quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

JOSÉ FERREIRA MONTE


Às escuras, estendo a mão aberta, e afago
o Tempo de Silêncio em repouso, vigilante.
Ainda te oiço gritar o verbo mais amargo
da tua lucília e austera poesia militante.

Que amargurado poeta foste a vida inteira!
Bradavas os teus versos e esse era o pranto,
a arte e a razão, únicos e à tua maneira,
poeta e homem em cada verso do teu canto.

Depois, é como se alvoroçássemos de novo
a Quinta do Amieiro na passagem de ano,
com Pablo, Lopes Graça, as Heróicas do povo,
neste tempo - como então – ainda insano.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A NEVE


Às vezes nevava.
O céu oferecia a neve para poder entrar na folia,
como qualquer de nós cedia a bola para entrar no jogo.
Os dedos só gelavam nos primeiros instantes.
Daí a pouco tempo, as mãos ardiam como brasas.
Às vezes nevava.
Era um lençol branco e imenso, quase sem limites.
Mesmo assim, alguns levavam braçadas de neve para casa,
na esperança de que assim não derretesse.
Uma qualquer espécie de alquimia
haveria de conservar o gelo
e transforma-lo em miragem perene e mágica,
para íntimo deleite.
Às vezes nevava.
Fazíamos anafados bonecos com apêndices postiços,
bolas de arremesso,
construções que a imaginação
e a quantidade de gelo permitiam,
escorregas improvisados.
Às vezes nevava
sem sabermos muito bem porquê,
nem o préstimo de tanta alvura.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

SEGUNDO A CRÓNICA



A ideia de que cada um fala por si, faliu. Hoje, é cada vez menos isso e cada vez mais o eco de outros que nos asseguram que assim é.
Sem a necessidade constante de ressarcir direitos de autor, basta seguir o rasto, segundo as fontes bem informadas.
Assim se pode debitar que aumentam os crimes violentos, os de colarinho branco, os roubos por esticão, o consumo de drogas e a corrupção, segundo as autoridades policiais. Aumenta a inflação, o desemprego e os índices de pobreza, segundo as estatísticas. Assim como os combustíveis e os impostos sobre veículos não tardarão, segundo Vítor Constâncio.

Segundo a imprensa, nenhum dos ministros cessantes solicitou o fundo de desemprego ou qualquer outro subsídio para sustento familiar. Há mesmo alguns que não decidiram o que fazer, face às opções disponíveis, e outros que vão de férias reflectir sobre o que muito bem entenderem. Pelos vistos, acompanhados de muito boa gente privilegiada, a quem sobraram uns tostões para as férias de Natal, segundo as agências de viagens.
O povo, no entanto, precisa mais de reality shows e de conversa fiada que de pão para a boca, segundo as televisões. Segundo o Necas isto paga-se, mas não é tempo ainda de enxergarmos tal desfecho.
E por que carga d’alhos os portugueses, não os ingleses, não os alemães, não os franceses, mas os portugueses, dizem, são o quarto povo mais xenófobo da Europa, segundo inquérito promovido por um qualquer organismo europeu? Que raio de perguntas levaram a tal conclusão?
Belmiro de Azevedo é o 378º. mais rico do mundo, segundo as contas que alguém fez e está interessado em que nós saibamos.
Doce é o sono de quem serve, quer seja pouco quer muito o que ele come; mas a fartura do rico não o deixa dormir, segundo Eclesiastes.
Aumenta a fé, segundo a Fé.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA


O fim começa aqui – eis o teu passatempo eleito,
Mário-Henrique, o teu gin-tonic e tua condição.
Afinal, eficazes. Digo, o tonic é tão perfeito
como eu escrever estes versos e me chamar João.

Fazendo de conta que a musa que me inspira
é uma daquelas plúmbeas de rótulo amarelo,
seguro os teus versos – quero lá saber da lira
e puxo o cobertor, que o quarto está um gelo…

Na tarimba refilas, esperneias, fazes cenas
e pedes um lugar na almofada, à cabeceira.
E que consegues, contemplação? Não. Apenas
enfado e a ressaca de uma enorme bebedeira.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

PLANO B



Não é o mesmo que o lado B da vida; do disco que se preenche do outro lado, apenas por que o dito tem obrigatoriamente dois lados. Não. O plano B é algo que se aplica quando a principal tentativa se gora. Tem como características fundamentais ser de inferior qualidade, ter maiores probabilidades de ir por água abaixo e, pior que tudo, carrega às costas o ónus do falhanço.
E a primeira tentativa desta maioria ia no sentido de mostrar a verdade aos portugueses, de melhorar as coisas, de tornar mais fácil o que porventura outros teriam convertido em insuportável, li nos jornais.
Eis assim que os primeiros adoptaram como plano alternativo a difusão da ideia de que o povo está contente; as elites é que instigam o protesto, enquanto os mestres da empalmação que os precederam, garantem que tudo não passa duma inconcebível cabala, o que nos leva de novo a pensar na mãozinha misteriosa. Em resumo, quer de um lado quer de outro, entrámos no domínio da prestidigitação, da cartomancia ou sei lá de quê neste país acostumado a ir à bruxa, e o mesmo é dizer que ambos adoptaram o plano B, para mal dos nossos pecados.
Mas nisto de adopção do plano B, sendo paradigma dos meios políticos dominantes, não é infelizmente exclusivo seu. Aliás é moda, talvez copiada da teoria conhecida por terceira vaga, qualquer que se preze dá ares da sua arte de bem cavalgar em toda a sela.
O destaque vai necessariamente para a quantidade de gente mais ou menos conhecida noutros misteres – como excepção à regra, aparentemente bem sucedidos – que de repente desatou a escrever livros sobre os mais variados temas, a maioria autobiográficos, dando assim ares do seu eclectismo, para desgraça da literatura.
Voltando no entanto à vaca fria, poderemos estar perante uma nova ilusão: um qualquer signo trocado, um horóscopo mal interpretado e o principal plano não passar afinal de cortina de fumo que não deixa ver a verdadeira essência do plano B, tal como o conhecemos. Por isso julgo que cabe assim aos restantes cidadãos molhar a pena noutro tinteiro e escrever por linhas tortas o que, não é preciso enxergar muito, não é possível nas direitas.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

RUY BELO



Contigo não faço mais que a minha obrigação.
Só não sei o que fazer com os teus versos d’iodo
e a tua mortificada vida, cantada na Consolação,
poeta à tona ou naufrago, dito de outro modo.

Arrimas às ondas as rimas das odes alterosas
e os poemas desfazem-se em sal e espuma.
- Densos e sublimes são teus versos e prosas,
inquietas odes, que desfio à noite, uma a uma.

É como ter no mesmo frasco o mal e o remédio
e, voluntariamente, tomá-los qual bebedeira,
de modo que, desperto e de exuberante tédio,
durma enfim, merecidamente, a noite inteira.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O AVISO DAS CEGONHAS



As cegonhas chegaram já, silenciosamente.
Ei-las, madrugadoras, como anjos aturdidos.
Ainda sem jeito, miram lá do alto a gente
que passa e não as vê nem lhes dá ouvidos.

Não trazem – como na fábula – o bebé no bico;
a prole é a sua apenas – já não é segredo –
e eu, se as olho, é porque as amo e porque fico
a matutar, que arcano as leva a vir tão cedo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A PALAVRA DO MESTRE



No princípio, disse o Mestre:
- Passastes a provação do oásis autista, anunciado por aquele que cuspia pela boca quando falava; também a do que nada via e por isso acreditava que o homem haveria de morder o cão e ser notícia.
Depois mergulhastes na miséria da tanga e na noite das concubinas. Estais aptos para tudo. – Concluiu.
Não mais a mentira e a trafulhice, precipitaram os de maior fé.
Volvidos anos e lustres, ei-los como vistosas libelinhas, de nenúfar em nenúfar, espalhando o amor e a semente, para que os vindouros se sintam como verdadeiros eleitos, excepto os fariseus.
Assim, o Mestre entregou um cantil de lama a cada um e disse:
- Levai, que nesse cantil, mais do que a água vai a esperança da terra prometida, cujas sedes sacia de toda a qualidade.
Parou, por instantes, para olhar a cara dos discípulos, não fosse neles encontrar incompreensões ou quebres de disciplina, logo no início da caminhada, e prosseguiu:
- Caminhai sobre as pedras aguçadas e dizei a todos que esse é o caminho por vós escolhido. Esse é o sacrifício que vos exijo e por isso sereis recompensados com a minha bênção.
Ficou a escutar o murmúrio dos discípulos, inconclusivo, o que foi tido por aprovação unânime.
O Mestre preparou então os itinerários de cada um e concluiu:
- Caminhareis sobre as águas sem vos afundardes, trespassareis o fogo sem queimardes sequer uma pestana, e as vossas palavras serão o oiro do povo, mesmo para aqueles que contra vós vociferarem, pois esses são com certeza fariseus.
-Não sou santo – disse o Mestre – Santo é o meu pai, que foi, que é e que será.
O caminho é comprido e cumpridos serão os desígnios do Mestre. Haverá imposto sobre o salário porque essa é a sua vontade. Virão depois os que hão-de negar, e tais serão expulsos, escorraçados como cães, lá para onde o demónio quiser a sua companhia. Hão-de vir os cépticos, os cegos e, pior, os que não querem ver, mas desses não será este reino. São naturalmente os fariseus.
E mais disse o Mestre, que haveria de criar um novo céu e uma nova terra e que por sua graça não haveria recordação das penas já passadas.
Não era ainda a Revelação. Os sinais da Revelação haveriam de surgir quando os homens construíssem a grande torre da discórdia, construída em assembleia e em variadas falas e adulterassem os desígnios do Mestre. Seria então o primeiro mártir deste caminho feito em círculo. Cairia de exaustão, quando muito teria ainda para dar, segundo os companheiros, quando a maioria lhe faltar, segundo os fariseus.
Do mestre nunca se ouvirá que este será o princípio do fim dos tempos, mas há-de ser esse o tema da conversa dos proscritos e de todos nós, os fariseus.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

ANO COLORIDO



Vêm Janeiro e Fevereiro
e ainda não abri o tinteiro.

Chega o primaveril Março
com matizes de pigarço,

assim como o não menos Abril,
mas em tons de rosa e anil.

Quando irrompe Maio
já há cores em que não caio.

De repente, vem Junho:
de que cor é este punho?

Lentamente, lá vem Julho.
este tem a minha cor. Pouco barulho!

Mais devagar, Agosto
e o vermelho ardente do sol-posto.

Sorrateiro, entra Setembro.
Não tem cor ou não me lembro?

O mesmo direi de Outubro,
de que sei a cor mas não descubro.

Novembro e Dezembro vêm a seguir
cor de burro a fugir.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O NOSSO MAL É FOME




Os teus olhos despem-me e insinuam
por exemplo:
por aqui passa a água das marés…
sei que é errado, mas de momento quisera apenas saber
se era ariano, arianíssimo, o inventor
das bolas de Berlim
e desdenho os teus impulsos.

Quando sou eu, dedilhando o teu decote e a minha mão
balança já,
lembras-me de fomes e desculpas antes que aos lábios
um sorriso aflore
e queres que saiba se os mil folhas
são a obra-prima do mais guloso dos burocratas.

Assim se desvanece o dia,
o brilho elementar da madrugada,
a nossa espera.
Logo hoje que foi divulgada a estatística
de quantos pastéis de belém/tempo de mandato
comeram os senhores presidentes da república

e deu empate

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

ENERGIA ELÉCTRICA



Olha que isto da energia
tem o seu q de engraçado:
põe música na telefonia
p’lo fio de cobre, isolado,
que podia julgar magia,
não soubesse eu da porfia
dos operários do outro lado.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

ÁRVORE DE NATAL


A ventania de ontem à noite
tombou uma azinheira centenária, em frente da minha casa.
O fôlego da tempestade,
em contraste com o seu já débil alento,
foi superior às suas forças. Respirava ainda quando a vi:
arrastando a ramagem
e os escassos frutos no chão molhado,
suplicava o impossível conserto da sua coluna vertebral.
Não chorava – tanto quanto eu pudesse perceber – suplicava
a mão, o gesto ou apenas o olhar
a quem sempre a julgou eterna e eterna haveria ser
depois de nós e ainda dos que viessem.
Com um dos ramos tocou-me ao de leve.
Pareceu-me uma carícia, um aceno
ou o desejo de lançar nova raiz,
agora que a morte tornava inevitável a remoção.
Aceitei o ramo como presente.
A velha azinheira ofereceu-me a sua eternidade.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

MOSCAS

A mosca é aquele bichinho desagradável que nos mata a paciência até que… paciência.
Há dias recebi um pps com alguns exemplares do insecto em poses não muito ortodoxas. Vai daí, resolvi vingar-me, expondo-as. In-terceptei-as.


a mosca varejeira
calça meia alta.
batoteira!


em fila indiana
a mosca salta,
não se engana.


estás com ela.
- de burro,
disse a mosca.


-hei, suas toscas
não é aí que as moscas
fazem chichi


vamos, busca
mosca
e descobre a marosca.