segunda-feira, 31 de agosto de 2009

PREIA-MAR



Há um mar ali, prostrado,
de que só conheço a areia,
a bazófia das ondas e da espuma,
peixes com nomes vulgares
e barcos ao longe, partindo e chegando.

Não saberei nunca
por que deu à costa a cria moribunda de baleia,
por que cava o mar e por que mata,
por que se enfeita de virgens nos portos habitados
e por que sangra cloreto de sódio
como as vagas das minhas lágrimas continentais.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

GALINHAS D'ÁGUA



Quando no rio brincávamos,
em tempos que já lá vão,
até nas pedras que atirávamos
palpitava um coração.

Se são beijos ou pedradas,
perguntas com certa mágoa:
os beijos são águas passadas
e as pedras, galinhas d’água.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

FASES DA VOZ

Paulo Santiago - Aguarela (pormenor), gentilmente cedida por:
http://palavrasentretonssons.blogspot.com/


Fugazes
Velozes
As fases
Das vozes

Algozes
Atrozes
As vozes
E as nozes

Mordazes
E eficazes
Ilesas
As vozes

Doses
Contumazes
As frases
Das vozes

E vós
De avós
Sois capazes
Sem voz?

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A CRISE



O ministro piaça(ba),
pouco hábil, quiçá,
jurou por deus, por alá,
que a crise de cá
se foi, terminou já.

E eu que tinha cá
uma ânsia deste maná,
pedi logo champanhe, fuagrá,
caviar, vá lá.
É impossível, não dá:
ouvi blá-blá, blá-blá
e bacalhau à gomes de sá,
mas já não há, já não há.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

ESTE MUNDO E O NOSSO


A certa altura, o buliçoso rapaz
esquadrinha o bolso dos calções,
e, entre o pechisbeque e dois piões,
descobre que o pretérito perfeito,
é o tempo que menos falta faz.

O que importa agora é o sujeito,
e ao que teve pode acrescentar
perto ou longe, os advérbios de lugar,
os caminhos por andar, a fantasia,
e tudo o que de mais tiver proveito.

É o princípio dos verbos a conjugar
muito além da física quântica
e, sem preocupações de semântica,
opor à regra a lei da utopia:
- Ninguém morre sem eu mandar!

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

SACARINOS



Havia no meu tempo de menino, uns rebuçados confeccionados com água e açúcar – a que chamávamos de “meio tostão” – e que serviam para facilitar os trocos no comércio, dar de gorjeta pelos pequenos recados, atirar ás crianças por altura de baptizados e outras festas; e por aí…
Os ditos rebuçados tinham um pormenor a seu favor: sendo de pouca valia, eram doces demais para deitar fora.
Assim é a série de poemas que proponho agora.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009




VOLTO JÁ

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

IRMÃO DO TRÓPICO

Olhares - Foto de Raphael o Pensativo

Brasil tem amazonas no coração
e a ditadura a agitar o calendário
ao meu irmão
há um século sem salário

Brasil tem samba no coração
sessenta e quatro ponto final
no meu irmão
que nunca foi general

Brasil tem carnaval no coração
e um polícia omnipotente ou um cristo sinaleiro
que o meu irmão
carrega às costas por ser povo brasileiro

Brasil tem sol no coração
e um guindaste que ergue de um fosso
o meu irmão
com uma corda enrolada ao pescoço

Brasil tem sertões no coração
cravados no peito em riste
e o meu irmão
irmão de Luís Carlos não desiste

("Ultrapassar os Limites" - 1980)

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

DE CHILE VESTIDO

Olhares - Foto de Raphael o Pensativo

Pablo cantava o gelo e o fogo
da pampa
do bosque
da vida
a razão enfeitiçada de um povo
que rasga a terra
como quem faz um poema

Era como se a esperança florisse
nos muros de Santiago
em letras cor de madrugada
apunhalada
pelas costas
com um sabre de prata

Era como se a noite tivesse
corvos no peito e dina
mite nas veias
morfina
e havia grãos de areia na ternura
sorrisos
a mais no vocabulário
da paciência

Mas o metal corrói
é uma larva que se entranha
e deixa lastro de sangue
em três álamos por inventar
e o metal corrói
é uma doninha que suga
exangue
e Setembro é que nos dói

("Ultrapassar os Limites" - 1980)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

DO DISCURSO

Olhares - Foto de Raphael o Pensativo

Não demovo
a cor ao cravo
e de novo demovo
a casca ao ovo

enquanto me comovo
com o cravo
como o ovo
e aprovo o cravo
uma ova a cor do ovo

pelo povo não demovo
a cor ao cravo

("Alegria Incompleta" Vega - 1988)

terça-feira, 4 de agosto de 2009

TRÊS POR TRÊS

Olhares - Foto de J.Filipe Bacalas


OITAVA MARAVILHA

Eis como a oitava maravilha se enuncia:
a quinta emenda, a sexta esquadra
e o heróico sétimo de cavalaria.

COMUNIDADE EUROPEIA

As voltas que nós demos por este passaporte.
Agora, é só seguir a boa estrela que, se deus existe,
há também uma CEE para além da morte.

AS NÓDOAS

Umas são negras (como no dorso as andorinhas)
outras têm cores tão angelicais,
que sem óculos tridimensionais, não advinhas.

(Rebuçados Caramelos e Sonetos - 2008)

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

EM QUE JOGASTE AS PERAS COM O TEU AMO

Olhares - Foto de Raphael o Pensativo

Mil vezes jogaste as peras;
mil vezes comeste as verdes.

Andaste então embriagado de raiva
e, como se necessário fosse,
quase vomitaste o intestino.

Espoliado, tinhas vergonha de ti próprio.
Assim, estrebuchando,
cumpriste a promessa do trabalho.

Mil vezes foste arrastado no cimento.

Mil vezes jogaste as peras;
mil vezes comeste as verdes.

(Terra Alheia - 1973)