segunda-feira, 30 de maio de 2011

CARLOS PAREDES


Ah, sim, eu vivo dentro dessa guitarra
encantada, ainda como dócil embrião,
que segura as notas como amarras
e se solta nelas, vão elas para onde vão…


Cheira à minha rua, quebrada abaixo,
quebrada acima, com o meu arco de ferro;
a mão dum anjo protector – eu acho –
suprimindo os trilhos que não quero.


Adulto, porém, mais os acordes me aprazem
em tão delicioso e familiar solfejo,
como se o anjo, agora, me desse um beijo


e me dissesse, como os querubins fazem,
batendo as asas em jeito de vassalagem:
- como o prometido, cumpri o teu desejo…

sexta-feira, 27 de maio de 2011

O PIOR QUE PODE ACONTECER

O pior que pode acontecer é a ponte não aguentar o peso;
a pedra não suportar a outra pedra; a água congelar
de medo e frio; o sol morrer de tédio…
O pior que pode acontecer é o melhor parecer pior ou, pior,
os teus olhos já não distinguirem o fogo no fumo.
O pior que pode acontecer é esta anáfora crescer como os frutos
e rebentar como as bolas de sabão.
Pode ser melhor o pior de antes ou ser mau o melhor que temos.
Como podes saber o pior se outro ainda pior estiver para vir?
Onde é que tens estado? Que bem te faz às feridas o mal que sentes?
Muito pior será se as tuas mãos já não se conhecerem
e se alvoroçarem por socorro, uma após a outra,
sem água, sem barco, nem sitio algum para o naufrágio.
Tens a certeza?
Isso é que é pior!

quarta-feira, 25 de maio de 2011

DEUS QUEIRA

Deus escolheu para si o céu,
deixando a sua obra prima
à mercê das trovoadas,
espargida do alto e encharcada de fé.


Deus escolheu para si as nuvens,
para nelas se representar
nos tectos das catedrais
e as duas obras se contemplarem.


Deus escolheu para os seus
os jardins e canapés celestes,
ciente de que não chove nunca
do negrume para cima.


Deus escolheu para si
o lado cerúleo do universo
e apurou em nós a alma
para a expiação parda do pecado.


Deus concede-nos lugar
no condomínio, caso as lágrimas
nos façam sucumbir
e ter direito a uma morte santa.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

POEMA MAIS SERÔDIO DO QUE SERIA DE ESPERAR

Fui herói encomendado
para defender a nação:
fizeram de mim soldado
deram-me água e sabão,
uma pistola carregada
para matar o inimigo,
que diziam estar escondido
e ter a mão pesada
para quem fosse cobarde
e lhe virasse as costas:
(- ala, que se faz tarde,
não arme um par de botas!)
Para safar a cabeça
foi preciso usar o corpo
e se já me livrei dessa
foi por pouco, muito pouco.
O bunker deu-me um jeitão:
oculto na catacumba
não fiz lá falta nenhuma
e passei por bom cristão.
E agora, sair daqui,
desta metáfora apertada
da guerra onde me meti?
O melhor é não fazer nada.
Foi aí, inesperadamente,
que apareceu o peclise
com ares de inteligente
p’ra me salvar da crise.
Disse então a eminência,
que, milimetricamente,
é preciso ter paciência
para que nada aconteça
e não cair de borco:
onde couber a cabeça,
cabe o resto do corpo.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

À FLOR DOS ANOS

Não sei se assim pode ser,
em vez de anos, que horror,
ano a ano fazer uma flor:
este ano, um malmequer,
no ano que vem, uma rosa,
a seguir, um amor perfeito
e mais em verso ou mais em prosa,
no seguinte leva-se a eito
uma gerbéria elegante,
um goivo ainda em botão
ou papoila ondulante
numa seara de verão.
Dálias também hão-de vir
de porte solene e fantástico.
Só no fim irão florir
porque inevitáveis serão
ramos de flores… de plástico.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

ROSA TREPADEIRA


Olha a rosa trepadeira
tão sensual e melosa,
pisca-me o olho, brejeira,
estás a abrir c’ma rosa…


Novelinhos de algodão
são, rosa, os teus botões
que, com tal palpitação
me sugerem corações.


Trepa rosa trepadeira,
vai subindo para o céu,
que o meu olhar é cegueira
quando se cruza no teu.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

À BEIRA DA ESTRADA...


Tão frondosa a trepadeira
como imprevista aguarela,
assim, sem eira nem beira,
que nome terá a donzela?


Gracioso cheiro oriental,
(delicado bálsamo de café)
terás um nome normal:
o meu é João e o teu qual é?


Não sei qual foi o primeiro
dos encantos do caminho:
se me prendeu o teu cheiro;
se fiquei preso p’lo beicinho…

sexta-feira, 13 de maio de 2011

ALOENDRO


Se me enganas recorrendo
a poses de virgem ardente,
chamar-te-ei aloendro,
que mata traiçoeiramente.


Os panos de popelina
das pétalas que te esboçam,
são para mim a morfina
que os meus lábios adoçam.


Ainda assim fico tentado
tal é a embriaguez,
não vá de tal ficar aguado
pois só se morre uma vez…

quarta-feira, 11 de maio de 2011

LIGUSTRO


Revelo que apanhei um susto
com a tua graça tão estranha:
com esse nome, ligust(r)o,
julguei que estava em Espanha…


Mas não, era cá, quase sem
sair de casa. Que surpresa!
Eu, que te olhei com desdém,
para agora te trazer presa.


Por supuesto que me gustas,
muito mais que a outras tais
- não tomes estas por injustas –
gosto de uma muito mais.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

"ARROZ"


Passei ao teu terraço,
só para ver o jardim,
vi-te as flores no regaço
que nascem dentro de mim.


Parecem lábios ao longe,
ao perto sugerem beijos
digo assim porque me fogem
as rimas dos meus desejos.


Quis pôr uma na lapela
para ficarmos a sós
mas tu deste-me com ela,
como quem dá o arroz…

sexta-feira, 6 de maio de 2011

ESTEVA


Sem ser vista nem achada
a esteva esteve, a esteva está,
sem nunca ser procurada,
esta flor ao deus dará.


Cheiram a perfume etéreo
suas pétalas, como a lua,
mais adensam o mistério
desta flor do fim da rua.


O estigma que a natureza
lhe aplica é prova disto:
não lhe bastava a pobreza,
ainda as chagas de Cristo.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

BORDÕES DE S. JOSÉ



Avé-Marias com graça,
de ar mole e prazenteiro,
é adorno que não passa
por bordão de carpinteiro.


Porém, tão belas e doces,
as flores de tal fadário,
não seriam se não fosses
tu mesmo, S. José operário.


Apesar de tudo, são flores
- dominus vobiscum -
alvas e belas! Os amores
não são deste catechismus…

domingo, 1 de maio de 2011

ROSMANINHO



Rosmaninho, companheiro
de tristezas e alegrias,
dá-me a mão, mas primeiro
vem comigo à romaria.


Teu cheiro é a matriz,
como se fosse uma senha:
quando te levo ao nariz,
lembra-me a campina d’Idanha.


És, no fundo, o caminho
que me conduz mais além,
na esperança de ver, rosmaninho,
em Idanha a minha mãe.