quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O MEU CAMINHO


Com tenra idade acusam-me de ser mais uma, de estar a mais.
Outros a menos, por via das estatísticas e ciências demográficas.
Não quero ser um número, nem sobrecarregar meus pais;
quero ser eu, exposta ao tempo e demais alterações climáticas.

Vou-me embora. Não me importo com o caminho a percorrer…
Estou de malas aviadas: vontade de partir com o meu ursinho
de pelúcia. Farta que me digam o que, crescida, devo ser;
quero somente ser eu, as minhas circunstâncias e o meu caminho.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

DOIS MUNDOS


Aqui não batem horas
mas contas e demais
juros e aforas
adentro dos vitrais.

Omnipresente, a Torre,
lá está de sentinela
em vigia que ocorre
para cá da grande janela.

domingo, 26 de outubro de 2014

ANTÓNIO SALVADO


No mais recôndito aceno ou verso,
por ser insondável a sua natureza,
uma alegre e imperceptível tristeza
detonou num poema além disperso.

Outro emerge definido, com certeza,
tal como as ave-marias do terço;
regressa ao céu, ao sono de novo verso,
ateu e rude, interrompendo a reza.

Só então as lágrimas, as mais choradas,
as que, por mais subtis ou disfarçadas
desabam rosto abaixo, quais grafemas,

deixando a descoberto mágoas e penas,
restos não cristalizados doutros poemas
ou mais lágrimas, mais lágrimas abençoadas.

sábado, 25 de outubro de 2014

POEMA DE LEI


Passo a vida a cumprir leis, estas e não aquelas,
por isso também infrinjo normas e decretos
e regulamentos e mandamentos avulsos,
que terei sempre de observar,
mesmo que nunca os tenha visto mais gordos.
O legislador é como um alfaiate,
que talha e corta o pano conforme o cliente
e põe em prova com a habilidade e a arte dos alfinetes;
como um camponês, que enterra o arado
e rasga a eito a terra a semear o que o tempo lhe permitir,
o que for subsidiado, o que for abençoado.
É o que me dizem. Só não compreendo por que tem de ser
um funcionário com cara de poucos amigos ou
um polícia com mau hálito
a explicarem-me os imbróglios em que me meto, segundo a lei.
Estarei atento ao relatório da medicina legal,
curioso por saber a morte que de direito me cabe,
coisa que ninguém terá obrigação de me explicar,
para não dizer que é inútil insistirem.
Ninguém é obrigado a fazer o impossível.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

NOTAS SOBRE O TEMPO




Sentida é a dor que me entra pelos olhos
e, por mais que magoe, não consegue
transbordar convertida em lágrimas;
antes a revolta que é caudal de outras águas.
A mesma dor que definha
as pétalas vermelhas das papoilas, lacera o vento,
que antes era brisa imaculada.
Passou o tempo das searas ondulantes,
quando o pão era já uma emergência.
Não me faço entender?
Quem matou a fonte e deixou a sede arder nos lábios?
Que foice segou a fome em vez do trigo?
Quem construiu os caminhos arrevesados?
Um dia os nossos filhos hão-de querer sabê-lo,
mesmo se ainda com as mãos nos bolsos.

domingo, 19 de outubro de 2014

IMAGINAÇÃO


Quando repouso a minha cabeça voa,
evoca dores, caminhos e soluções.
Quando acordo – que a cabeça não me doa –
mal vai se tudo for só recordações…

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

LASTRO ANCESTRAL


Quero lá saber se é nascente
ou foz a água em que me afogo:
quero é uma boia onde me assente
e deixe a dúvida para mais logo.

Se para ir ao fundo é bastante
não ter arte ou erudição de peixe,
ficarei onde já não me levante,
o corpo teime ou não me deixe.

Ou não, que o fundo não é morte,
é antes uma espécie de colchão
onde a alma, com alguma sorte,
sobe, vai à tona e dá-me a mão.

Morrer será assim o que consiste
em ir ao fundo e vir depois acima;
um raro carrocel em que subsiste
em vida, carregar a morte em cima.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

PINGO AGUDO


Fundo
fecundo
sem fundamento
fungo
em funcionamento
fogo
sem fumo
tal não é o descaramento?!

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

POR UM MILAGRE II


Desisti por isso da inconsequente empreitada
e assentei em coisas mais terrenas e reais:
onde até a transcendente vida airada
faz tempo que é mendiga ou pouco mais.

Porque é disso que os aduladores da esmola
esperam deste povo, eterno sacristão:
espinha dobrada a quem mata e esfola,
mas ai dele se não aspergido, estirado no caixão.

Não passa o camelo a agulha pelo fundo;
levamos nós um par de asas e passaporte,
banidos de contentamento deste mundo,
alcançando enfim o milagre depois da morte.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

POR UM MILAGRE


Um milagre é que me convinha, um qualquer:
daqueles com luz intermitente e em relevo;
não estes de pacotilha, mediáticos, fait divers,
pirotecnias que não dão mecha para o sebo.

Queria dos que extasiam até o mais pintado,
capaz dum argumento com princípio e fim,
em que eu, incitador, protagonizando o diabo,
erradicasse crápulas e vilões com um só plim.

Mas não tenho esse poder, não sou capaz,
e se o tivesse, podendo bani-los até à morte,
outros viriam lestos, estrelas de cartaz,
para os repor em dobro, tal é a minha sorte.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

ON TRICK PONY


Revi em baixa o meu próprio caso:
depois do doutoramento em estar e o mestrado em ser,
para leigos, depois de saber estar,
concluí: sou um europeu; sou um on trick pony.

O atraso e as insuficiências do meu país, que é Portugal,
levaram-me a esta inusitada demora.

Invejo os franceses.
Na Europa toda a gente inveja toda a gente.
O Presidente da Comissão Europeia inveja-se a si próprio
Como a um cherne.
Mas eu invejo os franceses.
Nada da sua história, dos seus Bonapartes, da sua guilhotina, dos seus
quelque chose sur quelque chose, não.
Invejo a sua inteligência:
Eles criaram o verbo être.
É um verbo extraordinário
que significa, ao mesmo tempo, ser e estar.
Isso, por si só, ter-me-ia poupado um tempo precioso
na minha carreira académica
e o meu sucesso teria ocorrido muito antes desta crise global,
como dizem outros especialistas
de áreas que não domino.

Desta forma, nunca chegarei a tempo de saber.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O ÚLTIMO MILHO


pardais das pedras
ou de quem os prende com perdas
pardais de pronto confronto
com as migalhas
pardais de esperas e de ais
ideais quimeras
são demoras de pardais

a migalha esconde-se na pedra
pródiga na  fenda que a consome
e não medra
é por isso que saltam os pardais
é uma dança de fome
deus não dorme é conforme
amanhã há mais

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

CORRE-CORRE


A vida passa a correr
e nós sempre a bulir,
corremos até morrer;
a vida passa a fugir.

Corremos, ora para ali,
ora para o outro lado:
- ainda agora te vi,
já não lembro ter olhado.

Corre a vida e o tempo
em sentidos opostos:
a vida corre por dentro,
o tempo, p’ra todos os gostos.

Valendo a vida a correr,
sem olhar em redor,
o melhor é não nascer
e dar a vida ao criador…

A vida passa num ai;
o tempo todo, ir e vir:
só o que vai, não vai,
não é correr, é fugir.