terça-feira, 30 de novembro de 2010

NOTICIÁRIO


Chegam mais portugueses
trocam o mundo pelo busílis ou pátria
ou a aventura de nós que ainda navegamos
ou quase
e não discutimos o custo das trocas internacionais

deus é filho dum emigrante português
e ninguém se lembra disto
- de todos os lados chegam portugueses a portugal

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

VIRTUALMENTE

Mais virtual que este prato de sopa? Obrigado a quem mo deu.


Tu dizes cinco
eu digo seis e ganho

tu dizes que calas
e eu ganho sem dizer

eu faço pum
e tu morres

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

AS NÓDOAS


Umas são negras (como no dorso as andorinhas)
outras têm cores tão angelicais,
que sem óculos tridimensionais não adivinhas.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

SUJEITO, EU


Durmo na ponta aguçada duma gota,
afio o sonho enquanto a noite fica pronta,
no extremo em que o sono já não conta
e acordo dentro da gota, sem descobrir a ponta.

Sempre que dos dias, a manhã conta,
começas (não rigorosa) pelo meio e eu por jota,
sem apólice – que as não há de cio – tonta
e sobra tempo para que transborde a gota.

De vós, atento, nem sempre venerador,
salvo o instante dum poema de amor;
os noventa e nove graus que antecedem a fervura.

Confesso-me 43 de pé e poeta sem cura,
cidadão quase sempre avisado da mistura,
não sei se venho a tempo, senhor doutor.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

SALÁRIO


Ah, quanto custa este sal,
este sal-gema,
salgado ofício
de apaladar a vida?
E quanto deste sal
não mata a fome
para só matar o vício?

Vale uma jornada
ou a eternidade?
Vale! Vale o que vale
e o seu contrário.
Vale uma porção de vida
a arbitrariedade
de um salário.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

DOS DEUSES


Ide e levai vossas almas e cantis
logo encontrareis a provação:
um deus de ferro sangrando
em cada cabeceira exigirá
que dissimuleis a sede
Mais adiante encontrá-lo-eis sentado
e a sua mão esquerda descansará sobre o joelho
com a direita vos benzerá de água

Ao terceiro dia achareis como é difícil
prolongar um adeus
alem da curva do caminho

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

DOIS POEMAS PORQUE SIM


DA ÁGUA


Impossível canonizá-la
mas somente canalizá-la

Se assim não fosse os meus lábios secariam
e a concha da minha mão
perderia a inocência

Vem água vem ser o meu primeiro canto
Inundar-me o peito com o teu suor
e as tuas lágrimas.

RIO DE MIM


Partiste sem dizer água vai
guardei nas minhas mãos as margens
e um pouco de imaginação
o caudal era imenso e vigoroso
sei que é ao mar que vais ter
esta é uma das poucas coisas
em que vale mais acreditar
do que ir lá ver.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

U.S. BLUES'NAME


Na doca ilegal
atraca um navio ilegal
com carga ilegal
estivado por homens ilegais
com salários ilegais

Um milhão de mortos anónimos
chegam à pátria
após luta voraz contra
os povos soberanos
a memória angustiada
de um milhão de mães
e o bronze esculpido
num milhão de cruzes de guerra
são testemunho inexorável
de toda a história

Na doca ilegal
atraca um navio ilegal
com carga ilegal
estivado por homens ilegais
com salários ilegais

As carcaças podres do último naufrágio
amontoam-se ainda nos jardins
insuspeitos da casa quase branca
as notícias oficiais violam todos os obstáculos
lacónicas
interrompem sorricínicas o folhetim
dos humanos direitos
para informar que as últimas remessas
do refrigerante xis saíra com doses
excessivas de cocaína

Na doca ilegal
atraca um navio ilegal
com carga ilegal
estivado por homens ilegais
com salários ilegais

Uma lágrima salga o pranto
negro e mole da multidão atónita
soam rajadas como relâmpagos
mortíferos
um corpo mais empapa a valeta
incompreensivelmente

às portas de Washington
um granito anuncia orgulhoso
às gerações vindouras
em letras de urânio:

american way of life

O sol morno das manhãs de primavera
alumia doce a sudoeste a pequena Fresno
o Mississipi
esculpe as margens sem memória

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

FLAGELADOS DO VENTO LESTE *

São cisnes
de bronze e sal
à beira-mãe

deixai-os navegar
chuvas ventos

são filhos d’África
ilhas de ternura

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

POEMA ECOLÓGICO


Cheiro todas as flores que perfumam as manhãs,
como a maresia, o sol, a terra e o fumo dos casais.
Todos me alimentam; todas são minhas irmãs,
quanto mais me quero e transfiguro, quanto mais.

Quanto mais cheiro, ao raiar do sol, o que desponta,
mais me sinto terra, água, elemento vivo e natural.
Se acaso este dom se esgota, será de pouca monta;
pior será se toda esta fragrância tiver destino igual.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

CABALA


Dei contigo
metro e setenta e dois
de cera e manipanso

tal como se em ti
a guerra tivesse deixado
o frio do corpo as cicatrizes
e o cheiro sempre morno
de capela mortuária

dei contigo
quase açafate de rendas agonia e mofo
metro e setenta e dois
tenso
pálido
puerperal
promessa de cera e devoção

dei contigo
medida tão ideal
para não saber se realmente vives
se a morte valeu
tanta imaginação

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O EQULÍBRIO, FINALMENTE


Finalmente recuperámos o equilíbrio
acordamos com facilidade às oito e trinta

e cumpridas as demais formalidades

fica-nos o balanço do reclamo intermitente
a cor mais subtil do lusco-fusco
e o afago decorado há cinco gerações

adormecemos sem custo às vinte e três

ah! o equilíbrio finalmente

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

REGRAS DO JOGO AO AZAR


O Necas era assim
repetia diariamente a proeza
com a mesma e fatal pontaria danada

a competição era permanente
quase ritual:
ele empertigado cumpria o papel fascinante de vencer
eu um terrível e amargo desprazer de me ficar

o orgulho porém jamais me permitiu
lutar pela inversão das coisas
aceitava ferido (de sangue mais desportivo
que orgânico) a superioridade do Necas
e muito mais as regras do jogo que sempre julguei
irremediavelmente eternas

confesso:
vivi anos de esperança em derrotá-lo
mas ele era assim
sem escrúpulos ou mágoa
com o fôlego de quem por sede bebe um copo de água
olhava-me e anunciava quase cínico:
- chapotada em terreno liso
‘trás de pedras ‘trás de nada
limpos!

terça-feira, 2 de novembro de 2010

QUADRA


Anda o mundo às avessas
p’ra maior galantaria
os que hão-de valer não valem
os que valem não têm valia

(popular)

Outros para valer se valem
do valor de quem o cria…
até que as avessas do mundo
lhes dêem a volta um dia