terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O POETA



O poeta rimava palavras com pássaros.
Às vezes, apenas com a sua breve passagem,
falava como se voasse.
Viveu todo o tempo num golpe de asa.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

clarIDADE



Agora, uma luz brilhante e enganadora
vem trespassar-me o corpo, corrompida
como os demais gládios. Mas esta agora
tem modos e aferros de morte assistida.

Fere a alma sem romper uma só veia
e executa com perícia a delicada operação:
mordisca, lambe, beija e só por fim arpeia
com firmeza o quebrantado coração.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

PERFIL


Fomos
um país jardim
paralelos a Greenwich
e à fome

sujeitos a toque de clarim
e a prisões perpétuas cujo nome
não se lia na história

Somos
um país jardim
com os pés ocidentalmente
sepultados
nas campas do terreiro
em sangue
a soletrar tabuada sem memória
e umbigos soltos de alegria
cultivamos a vida
a outra via
a lida
outra saída

Seremos
um país jardim
ou selva
enquanto estacas
sobre a relva

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O MUNDO À JANELA



O mundo pôs-se à janela
debruçado no parapeito
e viu-se pintado em tela;
num quadro quase perfeito.

Não era o mundo afinal
aquele quadro pintado:
era apenas um postal
do mundo em seu passado.

Propaganda e nada mais
de um mundo de sucesso,
que visto assim em postais
nem parece do avesso.



sábado, 19 de janeiro de 2013

DANÇA



Dança que dança
e torna a dançar
um pé que avança
o outro no ar

Dança que dança
(ai pé que te atrasas…)
dá voltas à trança
que os braços são asas.

Dança que dança
com um pé atrás
e o outro em lança
coração onde estás?

Dança que dança
o baile mandado
que pla noite avança
sem estar acabado

Dança que dança
que em tua defesa
hoje há lembrança,
é dança inglesa.

Dança que dança
em bicos de pés
dançar já não cansa
uma, outra vez.

Dança que dança
dança a compasso
sem perder a ‘sperança
sem perder o passo.

Dança que dança
(que dança comprida!)
mas dança, dança, dança
a dança da vida.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

CUIDAR DO SOL



Atava o sol, se ele deixasse,
na ponta, com um cordel,
e ficava de olho nele
do lado que mais brilhasse.
Deixava-o brincar no céu,
levando-o sempre p’la mão,
como se fosse um balão
de ar quente e só meu.

Abraçava o sol, se pudesse,
cuidava dele noite e dia
e eternamente fazia
com que nunca arrefecesse.
Beijava-lhe as mãos e o rosto,
com desvelo redobrado
para ficar sempre acordado
e nunca mais haver sol-posto.

Se o sol quisesse, subisse,
se não quisesse, ficasse,
mas que desse sempre a face
do local de onde o visse.



terça-feira, 15 de janeiro de 2013

SOMBRAS

Foto de Mário Quintas

Sombras, nevoeiro e sombras é o que vejo!
Nada pode ser real; apenas diviso o que resta
do que passa à contraluz.
Ainda assim há o rasto (que não sigo),
a impressão quase cega do que está para acontecer.
Quando os rebentos florirem
falaremos então de coisas bem melhores.

domingo, 13 de janeiro de 2013

ABANDONO



Secos, secos, amargamente secos,
os rios que, longe daqui, me corriam na memória.
Às vezes o sol parecia mergulhar comigo;
às vezes o sol e a água eram a mesma coisa.
Assim, terei de abandoná-los,
para a água me invadir e voltar às correrias
de pedra em pedra,
roçar os salgueiros das margens e levar-me,
folha seca, até à foz.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

PRIMAVERA



A esta hora, de noite avançada, de rigoroso gelo,
de cruel inverno,
tudo serve ao orvalho para a sua gélida fogueira:
o vento vagabundo, a brancura da lua, as lágrimas
dos pássaros sem abrigo e, apesar disso,
pulsam já as veias e os pequenos corações
de todas as flores que hão-de acender a próxima primavera.
Na primavera, que já segue os passos das horas de sol,
nada desta luta é afinal relevante:
nem das flores moribundas dentro das raízes;
nem dos caules sacrificados, já a fazer pela vida.
Daquilo que a seu tempo saberemos
será dado sinal:
o mar de cor na terra finalmente libertada.



quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

FALSIDADE



Por muito menos que um alexandrino,
(em curtas orações de versos sem rima)
contaram-me na catequese, em pequenino,
que o mistério da verdade vem de cima.

Então quis por à prova e aqui fazer ciência,
quanto sou capaz, em terra, por via da ilusão,
e dar aconchego, bem-estar e luz na aparência,
quando tudo é simulado no bastidor da escuridão.

Nada mais verdadeiramente enganador
que a exuberância deste luar de Janeiro;
chegaria mesmo a enganar, o impostor,
não soubesse eu que a luz é do candeeiro…

domingo, 6 de janeiro de 2013

ONDE MORAM OS POETAS



Abdicam das asas,
frequentam varandas e janelas;
habitam as casas:
amam e dormem dentro delas:

o dilecto lar, habitação
em longas prestações suaves,
cujas causam mais preocupação,
que perder as chaves.

Lágrimas não precisam de factura:
podem à-vontade ser choradas;
furtivas umas, outras de candura,
a maioria nas águas-furtadas.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

VOAR COMO



Voo a céu aberto, como as aves,
(queria voar como elas!)
Voo como sei, como sabes,
como outrora as caravelas.

Às vezes avisto água, outras chão
(água turbulenta; terra à vista)
e como sonhos, por mais que insista,
não passam de miragens, de ilusão.

Se, porém, a baixa altitude,
enxergo o que não vendo via,
volto a subir, que o voar me ilude
o que então vejo e ver não queria.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

SONETO A SUL



Espreita-me o sul de qualquer lado;
nem tanto o norte, meu vizinho.
Terão os cardeais de mim suspeitado
que andando faço caminho?

Como o caminhante de Machado,
preso a norte, de raiz, de terra e luz,
é o sul que me traz acorrentado,
que com apenas vê-lo me seduz.

Errante como o vento enquanto dura,
de Ítaca não esperando mais que sê-lo
para a ter por sítio e sepultura

ou então trincheira, muralha, castelo
de guerreiro encarcerado n’armadura,
cuidando o seu destino ao setestrelo.