quarta-feira, 29 de junho de 2016

OLÍMPICA EPOPEIA


Alto é o alcantil,
a pedra em terra,
que o mar lhe foi ardil
e temor de finisterra.

Forte, o rochedo,
o destino adverso,
que converteu o medo
em universo.

Longe vai o mar,
as velas ao vento;
cansado de as olhar,
longe vai o tempo.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

EU ALGURES


Às vezes não sei se sou um ponto
algures no profundo universo,
sequer o beco em que me encontro,
ou sou todos os lugares, no inverso.

Há momentos em que sim, digamos, minto,
fingindo o bom tempo e a bonança,
mas isso são coisas que digo e não sinto;
são práticas que apendi, de boa vizinhança.

In verso sou, declamado ou em surdina,
como nuvem exposta, propositadamente nua,
ensaiando passes de columbina
sob o véu que me intromete entre a terra e a lua.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

EXPECTATIVA


A terra corrompida como o pó de defunto,
como o pó daquilo que em pó se tornará o seu futuro.
Resta um caule de erva daninha erguido na orla
mas não será isso que me fará deixar de ser
deus e demónio de mim mesmo
(e alguns anjos para tarefas menores,
por influência ocidental e de ouvir falar);
nem a terra terá fé em vez de frutos.

terça-feira, 21 de junho de 2016

O DOM DA PALAVRA


O som da palavra, bom,
é a sua pele, o seu tom:
o bom da palavra é esse;
o dom não lhe pertence.

Meio-tom é quando abranda,
amolece e não desanda,
é som que não aquece,
dom que nem aquece nem arrefece

e o dom não flui, não sai,
nem com palavra d’honra lá vai.

domingo, 19 de junho de 2016

GALINHAS D`ÁGUA



Quando no rio brincávamos,
em tempos que já lá vão,
até nas pedras que atirávamos
palpitava um coração.

Se eram beijos ou pedradas,
perguntas com certa mágoa:
os beijos são águas passadas
e as pedras, galinhas d’água.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

CESTEIRO


cesteiro
que faz um cesto
faz
a sesta
(de segunda a sexta)

sexta-feira, 10 de junho de 2016

AS LETRAS


As letras, ai as letras, se pudesse lavrá-las,
podá-las, como seriam as palavras?
Soletram a pauta feitas pulgas, feitas putas
rodopiam nas esquinas mais sombrias
e depois saltam, as vadias,
no dorso das palavras indecisas.
Ai as letras, que me fogem das palavras
à procura de ditongos já proscritos e teimam,
a altas horas, que a exigência é das sílabas
tónicas, das rimas escorraçadas.
Quero uma palavra esdruxula, se plantada de raiz;
aguda se podada com preceito. As restantes
são palavras sem princípios, contagiadas de letras
vadias e sofrem de epidemias graves
e o texto não são versos, são frases apalavradas.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A CASA



Não mora quem morou antes,
antes mora quem não morou:
mora a memória que dantes
não se lembrava e mudou.

Mudou para outro lugar
longe ou ao pé da porta.
Mas se a memória mudar,
quem mudou não se recorda.

Recorda que em tempo viveu
longe ou ao pé da porta,
onde o tempo ao tempo deu
e a lembrança não importa.

Agora a casa está morta.


sábado, 4 de junho de 2016

CUIDAR DO SOL


Atava o sol, se ele deixasse,
na ponta, com um cordel,
e ficava de olho nele
do lado que mais brilhasse.
Deixava-o brincar no céu
levando-o sempre p’la mão,
como se fosse um balão
de ar quente e só meu.

Abraçava o sol, se pudesse,
cuidava dele noite e dia
e eternamente fazia
com que nunca arrefecesse.
Beijava-lhe as mãos e o rosto,
com desvelo redobrado
para ficar sempre acordado
e nunca mais haver sol-posto.

Se o sol quisesse, subisse,
se não quisesse, ficasse,
mas que desse sempre a face
do local de onde o visse.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

CEREJAS


Cerejas, para que possam reconhecê-las,
são pequenas luas doces e vermelhas,
que tanto podem tingir a boca ao comê-las
como pender aos pares nas orelhas.

Cerejas são a carne de um desejo,
dum abraço a que a memória nos convoca.
São, além do mais, um lábio, um beijo
e a sede que a sua ausência nos provoca. 

Ah, a sede, pois, hei-de falar dela um dia,
quando suplicantes cachos irromperem
neste pomar de empréstimo, estufa fria,
onde os lábios secam e as cerejas morrem.

Então gritarei se ainda valer a pena, vede:
estas sempre foram o vosso desdém da sede.