segunda-feira, 30 de abril de 2018

RADÍCULA



Semeamos porque não servimos de semente;
quando enterrados não há nada mais a esperar
e o fruto não nasce com orações.

sábado, 28 de abril de 2018

MILAGROSAMENTE



Eu faço milagres
é verdade
eu faço milagres

quem melhor do que eu
o poderia afirmar com segurança?
eu faço milagres
além disso não sou caso único na família
o meu avô fazia milagres

a Senhora de Mércoles
a Senhora Sant’Ana e a Senhora do Almortão
fazem milagres
dizem até que o ti Alexandre de Segura
também fazia autênticos milagres

eu porém faço milagres
eu e todos os santos da minha terra.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

AMOR SUSPICAZ


Não sei se é amor, se é feitiço,
se há em frasco mais pequeno;
não sei se é raiva, o que é isso:
se é insolação ou veneno.

Apenas sei que dói por dentro,
em lágrimas que sei de cor,
atraiçoa como o aloendro,
que beija e mata por amor.

E que sei eu do amor, se de mim
nada aprendi? Disso me lamento:
uma seara de cardos, coisa assim,
magoada vida de alegre sofrimento.

terça-feira, 24 de abril de 2018

VICISSITUDES DE UM HETERÓNIMO

    Joan Miró, gravura

Haveriam de passar anos, até que um dia,
hoje mesmo, desisti de procurar Bernardo Soares.
Explicaram-me há pouco as razões deste mistério:
ambos nascemos do nada, do cérebro povoado
de alguém que, em desassossego, nos deu carta de alforria
e nos abandonou. Nada mais que isso.
Não se trata de uma reclamação e muito menos
de um lamento de órfão em letra de forma.
Afinal tem muitas vantagens esta relação fria com o tempo:
as plantas crescem e os frutos vão amadurecendo
à vez, como podem e como tem de acontecer,
sem se importarem que todos os ontens tenham existido.
O mais relevante é que a natureza não dê conta
que andamos a abrir regos onde não passa  água nenhuma,
seque e hoje nunca mais chegue a ser dia.


domingo, 22 de abril de 2018

JARRO


Jarro, que escolha tão severa
tem a flor airosa e original…
Alva, altiva e não austera
como cálice de carne sensual.

Só pode ser por crueldade:
para vaso basta onde é criado.
Jarro não, antes majestade
das flores, príncipe encantado.

E se a noiva aceita o seu alvor
e o leva junto ao peito ao altar,
então, a nobreza desta flor
mais se alteia, mais nos pode dar…


sexta-feira, 20 de abril de 2018

MARÉ CHEIA




Grande novidade era o mar,
o que outrora foi esperança
da aventura de navegar
foi o meu sonho de criança.

Ondas - tinha-as alterosas –
diziam. Outras de apanhar à mão;
umas como os espinhos das rosas,
outras como bolas de sabão.

Primeiro foram trilhos e vento,
mistérios, desassossego, ficções,
mas para mim, deslumbramento
pago em mergulhos e escaldões.

Não é o mesmo este mar antigo
igual para toda a gente:
um exultante, que vinha ter comigo,
e outro, rancoroso, seguindo em frente.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

DO DISCURSO


Não demovo
a cor ao cravo
e de novo demovo
a casca ao ovo

enquanto me comovo
com o cravo
como o ovo
e aprovo o cravo
uma ova a cor do ovo

pelo povo não demovo
a cor ao cravo

segunda-feira, 16 de abril de 2018

ADEUSES


Ah, que sorte: hoje há deuses lá em cima
sedentos de versos, dormentes de sono!
Vou fazer-lhes pontaria com rima
e acertar-lhes em cheio no buraco do ozono.

Podia ser em lugar alabastrino, como a testa,
mas é pecado, além da enviesada geografia:
não os quero mortos nem o fim da festa,
quero apenas treinar a pontaria.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

LUA LÁCTEA



A lua além, branca como a neve,
cheia de dúvidas, como eu,
aguardando um céu de estrelas,
segue, em quartos, o caminho.

Que meteorologia nos ensina
o itinerário do sol, um raio de sorte,
que deus acorda as brasas
deste lume brando de cor cinzenta?


quarta-feira, 11 de abril de 2018

SONHADOR



O sonho estava embrulhado noutro sonho;
era um sonho emaranhado em si.
Sonhar amarras dignas, ideais suponho:
dentro do primeiro sonho nada vi.

Assim, em sonho, em sono enredado,
chamem-lhe utopia ou indomável crença,
já não conta o que se vive mas o sonhado,
esperar que o sono ao sonho vença.

Sonambulando de olhos bem abertos,
caminhando à luz do Sete-Estrelo
é como ser vagabundo em céus desertos
e isso não é sonho; é pesadelo.


segunda-feira, 9 de abril de 2018

LÁGRIMA




A lágrima é uma porção de mágoa
que aflora
rosto afora
e o choro corre dentro dessa água.

sábado, 7 de abril de 2018

BUGANVÍLIAS


O meu quintal do futuro
terá buganvílias rosadas
debruçadas sobre o muro
como tranças onduladas

de fazer despertar a gente
que passa tão apressada
sem vagar e quase ausente,
passando sem dar por nada.

Só as buganvílias floridas
terão o dom de clamar,
frágeis, porém decididas,
dando brilho a quem passar.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

RESISTIR


Para Lula da Silva


Inditoso povo às mãos do criminoso,
que de pátria pouco ou nada conheceu.
Dias houve de brandura e sol airoso,
os demais, de crepuscular breu.

Ditadores, bastos foram todos eles;
tiranos, dementes, profetas e azougados,
gente que do cordeiro vestiu as peles
para assim matar e ocultar os seus pecados.

Baixar os braços? Não é o caso, não!
É levantar ambos, que ninguém é conformado
e dizer basta de mentira contra a razão,
erguer os braços, sim, punho cerrado.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

VIVER


No caminho a percorrer
há dois tempos de corrida
um é o tempo de viver
e o outro tara perdida.

Em ambos que são o mesmo
há um menino de calção
e um velho que vai a esmo
com o pequeno p’la mão.

Um sem o outro não corre,
onde só há bilhete de ida:
ao termo de viver, morre
e a isto se chama vida.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

TEMPO SEM POEMAS


Este tempo molha-me a poesia toda!
Se estendo ao sol um pequeno verso
que seja, logo vem trovoada,
o poema não seca, vira-se do avesso.

Um trabalhão! Versos a enxugar
por todo o lado, outros caídos no chão.
Assim vou ter de adiar
e de poesia, só lá mais pró verão…