quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

ANO COLORIDO


Vêm Janeiro e Fevereiro
e ainda não abri o tinteiro.

Chega o primaveril Março
com matizes de pigarço,

assim como o não menos Abril,
mas em tons de rosa e anil.

Quando irrompe Maio
já há cores em que não caio.

De repente, vem Junho:
de que cor é este punho?

Lentamente, lá vem Julho.
Este tem a minha cor. Pouco barulho!

Mais devagar, Agosto
e o vermelho ardente do sol-posto.

Sorrateiro, entra Setembro.
Não tem cor ou não me lembro?

O mesmo direi de Outubro,
de que sei a cor mas não descubro.

Novembro e Dezembro vêm a seguir
cor de burro a fugir.

(Este ano, novo mês em suplemento,
para equilíbrio do orçamento.)

domingo, 26 de dezembro de 2010

LISBOA II



Silveira, Lisboa, Alcântara
Técnica mista sobre tela 40 x 120 cm



Em cada esquina, os andarilhos da cidade,
quase furtivos, emergem deslumbrados
em busca pelas ruas eternais e sem idade,
do tempo que lhes rareia e doutros fados.

A luz é o ocre sujo e consumido da caliça,
na parede que cerca o bairro por inteiro.
O sol foi deserdado, não entra aqui na liça;
cedeu lugar à lua, que a sombra está primeiro.

O céu é como o chão, a mesma irmandade
na cor e na alma feita de pedaços,
como em magotes, os andarilhos da cidade,

sulcam vielas, velhos becos, passo a passo,
a um só golpe o céu, a terra e a vontade
genuína de ter vida e cor no mesmo espaço.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

QUERIDO BICHANO


Meu caro e sabido bichano,
por que te acoitas, dissimulado,
em pose de conquistador
dos fundos do oceano
sem teres sido o predador
nem o búzio por ti predado?

Talvez possas pressentir
não a presa mas o som
que dos búzios dizem manar
e assim ficas a ouvir
os afagos vindos do mar
nesse acolhedor romrom.

Ou então, coisa nenhuma;
uma pausa de reflexão;
uma espera vã ou furtiva.
Porque não fazer nada, em suma,
meu bichano, não é vida,
e gato não é excepção.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

SE O DIABO TEM UMA CRUZ


Se o diabo tem uma cruz
e a carrega por alguém
não é como a de Jesus,
se é ele que ainda a tem.

Imagino líquen e trama;
musgo brotando do chão,
que não pese um só grama
mas puxe pela imaginação.

Será por estes de agora,
beatos de tipo novo,
que as penas deixam de fora
e doam a cruz ao povo.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

MULHERES DE PICASSO


Oiro sobre azul; menino da sua mãe,
desnudo de roupagens e de destino.
- Quem me dera seu colo também…

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

MULHERES DE PICASSO


O Éden, para sê-lo, seria assim: nu,
primaveril, de quentes tonalidades;
imenso carrossel de gentis deidades.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

MULHERES DE PICASSO


Rectos segmentos que vêm e vão,
rabiscos de carvão com a forma
geométrica de um traço de união.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

MULHERES DE PICASSO


Tão sozinha, tão dolente e acoitada,
a mulher de meia idade, quase feia,
só o recato faz dela mulher e meia.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

VOLTOU A CHUVA

Silveira, Mancha Urbana IV, óleo sobre tela, 20x20 cm

Voltou a chuva para nova temporada,
para uns estorvo, para outros água benta.
Pior é se descamba em trovoada
ou miudinha, que me saiu boa encomenda…

Voltou a chuva, intensa e fria sem piedade:
entranha-se nos ossos e, benéfica, nos solos.
E eu, inábil, lido com esta adversidade:
fugindo aos aguaceiros, não evito a molha-tolos.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

SEXTO SENTIDO


O primeiro dos capitais sentidos,
segundo gente que deste caldo engorda,
é o que terceiros
revelam
ser quarto
de orgias
nos quintos
dos infernos.
- Agora gaba-te, sexto
!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

AS ÁRVORES E OS PÁSSAROS


Digo que aprecio as árvores,
nunca me atreveria a cobiçá-las. Lançar raízes
e deixar o corpo florir para depois apodrecer
ostensivamente o coração aos olhos de quem passa.
Não, árvore não, nunca chegaria ao céu.
Antes pássaro: admiro os melros e os pardais.
Parece que sempre estão onde querem estar.
Percorrem os trilhos do céu, nidificam nas gotas de orvalho
e cantam como se o mundo fosse inteiramente seu.
Ah, tenho um casal de águias meu amigo em Santana.
Corrijo: há um casal de águias em Santana
de que gosto muito, embora disso nunca se tenha apercebido.
São os meus olhos, que à boleia planam sobre as suas asas,
secam as lágrimas nas correntes ascendentes de ar quente
e poisam nas árvores que, serviçais,
esperam a morte, teimosamente de pé.