segunda-feira, 31 de agosto de 2015

FLORES DE MIM


Ai flores, cujo rescender
me colhe por mariposa,
dai-me tempo e a ver
quanto o meu voo não ousa.

Coberto de cores e flores
como anjo querubim,
mais as mágoas e dores
que brotam dentro de mim.

Voarei num golpe d’asa
sobre pétalas e poemas,
mesmo sem sair de casa
e em vez de asas ter penas.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

SEGREDO DE POLICHINELO


Se contasse o que sei das ondas e do mar,
de tesouros, marés-cheias e mar sem fundo,
por certo ninguém iria acreditar,
que tais coisas habitam neste mundo.

A espuma das ondas, por exemplo,
que outro assombro há de tão exuberante?
E o outro mar, lá longe, quando o contemplo
já não sei se é ele ou se sou eu quem está distante.

É também essoutro de marinheiros sedentos
de mundos e mulheres virgens, que então havia
ou manigâncias da rosa dos ventos
e gritavam terra à vista debruçados nas vigias.

E dos peixes, quase todos os habitantes,
silenciosos companheiros no mar submersos,
que na água são poemas flutuantes
e não entendem nada de poesia nem de versos.

As águas são de sal e mareantes
e naufrágios, mas isso é outro problema.
O que há de mar é bom, que o digam os navegantes,
o resto são as ondas do poema.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

FIGOS LAMPOS


Plantar figueira é cair,
dá no mesmo a quem tropeça.
Ir aos figos sem os medir
é melhor não cair nessa.

No aspecto, todos amigos
na condição que os convoca:
só que alguns comem os figos
e a outros rebenta a boca…

domingo, 23 de agosto de 2015

SERENIDADE


A serenidade é um urso na primavera,
que depois do sono, do sonho de urso,
tem sangue-frio e espera
que a vida siga o seu curso.

Essa é a serenidade que conheço
se outra existe, com outro nome,
terei de voltar ao começo
e admitir que o urso tem fome.

Acorda, urso! A vida não é eternidade,
e deixa por agora a serenidade!

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

ESPERA


Damo-nos conta que o dia de ontem
é irrepetível (incluindo as horas más).

As horas que se escoam neste instante
são as únicas de carne e osso, verdadeiras.

Nada parece dar certo em cima da hora
e fora de horas nada se consegue.

Hão-de vir horas, outras horas amanhã:
e essas são, por enquanto, ansiedade.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

VOAR


Desde a nidificação
ao voo mais que perfeito,
sei de cor a migração
das aves do meu peito.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

EM LOUVOR DO DIA

Belgais, Escola da Mata, 2008. Foto Luís Silveira

Quem amanhece com o sol aos seus primeiros fios
de luz, não pode o dia inteiro levar com a mesma fé,
cuidando-se bravo marinheiro d’antanho, cuja maré
deixa a ver navios.

O sol quando desponta fere a vista mas dá vitalidade…
Porém, quando declina, abona tal angústia e moleza,
que às vezes, suponho ser capricho da natureza
ou coisas da idade.

Acordo, o esplendor do dia começa nesse instante,
e eu acedo como avezinha frágil e estremunhada
aos primeiros raios de sol, que ainda madrugada
já está de levante.

E, navegando, pensar que o meu caminho é navegar
nas ondas – que daí tirem o sentido todos os perversos –
pois que uma coisa sou eu e outra os meus versos,
sem nunca naufragar.

Dou de barato uma onda viva ou um mar crispado
por um instante  de deslumbre insigne ou simples ansiedade:
quero mais ao sol, à luz provada da vida e à claridade,
que da noite o céu estrelado.

sábado, 15 de agosto de 2015

MEMÓRIA OLECTIVA


Havia um fio não sei de quê,
que fazia não sei onde
um efeito de qualquer coisa.
Passado algum tempo o fio secou, extinguiu-se, não sei,
não lhe era dado apreço de virtude
e as pessoas lamentaram o seu desaparecimento.
Que fazia muita falta, que era um fio como só ele
e não era um fio qualquer. Era um fio condutor,
exímio, claro, em conduzir.
Tanto assim foi, que um dia o fio resolveu voltar.
Mas as pessoas já se tinham esquecido dele
e perguntavam-se na rua e entre vizinhos:
- que faz este fio aqui?
Como ninguém soube responder, o fio foi-se de vez,
desfiado, como acontece aos fios que se indignam,
dizendo muito mal das pessoas,
que não me atrevo a expor aqui.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

ENXURRADA




Às vezes um vendaval, um mar de gente,
como se a seca fosse apenas adereço,
outras uma gota, uma semente
e tarda a enxurrada neste verso…

Mas ela vem, virá noutra maré
e então sim, será decisivo:
importa que o vento, como ele é,
sopre e varra de vez o que é nocivo.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

OLAIAS ou Árvore-de-Judas


Quase nem me apercebia
desta beleza pendente:
cachos de flores, nem os via,
em orgia florescente…

Se Judas, em seu lugar,
baixasse do tronco robusto,
lá se ia o meu olhar
e não ganharia p’ró susto…

São lustres de ornamento,
se não as tocais, olhai-as,
que à vista dão alimento
e luz ao espírito, as olaias.

domingo, 9 de agosto de 2015

PRESO DE AMOR


Um corpo ou a própria sombra, o teu,
morno – que o descubra assim – por devoção
e me dissolva nele como se fosse eu,
tiquetaqueando em ambos o mesmo coração.

Que amor há, não sendo a emoção
de seres tu e, além de tudo o mais, se eu,
por ser em mim que explode tal paixão,
me divido, ao mesmo tempo, em juiz e réu.

Em causa própria, mal-grado sentimento,
castigo e sofro o amor que me condena,
recuso e me contradigo, dando assentimento

e, contrariado, acabo por aceitar a pena
de amor perpétuo em completo isolamento,
evadido de mim, fingindo a liberdade plena. .

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

DESCONSOLO



Não lembro nada do que ia dizer
por culpa do malvado computador.
Às vezes liga, outras, não me deixa dizer
onde me dói ou deixou de doer.

Que seja assim, quero lá saber do que lhe dói…
nem o que me apoquenta eu sei;
se ele é meu mestre, meu herói
ou eu que escrevo além, fora da lei.

A par disto queria dizer alguma coisa:
não me sinto bem; coisa pouca
mas, apesar de tudo, mais coisa, menos loisa,
tudo não passa de amargos de boca.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A LAGARTA DAS COUVES



Há anos que não vejo uma lagarta das couves,
daquelas cuja metamorfose engendra
uma borboleta branca, às vezes ponteada
de olhos cegos, efémera criatura.
Tecem o couval à medida da sua fome insana
e esburacam a paciência de qualquer um.
Depois, os anos fazem-nos voar
como aquelas  borboletas de inocência alva
e acabamos nós por ficar com saudades das lagartas.
Vá lá explicar-se esta metamorfose.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

SONETO PERVERSO


Vai ser bonito quando chegares
e vires as palavras do serão:
deitaram-se às rimas, aos pares,
como se agita a fé em procissão.

Por fim, era já mais o desnorte,
batendo a via sacra em arraial,
de pavio aceso, valha a sorte,
velavam um poema artesanal…

Afinado o coro metricamente
- ‘inda obra tosca, inacabada –
que de ti era oração independente.

Hás-de ver, poesia, a abençoada
lira, a um só tempo ateia e crente,
faz chorar as pedras da calçada…

sábado, 1 de agosto de 2015

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA


O fim começa aqui – eis o teu passatempo eleito,
Mário-Henrique, o teu gin-tonic e tua condição.
Afinal, eficazes. Digo, o tonic é tão perfeito
como eu escrever estes versos e me chamar João.

Fazendo de conta que a musa que me inspira
é uma daquelas plúmbeas de rótulo amarelo,
seguro os teus versos – quero lá saber da lira
e puxo o cobertor, que o quarto está um gelo…

Na tarimba refilas, esperneias, fazes cenas
e pedes um lugar na almofada, à cabeceira.
E que consegues, contemplação? Não. Apenas
enfado e a ressaca de uma enorme bebedeira.