terça-feira, 30 de janeiro de 2018

PEDRA-DE-TOQUE


As pedras têm rondado os meus versos
com a frequência dos meteoritos.
Creio que o fazem por imitação das palavras.
Como elas precisam de um intérprete
ou correm o risco de calarem para sempre
a sua razão de existirem.
Serpenteiam os poemas, inflamam os versos
e abrem-se, por fim, para quem quiser espreitar
a sua alma de infinita delicadeza,
de proverbial eficácia.
Têm vida própria e jamais as convenço
sobre funções ou itinerários.
Permito-lhes uma existência natural,
a mesma que me é dada a mim,
enquanto não precisar de arremessá-las
contra os muros levantados pela indiferença.  

domingo, 28 de janeiro de 2018

EQUAÇÃO


Em prudente equilíbrio, que vai-não-vai,
vai indo, vai indo…
Em permanente equilíbrio
entre todas as coisas e coisa alguma;
entre o que nunca chega e o que já basta.
Em periclitante equilíbrio:
morto pelo início, vivendo para chegar ao fim.
E no fim são as contas, as contas à vida
em vésperas de concluir a equação.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

ROTINA



Ainda há pouco o sol nascia
e com ele o dia.

De repente, a contragosto,
é já sol-posto.

Se disser o que me apetece
nem aquece

nem arrefece.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

FRUTO DO DIÁLOGO



Falando de ventos, de venturas e de vendavais:
ocorre sempre a natureza e, por regra,
tudo o que molesta ou o que é de mais
e o pequeno fruto rosado que nos alegra.

É natural que o vento se enfureça, transforme
a suave brisa em fúria, que aos empurrões dispersa
bons e maus propósitos, isso é conforme,
e o fruto é mastigado ao longo da conversa.

sábado, 20 de janeiro de 2018

PARADOXO



Vejo todos os clarões da minha cegueira
e o silêncio teima em ensurdecer-me:
as certezas são as minhas maiores dúvidas.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

RECICLAGEM


1.

Especialistas de mão cheia
garantem em estudos profundos,
que a chama duma candeia
dá para iluminar dois mundos.

Vendem lixo, eis a batota,
a países terceiros
e com esses trinta dinheiros
garantem que cumprem as cotas.

2.
Este poema é em pvc,
de plástico, como se vê
e vai para a reciclagem.
Antes, quero fazer
uma pequena homenagem,
uma humilde mercê
e evidente bonomia,
aos que nos jornais, na tv,
com vestes de serrobeco,
por convicção ou capricho
se fazem à fotografia:
este poema polui e faz eco,
vou já pô-lo no lixo. 

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

INTRANSITIVO


Em parte vou, em parte fico;
não sei se estou, se me ausentei:
não me identifico
e se acaso sou, não sei.

À parte, vou sem lei,
se ir for divagar.
Para onde caminhar, não sei
se ainda há lugar.

O que havia a dar, já dei
para me complementar
e só no fim vejo que me virei
sem querer de pernas para o ar.

Se em tudo, enfim, tiver sido eu,
olha para o que me havia de dar!
Ainda bem que ninguém leu,
que sorte a minha este azar.

domingo, 14 de janeiro de 2018

A BRINCAR, A BRINCAR


Em criança brinquei com tudo o que havia para brincar,
brinquei ser homem, que não havia meio de lá chegar;

hoje, quero brincar a ser criança e, para minha afronta,
já não consigo, mesmo brincando o faz de conta.  

Descrente e resignado terei de aceitar este destino:
não há verdade em dizer que de velho se torna a menino.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

UM DEUS ACHADO



Tenho finalmente um deus em quem posso confiar.
Não é desses que tropeçam connosco
ao dobrar de uma esquina
e tampouco dos que nascem embutidos na pele
e deles nos dão garantia eterna.
Casos há em que nos asseguram a genuinidade
registada na ourela em auxílio da fé.
Tenho um deus definitivamente bom,
que não me descobre pecados de maior
e até se parece comigo.
É assertivo, conversamos sobre todos os assuntos
e dividimos razões e caminhos a seguir.
Tem apenas um senão:
é invisível e tão irreal como todos os outros.    

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

TEMPO DE VIDA


Pensar na morte é só pensar na morte.
Uma pedra gasta na calçada,
uma folha derrubada pelo vento,
um ninho abandonado
e até o sol cinzento e frio, dão a perecer
que o tempo, por ali, se aborreceu de velho,
mas pensar na morte é só pensar na morte
e a própria morte é não pensar mais nela,
porque tudo é tempo que passa sobre a vida.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O DIA-A-DIA


Esta alternância de equinócios e solstícios
é ciência de grande enfado:
ora o dia, mal começado, já declina para a morte;
ora se torna em modorra, extenso,
com presunções de ser também o dia que há-de vir.
Decidi por isso comprazer-me
- somente no que ao dia diz respeito –
apenas com a parte da manhã. É bastante
e condiz com a minha origem rural e simples,
habituado desde criança ao sol por relógio
e à brisa matinal para tempero do corpo.
O que sobrar pode o dia utilizar como muito bem entender,
mas não conte comigo.
Tome o dia, o dia inteiro por sua conta,
até um dia…

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O LIMITE DA PACIÊNCIA


Há com certeza um limite para a paciência
que eu não conheço e, assim sendo, o elástico
invisível da tolerância pode abrir fendas
e estalar-me nas mãos ou, pior ainda, na cara.
Ninguém é suficientemente louco para
suster dessa forma a respiração.
Dito de outra forma, ninguém, por muito parvo que seja,
deixa que o elástico estique, estique, estique,
ao ponto de não se poder falar já de tolerância
mas de uma qualquer algolagnia mal curada…
Deuses e construtores de automóveis
compreenderam desde o início
a necessidade de um limite para a paciência:
os mandamentos e as buzinas, se não resolvem completamente,
vão dando para as encomendas.

Os asininos de fala fácil e fato assertoado
- albarda-se o dito à vontade do dono –
cumprem um papel relevante:
obrigam os restantes a testarem os limites
(se os mandamentos estão bem encrustados nos sentidos;
se as buzinas são suficientemente timbradas).
O problema é que se multiplicam com maior frequência
e a sua proliferação pode tornar-se intolerável.
Apesar das galinhas serem o que são
e não suas excelentíssimas mães,
a vontade de que aqueles fossem ovíparos
e se pudessem comer no ovo,
não deixaria de ser um princípio de alívio,
fosse mexido ou estrelado.
Estou a perder a paciência. Repito: não conheço o limite,
mas garanto que não vai sobrar elástico.