sábado, 30 de maio de 2015

OS NORTE AMERICANOS III


(Rhapsody para Allen Ginsberg)

Escrevem versos brancos como quem vai à Lua
e vão à Lua cavar poemas ainda mais brancos.
Para o bem e para o mal, conhecem o mundo
até às Caraíbas e jamais o meu vizinho carpinteiro,
de nome Joaquim, que jura ter feito
um guarda-fatos em mogno para um milionário californiano.
De sonetos (incluindo ingleses) nunca ouviram falar;
sabem de sondagens, tácticas militares e de napalm,
de multinacionais e de petróleo.
Não são nunca culpados de coisa alguma:
chatearam-se em Pearl Harbour e vingaram-se em Hiroxima.
O Mayflower não levou todos os bandidos e prostitutas
europeus. Prosperaram depois. E isso vê-se
nas eleições políticas que realizam,
nas guerras que exportam, nas revoluções que inventam
e na leviandade com que dizem my god.

É verdade que há os Óscares, os Nobel
e as medalhas olímpicas, mas a verdadeira história
norte-americana é a de Bufalo Bill.
As fontes não revelam quantos milhões não têm abrigo
e não há notícia de Apaches nem de Cherokees
(eu sei, Allen, de Sacco e Vanzetti também)
mortos em nome do american way of life.
Borrados de medo em Hanoi, não conheceram Jonh Reed, nem Gus Hall,
de quem muito aprenderiam sobre os outros.
Preferiram embebedar-se em Saigão, vomitar
no Mar da China a última ração de combate
e lamber o chão em Woodstock.
Ninguém como os norte-americanos
soube dignificar de forma tão eloquente
o nome da sua moeda fiduciária,
dos seus heróis de banda-desenhada
e das suas histéricas lágrimas em Manhattan.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

OS NORTE AMERICANOS II



(Rhapsody para George Gershwin)

Al Capone era um tipo simpático
(tendo mesmo em conta a cicatriz)
se comparado com McCarthy
e tu, George, deste-lhes música sem o saberes.
Hoje, os americanos dizem que são águas passadas.
Na Europa, dizem o mesmo sobre a inquisição.
É gente que se satisfaz com o que tem
e tem mais do que necessita para se satisfazer.

Deus morreu em 1929 e foi crucificado
em Wall Street. De então para cá,
os norte-americanos mitigam a fé com anjos órfãos
e fazem milagres no cinema.
(Oh George, volta a compor Rhapsody In Blue
e reabilita todos os pretos da América!)

E, já agora, embarguem o Canadá,
eles parecem sorrir de felicidade
quando vos espreitam lá de cima,
como ursos polares em jeito de provocação
e deixem Cuba viver em paz.
Metam-se com gente do vosso tamanho!

Ah, e deixem, duma vez por todas,
de me fazer crer que o jazz é uma prostituta bêbeda
a banhos no Mississipi.

terça-feira, 26 de maio de 2015

OS NORTE AMERICANOS I


(Rhapsody para os norte-americanos)


Servem para tudo os americanos do norte.
No sul, chamam-lhes gringos e ianquis, que significa canalha,
lixo, espécie indesejada ou filhos de Satanás.
No mínimo, significa coisa ruim.
Não são tal. São apenas americanos do norte, como são
os ursos, os búfalos e o Kid Carson, que afinal não lhes sobreviveu.
Servem para tudo os americanos do norte.
No seu próprio lugar inventaram o wild west e Hollywood, mais tarde,
para contaminar o resto do mundo
com o seu modo de viver e o seu Kiss Me Deadly.
E, apesar de tudo, são baleados a milhares de quilómetros,
na testa, no coração e, quantas vezes no rabo,
por armas que fabricaram em sua casa.
Servem para tudo os americanos do norte.
Acham o fast-food uma ideia gastronómica genial,
a obesidade uma consequência do progresso económico
e as epidemias fruto da má vizinhança.

Servem para tudo os americanos do norte.

domingo, 24 de maio de 2015

A UNIDADE DA VIDA


Tem mais ensinamentos uma brisa agreste
que se intromete pela bainha da camisa,
fazendo o peito estremecer,
que mil afagos de quente aconchego dos amigos,
por mais ternos e solidários que sejam.
Mas não existe vida capaz de suportar
apenas a amizade, nem existência
sempre exposta à crueza do vento.
A vida é o resultado da luta diária
entre o que magoa e o que conforta.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

BUGANVÍLIAS


Podia chamar-lhes sinos se não fosse a haste
(não a alma)
que as eleva, se não fosse pagão o meu quintal.
Sobem as paredes, voam como podem.
Toda a fragilidade se transforma em volúpia,
o pátio enche-se de vermelhas mariposas.
Esta manhã são a causa essencial do meu sorriso.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

O CORAÇÃO DAS ÁRVORES



As árvores têm um coração enorme
que lhes sobrevive.
Sulca pequenos lanhos,
bastardos da acção do tempo,
e o sangue volta pouco a pouco
ao seu itinerário de esperança.
As árvores têm um coração enorme
que pulsa dentro de nós.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

FALSO POEMA SOBRE A CHUVA



Pobres nuvens, estas que choram
compulsivamente sobre as ruas,
já de si cobertas de lágrimas.

Pobres nuvens desfeitas
em lágrimas desfeitas, sobre vidas também desfeitas.

Encharcadas até aos ossos
de água e sonhos
que escorrem na valeta, por esta ordem,
e pela ordem inversa
quando o ofício é osso duro de roer.

A verdade é que as nuvens não cessam de chorar
as lágrimas que já não temos
por tudo o que nos molha
e que afinal é chuva sem poesia alguma.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

FLORES


Pintando azul na cor
com denodo, uma roseta,
talvez uma pequena flor
ou asas de borboleta.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

TECER A VIDA


Dou nós, laços aos fios da vida,
para que nenhum fique solto
e a malha saia bem urdida.
Nós cegos? Vou ali e já volto…

Outras linhas há neste novelo
de teia áspera e volteada,
que faço e desfaço em paralelo
sem perder o fio à meada.

Para remates ainda é cedo:
vou tecendo e, em suma,
neste ofício há um segredo,
que é não ter pressa nenhuma.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

JANELA DO TEMPO



A vida corre por fora,
(como ferida que não sara)
corre, corre, como agora,
que nem dormindo para.

O tempo passa lá fora
com urgência desmedida;
cá dento tem mais demora
com janela e à medida.

sábado, 9 de maio de 2015

DURMO COM OS LIVROS



Tenho um fetiche que me afronta:
durmo com livros, como gente.
Leio e releio de ponta a ponta,
quando não, de trás para a frente.

Pode ser lamecha, de cordel,
tesouro, que é o poeta de turno,
como pode ser Saramago, Nobel,
é para o lado que melhor durmo.

Esta noite enrolei-me com Pessoa
e a culpa é minha, inteiramente:
derramei os seus versos à toa
e esmaguei-lhe a obra, literalmente.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

CARLOS PAREDES


Ah, sim, eu vivo dentro dessa guitarra
encantada, ainda como dócil embrião,
que segura as notas como amarras
e se solta nelas, vão elas para onde vão…

Cheira à minha rua, quebrada abaixo,
quebrada acima, com o meu arco de ferro;
a mão dum anjo protector – eu acho –
suprimindo os trilhos que não quero.

Adulto, porém, mais os acordes me aprazem
em tão delicioso e familiar solfejo,
como se o anjo, agora, me desse um beijo

e me dissesse, como os querubins fazem,
batendo as asas em jeito de vassalagem:
- como o prometido, cumpri o teu desejo…  

terça-feira, 5 de maio de 2015

A MORTE


Pode a morte não ser coisa agradável.
Só mentindo ouvi quem a desejasse,
para chamar a atenção dos achaques
que moem de morte a vida.
Mas nunca ouvi quem dela contasse,
como experiência própria,
possíveis dores ou moléstias, desvantagens,
dessa ausência de respiração.
Dá para ver que não aceita alternativa
e só por isso, admito, não será flor que se cheire.
Tenho-a olhado pelas lágrimas dos que ficam. 
Dela falarei se me garantirem
que a poderei usar segunda vez.

domingo, 3 de maio de 2015

A CEIA


O mais atrevido picava furtivamente
a batata cozida que era já cuidada para a próxima refeição.
- Guardado está o bocado…
No panelão de ferro escuro afundavam todas as batatas,
mais ou menos à conta, com casca,
para que o entretém do desbulho 
provocasse a sensação de uma refeição farta e prolongada.
- Ficavam assim mais saborosas, era a versão familiar.
O pai contava sempre a mesma história:
que a batata não era um fruto como a castanha,
mas um tubérculo, uma raiz,
que era recente na nossa dieta habitual
e que tinha sido trazida da américa.
Isso dava a todos a impressão de um manjar exótico,
apesar de saber ao mesmo
que o som da palavra que lhe dava o nome.
Comiam-se com ganas de tapar todos os buracos,
que o sol ou a chuva abriam algures no ventre.
A tudo isto se chamava ceia
(nada parecida com o quadro com o mesmo nome
pendurado, desde que me lembro,
por cima do aparador da sala)
a tudo isto chamávamos ceia
porque não tínhamos outro nome para lhe chamar.
Poderíamos chamar-lhe fome,
se soubéssemos o que era fartura.