sexta-feira, 29 de junho de 2018

PARA OS AMIGOS


Pensei em escrever uns versos
para mandar aos meus amigos,
de uns restos que tinha dispersos
nuns papéis bastante antigos.

Primeiro os amigos, depois os versos.

Conferi versos, contei amigos
compondo a ambos, aqui e ali,
e mesmo correndo alguns perigos,
por muito poucos me decidi.

Primeiro os versos, depois os amigos.

Faltaram-me versos mais frescos,
que ainda não os tivesse dito,
com bigodes, gavinhas, arabescos
e, de gratidão, infinitos.

Aos velhos amigos, versos frescos.

Por fim, não havia versos, senão abraços,
na hora de escrever o endereço
e deixei versos com asas em pedaços,
vitais enleios a imitar o verso…

Deixei os versos, mandei abraços. 

quarta-feira, 27 de junho de 2018

POEMA RECORRENTE SOBRE AS CASAS




As casas são casas: intimidade, acomodação.
Casas e mais casas e eu vivo em todas elas:
como, durmo, dou serventia às janelas
e penso no problema da habitação.

As casas são mundos, são para mim o mundo
onde, mesmo sem dormir, vou sonhando a vida,
os que vão chegando e os que estão de partida
e esse é outro assunto; é o problema de fundo.

As casas ficam, sobreviventes de pedra e cal
sem sonhos e sem preocupações de maior.
Mas comigo é bem diferente e para pior…
E esse é o problema; é aí que está o mal.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

PÁSSAROS DA MINHA RUA




Andei por aí a ver os pássaros:
andorinhas, pardais, alvéolas, melros e estorninhos,
todos velhos amigos.
Aparentemente nada entendem de alterações climáticas
e mantêm os seus hábitos, os seus ritmos diários.
Eu é que acrescento ao momento da vida
essa preocupação, que me entorpece as asas
e me impede de cantar como eles, se é que os pássaros cantam.
Aparte estes humanos cuidados,
não há como um ninho de andorinha, um salto de pardal,
uma corrida de alvéola, a matreirice do melro
ou uma nuvem ondulante de estorninhos.
Alegra-me saber que os pássaros ainda me receiam;
assim o mundo voe ao nosso lado.

sábado, 23 de junho de 2018

GENTE DE LUAS



Aconteceu que a lua (cheia),
em uma noite de vela
surgiu no céu tão feia,
que todos a acharam bela…

Com extasiante rubor,
sobranceira e manhosa:
um verdadeiro amor
de fidelíssima esposa.

Deste modo ninguém reclama
e tampouco se aborrece,
pois quem o feio ama
bonito assim lhe parece.

Muito fica por dizer
dela e do que somos capazes
até voltar a acontecer
tudo é normal, são fases…

quinta-feira, 21 de junho de 2018

FARRAPOS DE SOL


Resiste a luz de um velho solstício
para logro das rosadas cerejeiras…

terça-feira, 19 de junho de 2018

À PALAVRA DADA


A palavra dada
não se olha à caligrafia,

salvo a palavra nada,
que é de outra filosofia.

domingo, 17 de junho de 2018

SETE SAIAS RODADAS


As sete saias rodadas
deixam-te as pernas ao léu,
não saias com as saias rodadas,
que assim quem roda sou eu.

Nem dances de costas voltadas,
que as voltas que a roda leva
revolta as tuas saias rodadas,
e não sei se fique ou me atreva.

Não saias sem paradeiro,
eu vou buscar-te às escadas,
quero ser eu o primeiro
a ver tuas saias rodadas. 

sexta-feira, 15 de junho de 2018

CANTIGA


Não venhas hoje à janela
que não estou para cantigas
e só por estar perto dela
me lembram coisas antigas.

Serenatas que então fazia,
a que achavas tanta graça,
hoje, se cantasse podia
quebrar-te toda a vidraça…

Não surjas ou ainda melhor:
manda mesmo emparedá-la;
talvez a cantiga de amor
se entenda melhor sem fala.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

O CACHORRINHO COM SORTE


O cachorrinho não nada,
nada não o cachorrinho;
em troca, bem sei que ladra,
caso não, adeus cãozinho…

Foi com amor e destreza
(ai, cachorrinho com sorte)
resgatado à natureza
e salvo in extremis da morte.

Não voltará a tentar
o pequeno diabrete,
se não aprender a nadar,
que a história não se repete.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

FALA-BARATO


Se já se viu nalgum lado
sujeito tão adjectivo,
verbo de encher agoirado,
pobre verbo defectivo.

Zombas, bravejas amuado
de modo nada assertivo
e usas o verbo afiado
no presente do implicativo.

E mais não será narrado,
que nada tem de positivo,
pois falares ou estares calado
produz o mesmo sentido.

sábado, 9 de junho de 2018

LUÍS DE CAMÕES


Fez bem Sebastião, o rei, em dar-te ouvidos,
que em algum mister haveria de ter dotes…
Porém, de pouco lhe valeram os teus motes
em Alcácer, as estrofes e o rei, ambos perdidos.

Valeu depois, longos anos e reis daí para cá,
quando te tornaste língua constitucional,
poeta herói e merecedor de feriado nacional.
Nada mau para quem viveu ao deus dará.

Por falar nisso, Lázaro de morte desgraçada,
de fome, de desamor e magra tença, quase nada,
excepto a fama dos teus feitos controversos…

Efémeros te foram os dias de vida airada
e de tristezas bastos, de tão longa caminhada,
descansa agora, que nós cuidamos dos teus versos.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

FERREIRA DE CASTRO


Para conhecer o mundo viajamos,
tocamos pedra a pedra, a calçada
e para nos conhecermos, onde vamos,
qual é o rio, o mar, a estrada?

Assim fizeste com todos os sentidos,
criando gestos e palavras quando a voz
faltava ao próprio mundo, e já perdidos,
contavas em viagem à volta de nós.

Ainda mal chegado, já estavas de saída,
e, por aí fora, um dia, um mês, um ano,
até que a missão fosse concluída.

E que nos deste desse teu labor insano,
senão obra universal de amor à vida,
palmo a palmo, um hino ao valor humano?

****

Viajar não é sair daqui, abalar;
agitar o lenço a quem se deixa
com promessas de depois voltar
consolado e sem razões de queixa.

Vêm aquelas lágrimas da praxe,
com as mãos atiramos beijos,
havendo mesmo quem não ache
ser motivo para festejos.

Não, viajar é não estarmos sós
e, mais do que palmilhar o mundo,
é caminharmos dentro de nós
no sentido humano e mais profundo.

terça-feira, 5 de junho de 2018

JOSÉ FERREIRA MONTE


Às escuras, estendo a mão aberta e afago
o Tempo de Silêncio em repouso, vigilante.
Ainda te oiço gritar o verbo mais amargo
da tua Lucília e austera poesia militante.

Que amargurado poeta foste a vida inteira!
Bradavas os teus versos e esse era o pranto,
a arte e a razão, únicos e à tua maneira,
poeta e homem em cada verso do teu canto.

Depois, é como se alvoroçássemos de novo
a Quinta do Amieiro na passagem de ano,
com Pablo, Lopes Graça, as Heróicas do povo,
neste tempo - como então – ainda insano.

domingo, 3 de junho de 2018

RUY BELO


Contigo não faço mais que a minha obrigação.
Só não sei o que fazer com os teus versos d’iodo
e a tua mortificada vida, cantada na Consolação,
poeta à tona ou náufrago, dito de outro modo.

Arrimas às ondas as rimas das odes alterosas
e os poemas desfazem-se em sal e espuma.
- Densos e sublimes são teus versos e prosas,
inquietas odes, que desfio à noite, uma a uma.

É como ter no mesmo frasco o mal e o remédio
e, voluntariamente, tomá-los qual bebedeira,
de modo que, desperto e de exuberante tédio,
durma enfim, merecidamente, a noite inteira.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

JOSÉ SARAMAGO

Rua da Esperança, sala com os livros e a foto de Isabel da Nóbrega


Eu tinha os livros e papeis cheios de rasuras,
de esperança, como a rua onde moravas,
de onde me expedias as críticas e censuras
e os conselhos que te pedia e tu me davas.

Lanzarote é apenas um lugar longe, a sul;
um vazio entre o coração e o estômago,
não mais que isso e um imenso mar azul
onde flutua e te leva dentro, José Saramago.

A tua obra? Ganhei em cada página impressa
muito da devoção que tenho à literatura,
que vou lendo e relendo sem qualquer pressa.

Somente pelo prazer de ler, à minha altura,
vou dando voz ao ímpeto que não cessa,
e deixo-te estes versos já sem rasura.