quarta-feira, 30 de abril de 2014

MAIO


… Fez-se então Maio o este fez o recomeço:
o princípio das coisas e o fim das dores
que sempre tiveram cura com pós de agora…
A charneca enxugou já das últimas chuvas, as ervas e flores
soltam por fim os cabelos ao vento,
gritam entre si em longas correrias.
Não que eu saiba, veja ou tivesse alguma vez sonhado, não:
sinto-o apenas e guardo segredo,
que só revelo depois, noutro Maio tão transparente como este.

terça-feira, 29 de abril de 2014

VERDADEIRA MENTIRA


O que vale uma bela verdade
sobeja de uma mentira bem urdida, repetida.
Andam por aí como andorinhas perturbadas, as verdades
e como arneiros espaventosos, as mentiras.
São ambas de livre acesso:
na política de cá e na que se faz lá fora,
nas grandes superfícies comerciais e no guiché
das urgências, enquanto ainda nos comprazem os sentimentos cristãos,
nas paragens e no interior dos transportes públicos,
na escola, incluindo os períodos de recreio,
nos andares acima e abaixo do prédio em que habitamos,
(é bom não começar já a duvidar de nós mesmos)
naquele terço de dia em que sublimamos os instintos predatórios,
em todas as repartições públicas e é provável
que também nos códigos de barras, mas não posso garanti-lo.
Ao contrário da verdade,
dizem-me que a mentira é perfumada.
Talvez por isso não direi o que me tinha proposto:
cheira mal.

domingo, 27 de abril de 2014

PINTURA



Fosse magistral pintor
e coloria com destreza
em todo o seu fulgor
a dolente Natureza.

Apenas palavras, matizes,
dispõe a minha paleta.
e são elas as actrizes
que fazem de mim poeta:

mudo as cores a gosto,
com elas faço o desenho,
fogo preso, fogo posto,
cinza é que eu não tenho.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

ABRIL


Em Abril, já o grito de revolta era maduro,
já o trigo intenso rompia na seara.
Em Abril, já a claridade era sol puro,
que, pela bondade, era ainda coisa rara.

Ao matiz das papoilas nada se compara,
nem aos cravos ardentes, que do escuro,
brotaram rubros,  naquela manhã clara,
ao mesmo tempo a luz e o seu futuro.

Nada a declarar. Além da liberdade,
em rascunho, alguns apontamentos
clandestinos para esse Abril de tenra idade.

Cresceu. Foi Maio noutros momentos,
foi em pouco tempo uma eternidade
e foi depois Novembro e outros ventos.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

POEMA CONSEGUIDO (QUASE)



Era uma vez uma borboleta
de vida efémera e pouco lisonjeira,
de olho nela estava um poeta
de sorte igual e vida passageira.

O pouco tempo de vida airada
foi voar, voar, voar, voar…
que um só momento poisada
lhe causavam falta d’ar.

Voou então a seu bel-prazer,
de flor em flor, à sorte,
até que um dia, antes do sol nascer,
poisou nela, inevitável, a morte.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

DUAS OU TRÊS PALAVRAS SOBRE A DETERMINAÇÃO


Diz-me a vontade que execute
o que a liberdade me priva:
diz-me a vontade que faça; diz-me a liberdade que lute!

sábado, 19 de abril de 2014

TRANSITIVO


Em parte vou, em parte fico;
não sei se estou, se me ausentei:
não me identifico
e se acaso sou, não sei.

À parte, vou sem lei,
se ir for divagar.
Para onde caminhar, não sei
se ainda há lugar.

O que havia a dar, já dei
para meu completo azar
e só no fim vejo que me virei
sem querer de pernas para o ar.

Se em tudo, enfim, tiver sido eu
ou o que em mim permaneceu.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

PARÁBOLA



O cego tinha sede e bebeu da fonte.
Depois, por enxergar o sol, chorou
ao vê-lo despontar no horizonte
e ao negrume não mais se acomodou.

O surdo, para quem o leito cristalino
de água pura era somente um rio,
ali matou a sede e chorou como menino
quando ouviu da torrente o assobio.

O mentiroso, aos sorvos, tentou
saber também o que era aquilo
sem sede, não soube o que provou
e chorou lágrimas de crocodilo.

terça-feira, 15 de abril de 2014

CÃO DE CIRCO


O cão é esperto, o cão
vai à televisão
com outros animais
e contradiz aos jornais
o que ontem desmentiu
a sangue frio.
O cão mente
e ri de contente.
Com a corda no pescoço
diz que o osso
só a nosso ver
é duro de roer.
É bom de acreditar,
se for outro a mastigar…
mas como não,
é conversa de cão.
- E se fosses, cão,
 lamber sabão?
diz o povo,
isso é de cão ou de lobo?

E foi assim que o cão
lambeu a bola de sabão.

domingo, 13 de abril de 2014

AMATO LUSITANO


In antologia Amado Amato, organizada por Pedro Miguel Salvado e Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata.
Foto de Jorge Costa, in Cultura Vibra


Haverias de sair para ser gente, gesta
imaculada deste povo crespo e arredio,
que de seu só sabe o quanto presta
se de si mesmo ouvir de outros elogio.

Deram o teu nome à minha escola,
fizeram dele mais coisas de aprender,
Amato. Mas sabe a pouco, cheira a esmola,
pelo muito que há ainda por fazer.

Em estátua tens a verdade nua e crua:
foi-te a vida de saberes e de degredo
e agora, quieto, que apontas para a lua,
há quem insista e te olhe para o dedo.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

ÁGUA, UMA AUTÓPSIA


Analisada a composição, em suma:
duas moléculas de hidrogénio
para apenas uma de oxigénio,
é água, sem dúvida nenhuma.

Pelo ar dolente dá para ver,
sofreu maus tratos e escravidões,
espargida por mil religiões,
contabilizada em deve e haver.

Desperdiçada, mal compreendida,
acolheu aqueles, que ao naufragar
lhe rogaram pragas de arrepiar.
Foi tudo na vida, tudo em vida.

Acarinhada no desvio ou conduto,
teve amores também entre o povo
hoje aqui, depois ali, sempre em recovo,
mas nunca por si, antes pelo fruto.

Tem cor esverdeada, sabe e fede
e alimentou o mundo mesmo assim,
morta-viva correndo para o fim,
a autópsia é clara: morreu de sede.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

QUE ESTRANHA A VIDA



Que estranha a vida, que destecer constante;
ainda ontem a tua mão ma abraçava um dedo
e já hoje, que é este momento e ainda é cedo,
não caibo nos teus braços  um só instante…

Que estranha a vida em que nos entretemos
num vaivém  de sombras e de fugazes alegrias,
vida feita de lustros mas onde só contam os dias
em que o sol aquece – como a tua mão – … é o que temos.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

A PULGA


A pulga pula
de pelo em pelo
e salta,

suga, estulta,
pouco a pouco
o sangue suga.

A pulga avulta
gota a gota
e muda.

Se resulta,
chupa, chupa
e deglute.

Insone, cata-
 -pulta  e some
a puta.


domingo, 6 de abril de 2014

O CANTE


(Excerto de Mar de Pão)

No tempo em que a taberna do Faustino se enchia de homens ao fim da tarde, cada qual com o seu naco de merendeira e o toucinho, a linguiça ou as azeitonas, regados por três ou quatro copos de vinho da casa que, para serem bem aviados, haviam sempre que ficar a deitar para fora, nesse tempo, a deita era para mais tarde. Em grandes algazarras, punha-se a conversa em dia, bradando com interjeições apropriadas aos que iam entrando ou saindo. Em hora de despedida e porque o vinho também é grande ajuda destas andanças, lá se fazia um despique de cantigas, em que o cante tomava inevitavelmente o primeiro lugar.
Joaquim das Vacas foi interessado animador destes convívios. Não tomava a iniciativa na cantoria, mas acompanhava com gosto e até mesmo com paixão, sobretudo quando eram as suas preferidas do Grupo Os Trabalhadores de S. Bartolomeu do Outeiro ou d’Os Ceifeiros de Cuba. A sua especialidade era, isso sim, a conversa animada entre dois copos.

Campo das Letras, 2003

sexta-feira, 4 de abril de 2014

NO JARDIM


Em todo o seu esplendor
a  exuberante borboleta,
poisou na mais linda flor
no dia em que quis ser poeta.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

LER & ESCREVER


Escrever, o que é escrever?
É o sopro que enche um balão;
ler depois, o que é ler?
É transformar um livro num dragão.