quinta-feira, 29 de outubro de 2015

TROCADILHOS


Troco o lábio pelo beijo,
e a boca por um sorriso,
só não troco o meu desejo
por dois dedos de juízo.

E estes, de tanto te olhar,
com cegueira figurada,
antes mesmo de te tocar,
já tenho a vista trocada.

Troco anéis, que remédio:
os dedos fazem-me falta…
para sustentar no assédio
do meu solfejo sem pauta.

Troco sinais, coisa pouca,
de forma mais recatada,
e também troco de roupa,
não me faltava mais nada!

sábado, 24 de outubro de 2015

O RATO E A POESIA


O rato fez a sua obrigação.
A sua natureza de rato
ditou-lhe a sujeição, natural,
de roer a saca de trigo
e não encontrou
poesia nenhuma lá dentro,
uma estrofe que fosse.
Mas ficou satisfeito,
barriga cheia.
A poesia não enche barriga,
pensou o rato.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

O VERBO SER


Estás convencido de tudo, que conheces tudo;
que sabes até por que tudo é como é.
E afinal erras, enganas-te, tropeças e feres-te
por saberes tudo de toda a gente, tudo de ti.
Enuncias os verbos, conheces de cor os advérbios,
longe de saberes o que está mais perto…
Ainda agora acordaste e já o sono de novo te invade;
ainda agora nasceste, ainda hoje morreste sem dares por isso.
Conheces a migração dos pássaros e a raiz
que prende as árvores à terra pelo mesmo motivo.
É claro que é a vida. Que mais haveria de ser?
Aprendeste o aroma dos frutos, o valor da água,
do sol, da terra. É provável até que saibas o significado do sangue.
Do teu sangue e do outro que corre por aí, avulso e sem nome.
Estás mesmo convencido que és aquela figura
que te mostra o espelho, como ainda ontem aconteceu.
Se não falasses, não te teria reconhecido,
porque ainda falas e falar é o recomeço de tudo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

PERGUNTAS AO TEMPO


Para onde vai o vento,
que tanta pressa leva?
Para onde o leva o vento,
para onde o vento o leva?

O rio sabe que vai,
por enquanto sem saber onde.
Somente a água se esvai
das lágrimas que o rio esconde.

Para onde vai o trilho,
que não se lhe vê o fim?
E quem escolheu o caminho
que me calhou a mim?

sábado, 17 de outubro de 2015

(A) NEM MAIS


o rato no queijo
a mosca no prato
e um percevejo
algures no quarto

o cavalo errado
com pulga n’orelha
é bicho danado
do arco da velha

o que põe gravata
é d’ outra seita
social democrata
da ala direita:

a filho d’ égua
(animal ruim)
não se dá trégua
do princípio ao fim

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O CÉU A SEU DONO


No céu que vejo eu de novidade,
senão este ou o mesmo sol de antes,
nuvens estas ou apenas claridade,
erráticos pássaros em voos constantes?

Beirais, abaixo, rendilhando a lua,
prazenteira em seu jeito de engodo,
enchendo-me de luz a casa e a rua
de ilusões e céus de outro modo?

Deuses não vejo, sequer a sombra;
um turbante flutuando ou rasto,
e é este que não vejo que me cobra
o céu que não uso, de que não gasto?

Não há céu que assente como luva
mas que posso contra, outro há?
Se não me livra de calor ou chuva,
em cima também não me cairá.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

DEDUZIDO



Para onde vou ou quero ir,
quem sou, que penso eu,
o que de mim posso sentir,
tudo o que de mim é meu.

Como saber se é bem
o que por bem me faço
ou que mal há neste vaivém:
penso e daí não passo.

E se penso faço o que posso,
se posso já não peço.
Por fim, resta o remorso 
do que sou e não pareço.

domingo, 11 de outubro de 2015

RUA DOS FERREIROS

Aguarela de Luís Ançã

De ferreiros havia até a rua
forjada a suor de gente boa,
que o clero queria por obra sua,
em préstito, o demo à sua proa.

Os homens bons não queriam tal.
Dos diabos eram os dias quanto monta,
e o seu mister não prefigura o mal
mas, outrossim, o bem que desafronta.

Demandaram S. Dustan para o seu andor
aos inventores do ímpio e do sagrado,
por sua crença, sua audácia e valor.

Jamais a penitência e a infausta associação
ao demo que, depois de ser ferrado,
agora suportavam, de canelo, em procissão. 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

LIGUSTRO


Revelo que apanhei um susto
com a tua graça tão estranha:
com esse nome, ligustro,
julguei que estava em Espanha…

Mas não, era cá, quase sem
sair de casa. Que surpresa!
Eu, que te olhei com desdém,
para agora te trazer presa.

Por supuesto que me gustas,
muito mais que a outras tais
- não tomes estas por injustas –
gosto de uma muito mais.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O SISTEMA


Nos sonhos nunca encontro os papéis,
e nem sempre é pesadelo nocturno:
sobram-me os dedos, vão-se os anéis
e nada disto me compara a saturno.

É de outro lugar, de outro firmamento,
o desconforto, a aflição, a cabeça à roda.
Na verdade é náusea, descontentamento,
sintoma deste tempo que virou moda.

Afora a frustração, a raiva e demais agravos,
sinto as dores de outros, sonhando ou não:
ou alguém anda a fazer de nós parvos
ou a doença precisa de nova prescrição.

Os olhos, de cansaço feitos, vêem no céu
a vastidão imensa e escura do sistema
e dentro, apenas lágrimas têm de seu,
por vezes um grito como é este poema.

sábado, 3 de outubro de 2015

O RELÓGIO DO ANÚNCIO


Há algum tempo que os ponteiros do relógio
à minha frente marcam dez e dez – a hora do pinguim –
Não me interessa saber que horas são
mas o relógio insiste e seduz-me
com aquela hora nada séria.
Olho-o sem querer: todos os ponteiros pararam
para que os fixe com rigor. Isto é um embuste.
Ninguém pode fazer isto a um relógio
- que foi feito para não parar no tempo, ainda que assinale
apenas o presente; nunca o futuro ou o passado -
Muito menos a mim, que olho para ele por nada.
Passo a página deste anúncio.
Já estou aqui há imenso tempo parado como o relógio.
Não o vou comprar e perco o meu tempo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

ADEUSES


Ah, que sorte: hoje há deuses lá em cima
sedentos de versos, dormentes de sono!
Vou fazer-lhes pontaria com rima
e acertar-lhes em cheio no buraco do ozono.

Podia ser em lugar alabastrino, como a testa,
mas é pecado, além da enviesada geografia:
não os quero mortos nem o fim da festa,
quero apenas treinar a pontaria.