terça-feira, 29 de setembro de 2015

ORAÇÃO DO CONSTRUTOR CIVIL


O caminho será longo e difícil – diziam –
e de pedras, acrescentavam os empreiteiros.
Veio depois o cinzento; o cimento como o viam
e o sol morreu às mãos dos engenheiros.

O casario cresceu como caixotes em pilha,
pedra sobre pedra, tijolo sobre tijolo
em alindadas avenidas, prosaica ilha,
brotavam ervas daninhas em fértil solo.

A um tempo opulência e miséria franciscana,
pechisbeque trocado por ouro de lei;
omnipresença publicitada em fé profana,
agiotas e otários, peditórios para os quais já dei.

O deus dinheiro abençoado em tal crença
corrompeu, lambeu botas nos bairros da cidade,
demais obras simuladas vieram marcar presença
mas nada consta nos livros de contabilidade.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

POEMA À MÁQUINA


tec tarec tec

a máquina
de escrever
à tec tecla
poemas plim
rima assim:

tec tarec tec

tec larec tac
re re retrocesso
meti o dedo
no buraco

tec tarec tec

maiúcula plim
a vermelho
minúscula ploc
muda a cor
agora não rima
fica assim

terça-feira, 22 de setembro de 2015

AS TARDES



Nunca as tomei a sério:
lambuzado de poemas, apertava com força
e descuido o sexo das borboletas moribundas

e subia pelas cordas estendidas
na sombra às cerejeiras que suplicavam
o contacto das minhas pernas nuas,
entrelaçadas na frescura seca
dos seus ramos meigos.

Descia
ainda
abraçado
ao tronco,
farto, meio sujo,
com os lábios tingidos de vermelho
e dois cachos de poemas
pendurados nas orelhas.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

POEMA DO MAR


Confia em mim – disse o mar –
eu protejo-te, avança…
(ele que não é flor de se cheirar
nem amigo de confiança)

Contudo, tem charme e mistério,
ousa matar sem piedade:
tanto pode zangar-se a sério
como depois ser bondade.

É assim que o mar ensaia
ondas e marés em vaivém,
pelo menos visto da praia
é tudo o que o mar tem.


quarta-feira, 16 de setembro de 2015

RELENTO



Ao entardecer o mar é imenso e calmo. Dorme.
escurece o xisto das falésias e a noite
faz-se acompanhar de estrelas refulgentes.
O Sol partiu; mergulhou exausto no oceano.
Descansa agora. Na praia há silhuetas de gaivotas,
que tresandam a peixe. Porém, vistas ao longe,
mantêm o alvo encanto como se voassem.
Dizem-me que na minha voz se ouve o mar
e ele murmura lá ao fundo como quem fala…


As nuvens vermelhas acabam de sucumbir. Iradas.
Sobrevem o sono e o sonho. Todas as fantasias.
Um olhar de não ver, não vislumbra os batéis
que a esta hora demandam o peixe de amanhã.
Ancorados nos pesqueiros conhecidos,
pescam o pão nosso ao relento de cada noite.
Quando o farol faz a sua aparição,
aquieta-se o vento, digo, nos nossos sentidos. É o tempo da maresia
e da espuma das ondas (um traço branco) que a lua denuncia.
O pano escuro que a noite tece a todos enfeitiça,
a todos mente e nós gostamos que nos minta.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

SE

Leonid Afremov

Gomo a gomo saciarei a fome, a sede,
se ainda houver laranjas.

Lábio a lábio escalarei os teus beijos,
se ainda houver amor.

Hora a hora sonharei os dias e o futuro,
se ainda houver amanhã.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

MAIS CAMINHO


Caminho até onde posso ir
sentado na velha pasteleira,
escolho o trilho sereno
das árvores, das árvores gigantes,
partilho com elas o bosque,
a terra, o vento, cada clareira,
e mais nenhum itinerário é agora
igual ao que foi antes.


segunda-feira, 7 de setembro de 2015

OUTONO ANTECIPADO

Klimt, mulher com leque

Reparo na poesia de todas as coisas:
das árvores que sacodem as folhas já amarelecidas,
mantendo ainda o porte denso e vigoroso;
dos pardais que a elas regressam em louco frenesim
ao fim da tarde, como se temessem que o sono
os surpreendesse em pleno voo;
do baile sensual da calçada portuguesa em vésperas de Outono
e da mulher, de calores serôdios, que se abanica
e que, olhada de repente, parece uma improvável criatura.
E assim me convenço de que a poesia é o movimento das coisas,
a insinuação da vida pendente
em tudo o que recusa a fatalidade da morte.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

POESIA É COM UM PÊ


Foto de Nuno Milheiro

Com a leveza duma pena, Ramos Rosa
apagava o fogo posto para depois incendiar
as palavras mais além.
Herberto fazia de conta (de conta e risco)
que o mundo era uma enorme e inconclusiva queimada.
- Se ainda me conseguires entender, poesia,
é o pé de brasa em que ficámos.
A vantagem é que as cinzas podem ser um recomeço;
o problema é que a colheita se perdeu
e os ditongos não são de geração espontânea,
excepto os ais de dor e os ais de amor.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

CORRIDA DE BICICLETA


Primeiro um pé e a seguir
o outro para ajudar.
Depois é sempre a abrir
sem deixar de pedalar.

E é vê-los como um tiro
já em pedalada solta
quer lhe chamem Giro,
Vuelta, Tour ou Volta.

Sai compacto o pelotão
mas depressa se esfarela:
uma fuga, mais um esticão,
tudo pela camisola amarela!