direcção do desastre, quase sempre escuta outros sons, mais audíveis por todos e de proveniência bem conhecida, que são as palavras premonitórias da mãe:
- Vê onde te metes, Jacinto!
Ele não vê. Quer dizer, não quer ver. A sua ideia prevalece sempre:
- Isto? É canja!
O que importa agora é que está revelada a sua grande preocupação, o complexo da asneira, serôdia, mas nem por isso de menosprezar. Torna-se urgente um diagnóstico rigoroso e sem concessões ao arbítrio, e a terapia adequada.
Dúvida não há quanto ao elemento comum a todas as encrencas: o limoeiro. O problema é o seu relacionamento com a árvore, se nos é permitido este modo de nos expressarmos. Cortá-la está fora de questão; apontar-lhe o caminho da rua, muito menos. Haverá mais pano para mangas no elemento racional. Ele mesmo. A solução estará portanto no seu comportamento e na forma de se relacionar com o velho companheiro de infortúnio, afastando todas as hipóteses que contrariem os choques, as aproximações impensadas e as leis da natureza. Foi esta a fórmula que o Jacinto desenvolveu durante meses.
Sempre que, por força do hábito, circulava pelas traseiras, ficava de olhar fixo no limoeiro, às vezes como se de um desconhecido se tratasse, outras procurando uma resposta que, evidentemente, a árvore não lhe dava, e, outras ainda, com o espanto de lhe sentir a presença forte e dominadora de todo o espaço do quintal.
Sabe-se lá quantos Jacintos deste mundo adorariam ter uma árvore assim perto de si? Para a acariciar, para lhe sentir a doce aspereza do tronco robusto, para usufruir, enfim, do sumo dos seus frutos com água e açúcar.
Quando se lida demasiado tempo com alguma coisa, ao invés de o amor crescer na mesma proporção, parece que mais se desdenha e descuida e só a sua ausência provoca de novo o sentimento de angústia pela falta que essa coisa nos faz.
Sem qualquer explicação ou motivo que levasse a um desfecho como este, Jacinto amanheceu Domingo de Páscoa pendurado pelo pescoço num dos seus ramos favoritos. Branco, distendido como um lençol, morto.
Nunca mais, nunca mais voltarei a falar disto.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O TRASTE



Com a leveza da espuma,
luva preta em pelica
e um chapéu de aba e pluma,
como se arruma, que bem lhe fica.

A calça tem aprumo, um vinco
de goma e rigor fantástico.
Quase não se vê o cinto
e o par de botas de elástico.

Espreitam das mangas botões
de pérola em punho de renda,
(na verdade imitações)
mas alto lá com a encomenda!

domingo, 4 de outubro de 2009

O TRAJE


Dentro da lapela há uma tela
e em tê-la se entretém a vida,
como no mar alto içar a vela
esperar do vento o invento da saída.

De facto, o fato é um afecto
ou o tacto de um braço nu.
Assim o branco é brando no aspecto,
quando brinda em lençol de pano cru.

Por fim, o toque do laço
e para que o lenço realce, ao centro
o lance alongado do traço
e a legenda: frágil, leva gente dentro.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

MULHER E ALENTEJANA



A figura é religiosa e é profana,
como é sua fragrância costumeira,
se é um dom da natureza humana,
cheira a incenso e hortelã da ribeira.

Frágil, como mãos de costureira,
È, na sua essência, altiva, ufana.
Primordial e última trincheira,
ambas numa só, que a vida aplana.

A golpes de sol e lida humana,
curvada mais de músculo que de vontade.
E, à parte, doce – o mel é a verdade

toda! – que no auge da adiafa há-de
ser flâmula brandida à posteridade,
como exemplo de mulher e de alentejana.