terça-feira, 29 de novembro de 2011

POR UM MILAGRE


Um milagre é que me convinha, um qualquer:
daqueles com luz intermitente e em relevo;
não estes de pacotilha, mediáticos, fait divers,
pirotecnias que não dão mecha para o sebo.


Queria dos que extasiam até o mais pintado,
capaz dum argumento com princípio e fim,
em que eu, incitador, protagonizando o diabo,
erradicasse crápulas e vilões com um só plim.


Mas não tenho esse poder, não sou capaz,
e se o tivesse, podendo bani-los até à morte,
outros viriam lestos, estrelas de cartaz,
para os repor em dobro, tal é a minha sorte.

domingo, 27 de novembro de 2011

QUANTO DE MIM AUSENTE


Quase me sento, virado do avesso
e assomo a sombra de ali estar.
Quase, disse, que é avio sem preço,
ou sem posses para pagar.


Acentuo-me grave como àquilo
que julgo ser o meu assento:
reclinado sobre o banco, ao meu estilo,
e respiro para recobrar alento.


Assombração de mim, descuidado?
Não: as sombras são de mim feição,
que em tese dão um tom acinzentado,
mas provam o quanto de mim são.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

BORRÃO SOBRE A4


Quis dar cor a algumas ideias
que, mimosas, nas suas sete quintas,
não tardaram em ficar feias
ou fui eu que carreguei nas tintas.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A BANCA ABANCA


A banca
abanca
toma assento
à mesa do orçamento


dá razão
ao livro de razão
deve e haver
é seu dever


então denota
que de nota
não é demais
e pede mais


a banca rota
abarrota
no economato
ou morre ou mata


e diplomata
mata

domingo, 20 de novembro de 2011

UM PÁSSARO EM FLOR


Um pássaro em flor
perfuma o canto;
mitiga e, seja como for,
trauteia o pranto.


A beleza ameniza a dor
e enxuga o pranto;
mitiga e, seja como for,
pelo menos não dói tanto.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

AMATO LUSITANO


Haverias de sair para ser gente, gesta
imaculada deste povo crespo e arredio,
que de seu só sabe o quanto presta
se de si mesmo ouvir de outros elogio.


Deram o teu nome à minha escola,
fizeram dele mais coisas de aprender,
Amato. Mas sabe a pouco, cheira a esmola,
pelo muito que há ainda por fazer.


Em estátua tens a verdade nua e crua:
foi-te a vida de saberes e de degredo
e agora, quieto, que apontas para a lua,
há quem insista e te olhe para o dedo.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

MEMÓRIA DE CASTELO BRANCO


Não foi tão diluviana a enxurrada
de há cinquenta anos, nem o tufão
foi coisa de mazela amargurada;
mas aguaceiro fraco também não…


É certo que esbulhou as avenidas
e arrebatou o coreto do passeio
mas, passado o susto fez despedidas,
e logo se dissipou, tal como veio.


Morreu gente, sim, e feridos houve
dos maus ventos em reboliço;
mas também houve povo que não soube
ou não se ateve, ou deu por isso.


Mal sabíamos que, tempo passado,
ressarcidos, haveríamos de ganhar
a polis pós-moderna, qual tornado,
trazendo entulho de volta ao seu lugar.


Se outro vento igual nos castigar,
( longe vá o agouro!) se bem não há-de,
mal já não fará, que nada há para levar,
nem restos de memória da cidade…

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

MEMÓRIA DA CASA ANTIGA


Uma fenda elegante e sinuosa percorreu o tecto,
desceu depois pelo estuque da parede antiga
e, sem memória ou traço de arquitecto,
em pouco tempo dividiu ao meio toda uma vida.


Na minha geração foi apenas um rabisco;
um ar de graça acima de qualquer suspeita.
Mas com os anos acabou por se tornar um risco
a que a família não podia estar sujeita.


Deixámos a casa. A vida tem destas partidas,
e em nova casa há mais conforto, é mais selecto.
Agora é a saudade das coisas mais antigas
que, caprichosa, faz lembrar a fenda no tecto.

sábado, 12 de novembro de 2011

UM VELHO SOM


Um som já velho, reciclado,
vira o disco,
não sei onde ouvi isto.


Fede. Velho e relho, insisto,
percorre o tubo enviesado
este som antepassado.


Que som este, estafado,
de notas falsas, um misto
de purgatório e Jesus Cristo.


Como a sensação do já visto:
na música o mesmo fado
e na letra o caldo entornado.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

P(r)O(bl)EMA GREGO

Jean Gouders, Cartoons




Aos novíssimos herdeiros das calendas
ainda remanescem lendas de pasmar:
os cidadãos viraram estátuas, encomendas
com promessa de Afrodite as transformar.


Este grego é um sábio e sabe-a toda,
querendo apanhar moscas com vinagre:
o povo vota e então, de forma cómoda,
faz batota e brada que é milagre.


De modo que me inteirei, enfim,
da obra prima do soberano cipriota,
cuja esposa fôra estátua de marfim
feita gente por milagre ou por batota.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

PARABÉNS, JOÃO!


O meu grilo
podia ser um bicho da seda,
um peixe pigmeu, um canário
ou outro qualquer bibelô vivo.
Podia até ser grila, mas não.
Não por ter três rabos
ou pela falta do colar amarelo,
nada disso:
é que a grila não canta e isso é essencial.


Ter um grilo não é assim uma estória simples:
todas as primaveras
o gozo que dá singular procura:
o apuro dos tímpanos,
a leveza do andar até ao buraco,
a inesquecível palhinha e depois aquela posição
cruel, às vezes por uma grila insignificante
ou a surpresa dum insecto desconhecido.


Se é cantador tem o destino traçado
(eis o fatalismo adoptado)
a gaiola dos antecessores,
a alface do dia em vez da serralha selvagem
e um lugar ao sol na varanda da frente,
pelo menos até Agosto.


Depois, as peripécias de sempre:
o incómodo da vizinhança,
a iminência de morte súbita pelos porquês
e as atormentações do João
ou as minhas tentativas de homicídio
sempre confessadas.


Admitimos o ciclo:
anualmente assumimos a derrota
conscientemente.

domingo, 6 de novembro de 2011

ANDARILHO


De mim vou tão longe quanto posso. Parto
sempre quando já não me acho graça:
mas não fujo; apenas dou a volta à praça
e depois regresso quando do resto fico farto.


Há dias em que me deixo, outros vou também,
(nem sempre consciente, que às vezes é errar,
julgar que é nosso o próprio caminhar.)
E encontro o meu equilíbrio neste vaivém.


Os caminhos faço-os de presente e de futuro,
se por acaso me encontro ali por perto…
Revejo-me solene, mas é quase certo
que não é a mim; que não sou eu quem procuro.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

TESTE PROJECTIVO


Que mais pode um homem desejar:
uma boca, um par de olhos cristalinos,
a brisa fresca vinda do mar,
ou n’aldeia despertar ao som dos sinos.


Que outro mal maior virá depois:
amordaçado e, de tanto ver, cegar,
não ter nas ondas senão maus lençóis,
ao rebate que os sinos hão-de dobrar.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

GENTE ILESA


A vida nem sempre é como se vê;
às vezes contradiz-se na aparência:
há dias em que a calma cansa, não sei porquê,
outros em que se chora a sua ausência.


Pior ainda é com a temperatura:
se o tempo aquece e o sol é um tição,
pede-se o frio. Mas se este vem e dura,
volta o apelo: quem me dera o verão!


É mau feitio querer sempre o que é diferente!
Mas como não ter em nós estes defeitos,
se somos o resultado de quem, exactamente,
nos compôs, em síntese, ao sermos feitos?