domingo, 30 de dezembro de 2018

SIMPLES


Está na moda complicar o que é,
o que sempre foi, o que nunca deixou de ser simples,
senão para os que acham demasiado simples
o que é simples, e erudito o que é complicado.
Está na moda porque é no complicar que está o ganho…
A minha dúvida é saber
o que falta saber para que tudo continue
simples, como é simples a água que mata a sede,
o frio que gela até ao osso e o sol
que tudo aclara sorrindo, simplesmente.
Só não digo mais para não complicar,
é tão simples quanto isto.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

VOZES DE BURRO *

*CRÓNICA in POVO DA BEIRA 26/12/2018

Chovem gatos e cães. Matreiros como raposas, os habituais frequentadores do café, esticam as conversas para não terem de se expor aos elementos, enquanto a borrasca se mantiver. Na verdade, nada disto é novidade: raro é o que não arrasta a sua vida de cão, pelo menos até à hora de almoço.
O tema das conversas de hoje é bizarro. Falam dos que se entretêm a mudar-lhes os hábitos linguísticos cultivados há anos, como ratos que invadem a despensa, destroem o que lhes dá na gana, bolachas guardadas religiosamente para certas ocasiões… a precisar duma ratoeira no sítio certo, é o que é. Não, não estamos a falar dos papagaios do acordo ortográfico. Cada macaco no seu galho, esses são de outra inquietação. O que se discute agora é do simples direito de falar e de chamar os bois pelos nomes.
Consta que há por aí uns pardais preocupados com a alusão a animais no discurso corrente, dizem, em defesa dos próprios bichos.
- Ele há cada camelo, disse o mais indignado da roda. O que faltava agora era um travão na língua, uma moderníssima forma de censura, que nos obrigue a falar do modo que esta cáfila aprendeu na manjedoura.
Aliás, nos dias que correm, não há cão ou gato que não produza opinião douta sobre quem, sobre como ou sobre onde e quando.
A organização que deu o mote e trata por tu os animais tem nome sugestivo: chama-se PETA. Fica-lhe bem. Há bem pouco tempo lançou uma campanha para “acabar com expressões que sugiram maus tratos a animais”. O PAN já veio a terreiro dar exemplos: "Pregar dois pregos de uma martelada só" (para substituir "Matar dois coelhos de uma cajadada só") ou "Pegar uma flor pelos espinhos" (como alternativa para "Pegar um touro pelos cornos") são algumas das sugestões do PAN. Cada tiro, cada melro.
A estas erratas à língua comum, quer ainda o PAN que o povo se habitue a dizer "Mais vale dois pássaros a voar do que um na mão". É o que temos.
A tertúlia da manhã não podia estar mais agitada. Não bastava o mau tempo lá fora e ainda mais este incómodo, este trava-línguas de meia-tigela.
Mas a esperança é sempre a última a morrer e todos esperam que vozes de burro não cheguem ao céu.
- Isto nem parece coisa vinda de gente, macacos me mordam!


quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

ANIMAIS, ANIMAIS


O cão e o gato
O coelho danado e o rato
E o galo e o pato
O ganso que é tanso
A ovelha que é velha
O cavalo a galope
O burro xarope
E a cabra mé
Que não sabe quem é
A perua que é tua
A galinha que é minha
E o porco que é sonso
Levou um responso
- Quem disse que o pato
É marreco
Ó seu porco badameco?
Aqui são todos iguais
Não há menos nem mais
Somos todos animais.

domingo, 23 de dezembro de 2018

ALBERTO CAEIRO



Ontem encontrei Alberto Caeiro.
O seu ar inspirava compaixão, pesado;
e, ao mesmo tempo, olhava
com imperceptível amor por todos
os que por ele passavam – um amor à vida.
Os olhos ardiam-lhe, quase em chama.
Lia Cesário Verde e as lágrimas
corriam-lhe como a uma criança.
Arrastava os versos do mesmo modo,
parecendo carregar os últimos cestos
da vindima onde Cesário
tossia do princípio ao fim.
Não reparou em mim e ainda bem:
não iria dizer-me nada que eu não soubesse já;
nem as suas lágrimas
seriam mais verdadeiras do que os meus versos.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O PALITO




Trago uma ideia intermitente
de um lado ao outro da cabeça;
não sei se é impressão, se é gente
ou algo que assim se pareça.

Ah, já me lembro; ora esta!
são os versos mais renitentes,
que ao mastigar o que não presta
ficam nas frinchas dos dentes.

E sendo assim, não é necessário
caneta e termina aqui o conflito:
se o problema é dentário
o que eu preciso é de um palito.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O CAMINHO DAS BÉTULAS DE JOÃO CORVO


No lançamento de O CAMINHO DAS BÉTULAS DE JOÃO CORVO, tive o privilégio que o Poeta, estimado amigo e meu antigo professor de literatura portuguesa, Dr. António Salvado fizesse as honras da apresentação deste primeiro livro heterónimo.

Aqui se dá conta do texto integral desta recensão crítica, com o meu agradecimento sincero.  



Livro surpreendente este, o último de João de Sousa Teixeira, e o curioso espanto saboreia-se no miolo do fruto de sucessivas atmosferas de ares multicores ou de focalizações modais e temporais (no que se refere à apresentação poética) e umas e outras – as atmosferas e as focalizações – interferindo positivamente na expressão formal ou no conteúdo inovador que singularizam O CAMINHO DAS BÉTULAS, palavras que dão título ao livro. E o quase assombro tem início no próprio título enunciado. Ora, ‘bétula’ é uma planta lenhosa, espontânea ou que pode ser também cultivada. E com esta espécie de pano de fundo ou de recurso metafórico teceu João de Sousa Teixeira uma rara rede de substância discursiva ramificada e vocacionada para conciliar as múltiplas sequenciações (e veremos quais) que vivificam os poemas do livro O CAMINHO DAS BÉTULAS.
E o presente arrazoado, porque estamos perante interessante simbiose entre a planta lenhosa de caule firme com a espontaneidade do seu nascimento ou do seu cultivo, simbiose na qual se avivam (numa análise de conotação, de aprofundamento da mensagem) os conceitos de imediatismo (versos surgidos em impulso súbito) e de vigilância (o verso a pouco e pouco construído e quantas vezes alterado). Resumindo: ‘bétula’ adquire a configuração de sinónimo de poema e o poema absorvendo a seiva da ‘planta’ – espontaneidade (inspiração, dádiva dos deuses) e cultivo (vigilância no arrumar das palavras).
O poeta, em livros anteriores, havia-nos habituado a uma dicção formal que tinha a sua exemplificação no verso que associava métrica a ritmo, evitando o chamado versilibrismo ou verso livre alheio a métricas e rimas. Neste aspecto, é justo dizer que, em tal perspectiva, (o da associação da rima à métrica), João de Sousa Teixeira se foi estruturando como genuíno criador de emissões verbais verdadeiramente fascinantes. E quanto aos conteúdos (e a nossa lembrança vai para muitos dos seus livros anteriores), os poemas de João de Sousa Teixeira primam por constituírem um testemunho de óptima capacidade para ‘fazer humor’, para ironizar com assuntos revestidos de… seriedade – atitude que, com insistência, conduziu o poeta até visível crítica de teor social. Em tal coordenada, será justo relevarmos a qualidade atractiva da ‘mensagem’ que peculiariza muitos dos seus poemas, assumidamente ‘engagés’. Mas voltemos a O CAMINHO DAS BÉTULAS. Eis uma outra parcela da surpresa. O verso agora escolhido para a materialização das ideias é o verso livre, espontâneo, sem o rigor de métricas ou a correspondência de rimas. E sabendo nós que esta atitude forma, hoje em dia, a articulação pela palavra escrita da enorme maioria dos poetas (o recurso ao verso livre), atrevo-me a confessar-vos que, ao ler este livro de João de Sousa Teixeira, somos atravessados por uma outra acutilante surpresa: estamos perante um bem dotado discípulo-leitor de Álvaro de Campos ou de Alberto Caeiro, heterónimos de Fernando Pessoa. E no âmbito dos quase assombros que o livro suscita, o nosso poeta ‘inventou’ também um… heterónimo: o de João Corvo. E porque não pardal, coruja, pombo, etc, etc?... Mais uma vez a carga metafórica a envolver a escolha dos ‘bichos’. Ora, o corvo é um pássaro carnívoro, de plumagem negra, tem um bico maior, mais comprido do que a cabeça, possui grande envergadura e parece que até destrói roedores prejudiciais. E este João Corvo traça, sem qualquer dúvida, o acentuado perfil do poeta – boa envergadura linguística, palavra afiada para denunciar injustiças, óptima ‘alimentação’ vocabular e técnica quanto ao discurso poético, ‘plumagem negra’ e … a tendência para o humor. E, em breve nota, João Corvo afirma ter ligação à terra, à natureza, à infância, aos amigos, e sentir o apego ao campo e à simplicidade da vida sem ambições. Contudo, esta afirmação resume a ‘explicação’ que o próprio João Corvo nos dá das suas ressonâncias poéticas. O resto (ele o escreve) terá de ser feito por nós, leitores. Porque, ao fim e ao cabo, este João Corvo irá avolumar com hábil destreza, com repercutidos timbres, com emotiva vivacidade, o veio satírico e subtil de indiscutível e vasta dimensão no poeta João de Sousa Teixeira. E avanço com outra pertinente curiosidade e esta dizendo respeito à própria arquitectura do livro. Se olharmos o índice, verificamos que a ordenação dos poemas segue um esquema alfabético dado pela primeira letra do título do poema. Eis o rigor do itinerário poético seguido ou a seguir, já que ‘tudo’ se percorre entre alfa e ómega, entre um A e um Z – e assim decorre/corre a vida, as circunstâncias que enformam esta. E antes de esmiuçarmos a tal ligação à terra, à natureza, aos lugares, aos tempos, de que nos falou o João Corvo, ouçamos (e atentemos) no interessante poema TANTOS VERSOS, QUANTA POESIA?, que ergue uma autêntica arte poética trespassada de assinalável sinceridade:

Há quem diga que poeta é o que faz versos.
Eu não concordo: uma coisa é o poema
e outra, bem diferente, é a poesia.

Apanhar em voo o beijo de um pássaro,
por exemplo, é poesia, mas não é poema;
que não há versos para tal proeza.

Dizer que é um baile alado pode ser poema
mas quem no par descuida o olhar, dançando,
faz versos sem legenda e tem poesia. 

Em poema de título AS LETRAS elabora o poeta um outro cenário bem vigoroso. Claro que as letras não passam de simples sinais e por si só(s) pouco valem… Associadas, porém, a significados e a sua recôndita potencialidade ‘emergirá em plenitude. Servem, então, para dar origem a ‘palavras’ e estas, claro, sem as letras… não existiriam. “As letras, ai as letras, se pudesse lavrá-las, podá-las, como seriam as palavras?”, Interroga-se o poeta num misto de (in)certeza e de perplexidade. E, uma vez no corpo das palavras, as letras adquirem contornos, abarcamentos, agudezas, fecundidades, fisionomias – enfim: alcançam um universo fulgurante de modulações… Esclareçamos: todos estes fios do tear enfatizam os poemas de João de Sousa Teixeira/João Corvo: E, parafraseando, “a tristeza das palavras contagiadas de letras vadias e que sofrem de epidemias gravas e o texto não são versos, são frases apalavradas?”.
E, no seu percurso de criador, o poeta desvenda, pelo caminho, as bétulas, a flor das bétulas (sempre a metáfora) que é a esperança em cada atalho ou em cada vereda da floração percorridos. E da sua janela, o poeta avista a charca luminosa do tempo longínquo a testemunhar a fonte da vida de um lugar. E a chuva, ah, a chuva, como ela figura ou desfigura as coisas e como ajuda a frutificar os veios da memória. E, depois, a aldeia e a quase sacralidade do lugar, um pequeno cosmos em espaço e ilimitado em tempo, pleno de sortilégio, de segredos, que, na realidade da sua humildade, vence a cidade grande, vívida em mentiras, atribulações, ignorância. E as velhas árvores que, animizadas e perante a efemeridade de tudo, não hesitam, no seu mutismo, em ‘afirmar’ a perenidade da vida. E que beleza, a espraiada pelas buganvílias – “ a causa, diz o poeta, a causa essencial do meu sorriso.” E quantas tristezas durante o ‘passar’ do quotidiano – fomes, mortes…
E os ‘pássaros enjaulados’ – evidente paradigma do ser humano quantas vezes na mesma situação de enclausurado, de atraiçoado na sua dignidade. O poeta, no entanto, chama à sua atenção de perscrutador essa ‘coisa’ que apelidamos de ‘globalização’. E porquê? Para quê? Para nos afirmar: “Não sei por que razão a miséria e as mortes são sempre do mesmo lado.” E, de quando em quando, mas com alguma insistência, a sua ligação à terra e à sua… ‘evaporação’ – e eis a lagarta das couves, o madeiro, o coração das árvores. E o sonho ou o atropelado sonho do poeta. Ouçamos o poema ONDE A TERRA:

Onde nos leva o mar, onde nos deixa?
Eu quero o mar com pássaros, com árvores
e com cheiro a maresia sobre as pétalas.

Quero um mar de flores, barcos de árvores;
ilhas  de sossego e sem cidades;
quero as coisas livres, inacabadas, naturais.

E, se assim não for, se o não quiser,
que seja terra, água da ribeira, musgo ou beijos
de sol na eira debutando em cada safra.

Por fim, se mais não sobrar, não sobreviver,
quero vestir-me de nuvens e de água, porque quero ir
bem vestido quando já não fizer qualquer sentido.

E o prosseguir, o continuar, o permanente desvendar e, pelo caminho das bétulas, - “as certezas, diz o poeta, são as minhas maiores dúvidas”. Evidentemente que de paradoxos se constrói também a vida, o percurso. E a necessidade premente de partir – “ Seja lá para onde for a liberdade”, escreve. O sonho permanece, então. E como as palavras, assim são… as pedras, porque, reconhece o poeta, também elas possuem vida própria e, diz, “permito-lhes uma existência natural, /a mesma que me é dada a mim,/enquanto não precisar de arremessa-las/contra os muros levantados pela indiferença.” E eis a função das pedras: serem arremessadas contra os muros. Que fina e consciente ironia se derrama por estes quatro versos…
E mais apelos, e mais lembranças avivadas pela memória: a primavera ou o cruel inverno e as sementes (fonte de toda a criação) – enfim, na natureza tudo é “âncora dos nossos desvarios” – uma âncora que nos prenderá a quantas e diversas realidades e que abre a via que permita ao poeta exclamar: “Onde estão os frutos sãos, que tenho fome de os ver?” Onde, poeta? Ou, subitamente, a ‘teorização’ para e de aquilo que superlativa o interior de profunda e real vivência chamada solidão. Valerá a pena ouvirem o poema com este nome, tão rico em seus pormenores de expressividade emotiva:

Procurei durante algum tempo uma imagem para a solidão.
Reli cartas de amores não correspondidos,
meninos pedindo esmola, trilhos antigos nunca mais pisados,
frutos apodrecidos e por colher, folhas amarelecidas
e, de repente, dei comigo numa rua miserável,
provavelmente consumida por uma guerra recente,
onde caminhava , de olhar vago,
em busca de um nada que pudesse ser alguma coisa,
um homem, e aos seus ombros um cão, de olhar igual
e de demanda afim. Pensei: esta é a imagem que procuro!
Errei em toda a linha. A solidão existia apenas em mim…
Eles estavam ambos em boa companhia.

E os sons da floresta, repletos de vida no seu esplendor. Mas, e também (e porque não?) o aceno da morte – porém, acerca desta realidade, escreve o poeta: “pensar na morte é só pensar na morte/e a própria morte é não pensar mais nela/porque tudo é tempo que passa sobre a vida.” Sim: o tempo no seu inexorável fluir, abeirando-se da tristeza, de tantas vicissitudes surgidas durante o itinerário, o caminho das bétulas.
Após o A, o alfa e em continuidade progressiva até se atingir o ómega, o Z, e eis-nos na derradeira paragem: um lapidar poema que recebe como ‘personagem’ central (outro assombro) a formiga. E o poema chama-se ZOOLOGIA:

A formiga é um insecto estranho:
para garantir a sua sobrevivência
suporta várias vezes o seu próprio peso
e corre a uma velocidade superior ao record humano
dos cem metros livres. Tudo isto é relativo.
Mas se o homem tivesse estas capacidades
creio que teria já acabado com as formigas,
com os buracos onde elas vivem
e  com a Terra, um número indeterminado de vezes.

Sentidamente “sério” o conteúdo deste pequeno poema a prestar-se a profunda interpretação.

E terminemos. Confluência de discurso poético liricamente atraente e de excurso algo esvaído mas satiricamente contundente, poemário definido por afloramentos diversificados na sua consistência intrínseca e concretizado, de conjunto para conjunto, por originais atributos de indiscutível expressividade – O CAMINHO DAS BÉTULAS merece, sem dúvida, ser lido.


                                                                  António Salvado




terça-feira, 18 de dezembro de 2018

NOITES DE GUERRA


Noite de vela
o menino chora
papão vai-te embora
da sua janela

o menino chora
em desatino
pela noite fora
não dorme o menino

o dia demora
demora o destino
e o menino chora
que é pequenino

papão vai-te embora
deixa o menino
sonhar noite fora
que é palestino

domingo, 16 de dezembro de 2018

DAS ESTÓRIAS


Minha paciente memória desfia
como a um terço de ave-marias
as mil versões do capuchinho

em todas me vejo menino triste
por aquela avó sem despensa
a quem o lobo engole em desespero

só mais tarde graças a subtis pedagogias
a pobre avó consegue a elementar assoalhada

hoje as coisas voltam a estar feias
e não se sabe mesmo se o lobo
a não comeu já pela segunda vez

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

CONTO DE NATAL *

* CRÓNICA IN POVO DA BEIRA 12/12/2018
No princípio era sábado, nunca me hei-de esquecer, levantei-me cedo para tratar do couval que tenho há algum tempo para me entreter nos fins-de-semana. Deus dormia num divã ao meu lado, ressonava. Tinha acabado de criar a sua obra-prima, o universo, embora de início tivesse querido fazer uma trotinete, por ser mais divertido. Acontece que antes se deu à invenção das asas, distribuiu-as pelos anjos e a trotinete pareceu-lhe uma obra menor e sem qualquer préstimo. Fez o universo, como disse, que lhe deu trabalhos dobrados, por não ser o que esperava e por ter de o encher de mundos e de perguntas que ele próprio não sabia responder.
Ia falar da minha intenção de tratar do couval. Fica ali numa encruzilhada onde Deus queria plantar umas macieiras do tipo red delicious, salvo erro para tramar um casal nudista que lá vivia e cujo despudor o incomodava. Ao que me apercebi, a tramoia passava por uma magia metafórica, muito a seu gosto, que acabou por levar a cabo noutro local, por insistência minha. Fiz-lhe ver que ele, como todo-poderoso, sempre podia arranjar um terreno bem melhor, paradisíaco até e, se as coisas tinham chegado àquele ponto, a culpa era sua, que os criou e colocou ali nus e ignorantes em boa terra de cultivo. Além de tudo isto, não fazia sentido ser eu a plantar o couval longe dali pelo trabalhão que isso me iria dar. Por uma vez foi razoável e aceitou a minha ideia.
Naquela manhã de sábado, as couves estavam uma lástima. Muitas delas já comidas até ao caule e outras de folhas esburacadas por centenas de horríveis lagartas listadas e peludas, que enchiam as respectivas panças até rebentar. Fiquei desolado.
Voltei para casa de mãos a abanar e capaz das maiores blasfémias. Chegado ao quarto onde Deus dormia ainda a sono solto, abri as janelas, como quem diz já são horas de endireitar o esqueleto e gritei:
- Que bichos são aqueles que puseste nas minhas couves?!
Deus virou-se, esfregou os olhos, alisou a farta barba grisalha e, fixando-me como um míope à procura de alguma coisa, resmungou:
- Que horas são?
- São horas de te levantares e de me explicares porque encheste o meu couval com aquelas miseráveis lagartas, que outro entretenimento não têm senão comerem as minhas couves.
- Não fiz por mal, são minhas filhas, filhas de Deus… Não queres que vá agora cometer infanticídio…
- Tu nunca fazes nada por mal, és um santinho, respondi-lhe irritado, ironizando com a sua proclamada santidade.
- Não blasfemes, tens de te habituar às adversidades, resmungou ao mesmo tempo que voltou a virar-se para a parede.
Fiquei furioso com aquela displicência divina perante o meu desespero e atirei-lhe:
- Ai é?! Então trata de arranjar onde passar a noite de Natal, que sem couves, aqui em casa, não há consoada para ninguém.  

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

O VELHO COMBOIO


Distante, a velha máquina do comboio a vapor,
dava sinais de impaciência, como quem se apruma;
apitou, lá de longe, fingindo um restaurado vigor
e foi arrastando as carruagens uma a uma.

Primeira… segunda… terceira, eram as classes
em desfile. Fora, os acenos de quem ficava;
dentro, os passageiros exibiam já os passes
e o tempo morria por instantes, não viajava.

Pouca-terra, pouca-terra, pouca-terra…
gemia nos carris, como lamentos, como ais
e é tudo quando esta história encerra,
o velho comboio partiu de vez e não voltou mais.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

DAS ERVAS, COM RESERVAS


Daninha é a erva pobre,
que às demais pede esmola,
réstia de alimento que sobre,
seja o que for a consola.

Cresce à míngua e ao favor
do pouco que se alimenta,
mas logo se ouve em redor
“tal é a gula, que rebenta.”

Onde foi que eu já ouvi isto
sem ser às ervas do prado?
P’rà próxima que ouvir registo,
sei que ouvi em qualquer lado.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

APRESENTAÇÃO DO LIVRO "O CAMINHO DAS BÉTUTAS DE JOÃO CORVO


Com o Poeta António Salvado, que fez a apresentação do livro e Carlos Semedo, Programador e Assessor Cultural - editor 

TANTOS VERSOS, QUANTA POESIA

Há quem diga que poeta é o que faz versos.
Eu não concordo: uma coisa é o poema
e outra, bem diferente, é a poesia.

Apanhar em voo o beijo de um pássaro,
por exemplo, é poesia, mas não é poema;
que não há versos para tal proeza.

Dizer que é um baile alado pode ser poema
mas quem no par descuida o olhar, dançando,
faz versos sem legenda e tem poesia. 


sábado, 1 de dezembro de 2018

A NOTÍCIA



O jornalista morreu a meio
da reportagem. Deixou viúva, a notícia,
e três artigos menores por editar.

Consta que a notícia, despudoradamente,
anda já por aí a dar nas vistas,
para garantir o share da sobrevivência.
Fim de citação.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

POEMA NA HORA


Sem atenças e sem demora,
eis o poema na hora:

Por uma vez sejamos francos,
quantos generais há em Tancos?

E quantos sargentos proscritos,
e quantos percevejos aflitos?

E camelos, há ou não,
excluindo os da arrecadação?

Quem rouba um capitão
é bandido de apreço. E um pão?

Por uma vez sejamos francos,
quantos somos nós em Tancos?

E de uma vez por todas,
porra! Deixem-se de modas!

terça-feira, 27 de novembro de 2018

CHARADA DO CÃO (COM PULGAS)


Dez pulgas tem o cão
e cada pulga também.
Ao todo quantas pulgas são?
Não te enganes, conta bem.
Imagina, já que não vês
e toma muita atenção.
Dizes cem? Conta outra vez:
a resposta é cento e dez;
cem das pulgas e dez do cão…

domingo, 25 de novembro de 2018

À NOITE


Crescente e sorrateira, a Lua
com nuvens em redor dela
não cuidando que na rua
se abria galharda janela.

De par em par, a janela,
julgando que a noite era sua…
mas eu não a via a ela,
só tinha olhos p’rá Lua.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

INSTANTE


Depois de mondar o dia inteiro
e depois de amanhar os animais
e depois ainda de amamentar o filho mais novo,
sempre sorrindo,
sentou-se, por fim, a descansar.

Benditos pés que me suportaram na monda,
disse antes de adormecer,
assim murmurou sem dar por isso.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

ORÇAMENTO DO ESTADO


A cada ministro sua tutela
de serviço comunitário,
e uma gamela
para o que for necessário.

Mais um tacho secundário,
restos da conta-corrente
para o secretário,
que também é gente.

Haverá sempre um lugar
no processo em curso
para dialogar
e engolir um discurso.

À mesa do orçamento,
não haverá consolo
para os de pouco alimento,
os que não comem do bolo.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

CASA


A casa é um navio
(relevem o aspecto)
que nos leva pelo rio
e nos dá cama e tecto.

Um porto de abrigo
será, e com vantagem,
assim o digo
numa ou noutra margem.

Uma âncora? Um sextante?
Casa é tudo o que se tente:
socorro de um instante,
sempre que tenha gente…

sábado, 17 de novembro de 2018

POEMA COM UM OVO A CAVALO

Salvador Dalí



O magnífico ovo matinal,
alvo, redondo, isto é, oval,
com tudo para ter futuro
numa enorme panela
bem temperado, escuro,
em saborosa cabidela.

A tanto não foi a espera
(o tempo já não é como era),
que a fome não se protela
e aquele projecto de galo
em modo de cabidela
não passou de ovo a cavalo.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

OLHOS CRISTALINOS


Teus olhos frágeis de cristal
são como luas e, no fundo,
duas pedrinhas de sal,
que dão tempero ao mundo.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

OS PRIMEIROS DESAFIOS



Quando brincávamos na rua e o Sol se rendia,
submisso, aos nossos pés,
não subtraiamos; apenas somávamos e multiplicávamos,
dividíamos tudo: repartíamos, como então nos era modo de ser.
Jogávamos contra e a favor dos nossos, partilhávamos a bola
como coisa íntima e colectiva. Não havia adversários:
todos eram companheiros no jogo, nas mazelas e em tudo mais,
excepto nos golos, que eram de cada um…
Naquele tempo não subtraíamos, nem tal nos ocorria.
O tempo era de somar, de multiplicar para os mais ansiosos…

Não se pensava nas classes que haveriam de surgir
entre nós com o passar dos anos: os que teriam meios
e os que haveriam de sujeitar-se, vendendo a sua força de trabalho.
Julgávamo-nos como iguais e assim fomos sendo
até nos perdermos de vista, que é jeito particular de crescer
e nos encontrarmos num mundo dividido, que não era então
da nossas contas, porque apenas somávamos e multiplicávamos,
dividíamos tudo,  éramos incapazes de subtrair o que quer que fosse
à alegria de ali estarmos e partilhar o nosso mundo.

As corridas sem freio e os remates longe da baliza
eram só intenções, só isso, nada de ultrapassar quem quer que fosse
e, no entanto, ganhávamos e perdíamos (às vezes empatávamos…)
com o mesmo entusiasmo e com os mesmos abraços
de vencidos e vencedores de um jogo que não era mais que um jogo,
mais que um tempo em que todos nos juntávamos
e nos comprazia estarmos, naquele tempo em que não subtraíamos;
apenas somávamos e multiplicávamos e dividíamos tudo,
tal como o desejo de sermos homens e ter futuro.

domingo, 11 de novembro de 2018

O PRINCÍPIO DO MUNDO


Se o mundo teve um início, como eu espero,
imagino que irrompeu da treva
ao som de uma música, também primordial,
onde predominavam os címbalos, os fagotes
e os tambores, de enormes proporções,
ainda em embrião. O resultado terá sido estrondoso,
por não existir pauta ou director de orquestra.
O mundo terá saído desse caos musical,
que o impediu de nascer perfeito e harmonioso.
Deuses houve, mais tarde, a reclamar para si
a autoria de tamanha obra,
sem saberem uma única nota musical.

Os primeiros acordes, estou certo, eram gritos
da terra nua, rompendo águas e negrumes:
o mundo chorou ao nascer, não seria de outro modo.
Serenou depois. Deixou-se cobrir de nuvens
e o seu corpo tornou-se num imenso colo de água.
Por esta altura surgiram violinos e violoncelos
a imitar ventos e medonhas tempestades.
E de novo se intrometeram os deuses, com os querubins,
soprando flautas, dedilhando harpas, suspensos.
Apesar de tudo, imagino que o mundo
só podia ter nascido ao som de música,
porque ninguém lhe sobrevive
e nada pode existir na sua ausência.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

ALMA DISSIPADA


Encontrei uma alma perdida
num compêndio de ciência.
Que faria a pobre sem vida,
de que lhe servia a experiência?

Talvez, exausta, procurasse
um paraíso extinto, turismo,
ou então não encontrasse
o caminho para o catecismo.

Pouco soube ou mesmo nada,
soltando ais a mais e outros sais,
desfez-se em água e, condensada,
subiu ao céu para nunca mais…

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

MALVAS


Às malvas, é dito vulgar,
como coisa sem valor.
Não é justo assim falar
de tão generosa flor.

Serena flor, benigna rama,
- nunca o diria se não fosse -
e não se livra da fama:
o seu chá faz bem à tosse.

Outrossim para a malícia,
mas aqui com outro fito,
dizem ser uma delícia,
aguar de malvas o dito.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A VERDADE PELAS ÁRVORES


Tempos após sermos floresta, dados à sorte,
voltamos à cinza, o pó a que chamamos morte.
Uma vida presa às raízes, se é que elas prendem,
quase tudo e quase nada de quanto somos
e, por fim, algures, como candeias que se acedem,
um dia seremos apenas o retrato do que fomos.