quinta-feira, 30 de maio de 2013

SOSSEGO (Zêzere/Constância)



Por aqui o ar é abundante e rarefeito,
respira-se, é o que quero dizer;
por aqui me desabrigo em fresco leito
e me descuido em vida de entreter.

 Apaixono-me pelo que me é dado
natural, simples e sem grandes alaridos:
sossego  e deixo o olhar embalado,
distendido, em todos os sentidos.

 Resido aqui, que mais queria eu?
Um resto de mundo são e sossegado…
Morrendo devagar, olhando o céu,
onde o avesso é apenas outro lado.

terça-feira, 28 de maio de 2013

SÚBITA FLORESTA



Braços e pernas tornaram-se maleáveis e baloiçavam ao sabor da aragem. Apesar disso caminhava ou, se o quisermos dizer de forma mais apropriada, chegavam a todo o sítio, assim fosse o seu desejo.

As pequenas correntes de ar, por entre os troncos, produziam sons, agradáveis melodias e o céu, que antes era o limite, é agora um lençol de cambraia acolhedor.

À medida que o sonho avançava, todo o seu corpo se transformava em novas sensações. Desta vez acertou o passo do subconsciente com o bem-estar. Não precisaria de acordar para fugir àquela novidade tão deliciosa.

O último pensamento registado ia nesse sentido: tomara toda a sua longa vida ter sentido uma pequena amostra daquilo que neste instante sente em todo o seu corpo transformado.

Meditava: Sou uma árvore sem espécie ainda definida. Dentro de mim há seiva bastante para desenvolver um tronco forte, ramos longos e frondosos, folhas como mãos de afago e frutos doces em seu tempo. As minhas raízes vão afundar-se e vou sentir a terra alimentar-me as minhas inúmeras bocas. Darei acolhimento a todos os rebentos que brotarem no meu corpo e no meu chão. Do sol, mais que o calor e a luz, extrairei a vida. Hei-de acolher os pássaros, assistir à sua criação e à partida das novas gerações para longe, tal como eu, continuamente nos seus bicos.

excerto de Súbita Floresta

segunda-feira, 27 de maio de 2013

A MINHA ALDEIA



Na minha aldeia oiço as pessoas quando falam
de si, dos outros e de gente de ouvir contar,
porque falam à porta quando eu passo na rua.

Na minha aldeia não há segredos
que não os saibam toda a gente, embora continuemos
a acreditar que é segredo e a passá-lo
de boca em boca como quem oferece novidades.

A minha aldeia não é como na cidade grande,
onde as pessoas se escondem e mentem por omissão;
se fecham nas suas casas e lá guardam os segredos
que ninguém sabe e é tarde quando se conhecem.

Na minha aldeia chamam choro às lágrimas
e bordam de flores as escadas para a rua
como lágrimas duma alegria triste e envelhecida.

Na minha aldeia – desculpem se insisto – as pessoas
não são melhores que as da cidade:
o que acontece é que são as pessoas da minha aldeia,
o céu é muito maior e tudo cabe lá dentro.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

ONDE A TERRA ?




Onde nos leva o mar, onde nos deixa?
Eu quero o mar com flores, com árvores
e com cheiro a maresia sobre as pétalas.

Quero um mar de flores, barcos de árvores;
ilhas de sossego e sem cidades;
quero as coisas livres, inacabadas, naturais.

E, se assim não forem, se o não quiserem,
que sejam terra, água da ribeira, musgo ou beijos
de sol na eira debutando em cada safra.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

LÁGRIMAS DE SOL



Não se faz de água e sal a minha vontade;
faz-se do sol que todas as manhãs rompe,
aflito, na ânsia de ser dia em terra firme.

E não se faz de mitos, de assombros:
se não dá fruto a semente é porque o sol
se atrasa de tanto romper a treva.

Mas há uma excepção de água e sal
na minha vida: é essa que não é potável
e me invade na tristeza: eu também choro.

terça-feira, 21 de maio de 2013

TANTOS VERSOS, QUANTA POESIA?



Há quem diga que poeta é o que faz versos.
Eu não concordo: uma coisa é o poema
e outra, bem diferente, é a poesia.

Apanhar em voo o beijo de um pássaro,
por exemplo, é poesia, mas não é poema;
que não há versos para tal proeza.

Dizer que é um baile alado pode ser poema
mas quem no par descuida o olhar, dançando,
faz versos sem legenda e tem poesia.



domingo, 19 de maio de 2013

AS COISAS SIMPLES



Lá, na minha aldeia, as coisas simples
são na realidade coisas simples
e não precisam de alguém que as explique.

Sabemos por que teme o melro,
se aventuram as alvéolas e os pardais
e por que se arrastam os caracóis.

Nada há para acrescentar ao rio,
não se contesta o crescimento das árvores,
nem o sabor que têm as maçãs.

Se alguém explicasse a alguém,
doutamente, como tudo isto funciona
as coisas perderiam o encanto para sempre.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

REAL MENTE



Sento-me.
Sinto-me sem sentido.
Procuro adormecer
na sombra que me persegue.

Repouso ali,
deleitado ao sol,
na minha sombra
obesa, submissa, original.

Tenho esperança
que o sono apareça
(é o que penso)
- apanhas sol na cabeça, faz-te mal



terça-feira, 14 de maio de 2013

2ª LIÇÃO DE FILOSOFIA



Ainda as árvores, altivas, de costas para o mundo
e de frente para si, lutando pelo próprio lugar,
sem mais alternativas que sulcarem mais fundo
e, como quem sorri dizendo: morrer… mas devagar…

Assim, de mãos estendidas (que nós não vemos)
oferecem-nos prazenteiras a flor, o fruto, o pão,
o corpo, incompreendidas, para nos aquecermos,
mas é por elas inteiras que mantemos a respiração.

DUAS BOAS NOTÍCIAS








Sem prejuizo das muitas recensões que me vão chegando - e a todas recebo com o coração nas mãos - permitam que vos dê conhecimento destes dois amigos: Cristina Granada e António Salvado:

domingo, 12 de maio de 2013

1ª LIÇÃO DE FILOSOFIA



Alto, lá bem no cimo, preguiçam à luz do sol
os ramos pueris e frágeis mais recentes,
os mais velhos dão-lhes mimo, alimento e escol.
Em breve serão fortes, ágeis e independentes.

O fruto, que primeiro é botão e depois flor,
vai de verde a maduro e logo cresce, cresce…
colhe-se - não caia ao chão - se assim não for,
é como não haver futuro; morre e apodrece…

sexta-feira, 10 de maio de 2013

POEMA DESENHADO



Uma gota em cada ponta
que o orvalho frio pesponta
na folha verde que desponta
e fá-lo vezes sem conta:
o que para a folha é afronta
para o orvalho tanto monta,
por agora não amedronta
porque só o desenho conta.

terça-feira, 7 de maio de 2013

A TEMPO E HORAS



O caminho é feito de tempo e horas:
ganha-se todo tempo de uma vida;
perdem-se horas em esperas e demoras
e, feitas as contas, é a hora da partida.

E nós damos corda ao passatempo
como num relógio os ponteiros,
caminhando a compasso com o tempo:
e viva o velho, vivos e inteiros!

domingo, 5 de maio de 2013

DESCOBRIMENTO



Nada, nada, nada, não temos nada!
Onde a bússola, a carta, o sextante,
a bolina inventada à pressa, nada,
e tudo se parece com Abril distante?!

Nada, nada, nada, não temos nada!
Que rio ou mar nos falta descobrir,
para onde nos empurra esta levada,
se não temos céu nem sítio onde ir?!

Nada, nada, nada, não temos nada!
Excepto a voz, ninguém aqui é mudo.
Então posso dizer-te amigo, camarada,
ergue tua voz e de novo teremos tudo!



quinta-feira, 2 de maio de 2013

EM OUTRO TEMPO



Ainda me lembro bem daquele tempo
de mão dada tu e eu sorrindo à lua,
coisa que empertigava quem na rua
nos via daquele jeito, em tal contentamento.

Era mau tempo, de cortinas entreabertas,
dos mil termos proibidos, dos mil segredos,
mas nós éramos contra tabus e medos
e não sabíamos das coisas erradas ou certas.

Houve um tempo, houve uma ocasião,
em que festas e beijos eram o nosso melhor,
depois, bem, depois foi de mal a pior
e já não nos olhávamos nem dávamos a mão…

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O SOL E O SUL


Longe o sol e o sul, ambos bastardos
Onde a seara loira, que é do pão?
Que não vejo senão veredas de cardos;
ao sul somente o sol da solidão.

A mentira é causa híbrida sem saída
deitada à terra, que se atira à cara,
seca de semente e fruto, inconcebida,
onde o sol e o sul brilhavam na seara.

Terra onde as papoilas detêm sonhos
e o sol ao sul brilhando ainda nos meus olhos.