domingo, 29 de abril de 2012

LUCIDEZ

Não foi fácil acertar com o verbo inicial deste dístico. Já quanto ao sentido do poema não tive qualquer dúvida, com a excepção de ter algumas reservas no que diz respeito à sua originalidade, pelo eco que a memória insiste em devolver-me. Mas, como dizia, quando transpus a ideia para o papel, o verbo doer pareceu-me vulgar e logo me surgiu um outro: magoar, mais melódico e, naquele impulso, talvez mais literário. Tinha por isso o que deveria ter para ser o escolhido. Contudo, apetecia-me usar uma palavra mais rude, capaz de esmagar a incurável lucidez de que me queixo. Retornei então ao verbo primeiro pensado e já não me importei com a sua simplicidade, contando com a rudeza e força desta pequena palavra de todos os dias. Doeu.




Dói-me a cada dia um pouco mais
esta minha incurável lucidez

sábado, 28 de abril de 2012

TRISTEZA








Julguei triste a minha sopa de hoje
e era eu quem estava frio.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

26 DE ABRIL


Tinha tudo para ser resplandecente,
uma cor garrida que fosse, esta manhã
de vinte e seis de Abril.
Não pelas promessas recentes ou porque, de repente,
outro oásis nos fosse anunciado, mas somente
porque assim deveria ser. E não é.
Deveria sê-lo pelo que bastou de outros dias e noites
mal vividos; mal dormidas
e pelo que nunca será bastante de combates
pelo pão e pelo sol que todos sabemos pronunciar
e só alguns podem saborear.
Tinha tudo para ser de festa ainda
este dia 26 de abril cinzento e triste
como foram todas as noites para aqui chegar.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

CARROSSEL


Comprámos cetins e brocados,
partimos tostões em mil bocados;
e à mesa demos carne com azeite
p’ra fazer as vezes de banquete.


Gritámos rua àqueles do fascismo,
daquele, civil, e do outro catecismo,
que a vida nos tinham feito em fel,
e voltámos de novo ao carrossel:


bancos de rodapé, cadeiras soltas,
puseram-nos a cabeça às voltas
p’ra tornamos à amarga sopa,
agora fornecida pela europa.


É tempo de mudar de romaria,
de santo e de social democracia,
meter os tarambecos na bagagem
e…” nova corrida, nova viagem”!

domingo, 22 de abril de 2012

A CHEIA

Não tinham margens os rios
que te falei:
eram itinerários devassados,
escassos juncos de enfeite
e um mar imenso a que chamavam foz.

Os rios não tinham margens, já o disse,
- ou que assim possa definir-se –
era tudo água de improviso o estuário
em que quase morri de sede.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

PRAÇA VELHA


Praça de praças não de preces,

praça de gente doutras praças que aqui passa
e leva pressa.



A velha praça não lembra os paços
quando o dia acende brasas, sinais de graça
por entre as cortinas veladas das vidraças.


Velha como Camões, há-de ser tempo e praça
de abrigo, telha a telha,
cantiga duma ideia ou abraço dum poema antigo,


mas sempre, sempre Praça Velha.

terça-feira, 17 de abril de 2012

O TEMPO DE UM CIGARRO (poema quase incorrecto)



À janela debruçado sobre o dia
olho além o tudo e o quase nada…
O cigarro rubro faz-me companhia,
como lume em terra já queimada.


Uma ligeira brisa percorre a pausa
em tudo avessa aos bons costumes,
sem qualquer outro efeito ou causa,
relaxa; não te induzo a que fumes.

domingo, 15 de abril de 2012

NEOLIBERAIS


Primeiro, os vilões, nutrem ódios e desdéns,
bombardeiam as searas. Depois, em jeito de ajuda humanitária,
com os mesmos aviões, despejam pães.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

POSSIBILIDADE DE AGUACEIROS


Tudo fora previsto
ao mínimo pormenor,
de modo que à representação nada faltasse:
um fio de azeite,
a lágrima refulgente dum estorninho,
a franja duma alma sem proveito
e um arco iris enorme, cercando a cidade
sobrevivente.

terça-feira, 10 de abril de 2012

PASSEIOS À VOLTA DO CORAÇÃO

O tempo, a mesma porção de tempo, não é igual para a pedra e para a flor. Tampouco para os homens, pesem as circunstâncias. A pedra resiste para além do tempo dos homens, mas são as flores que ficam presas ao seu coração. A ânsia era grande em conferir tudo o que ainda habitava a sua memória. Mal chegou à cidade, não tardou que o João não calcasse a relva, esfregasse as mãos nos troncos das árvores e olhasse em todas as direcções, como se quisesse identificar algo que, revisto por alto, lhe pudesse passar despercebido. Até os desmedidos prédios da zona onde tinha morado outrora lhe causaram demorada atenção. Na verdade, fascinavam-no os prédios altos, que a sul não tinham a mesma visibilidade nem a mesma constância. Por fim, delongou um pouco mais o olhar na varanda do terceiro frente do bairro da Granja e, enfatizando com os ombros um gesto de aconchego e desculpa, balbuciou: - Nem todas as coisas grandes são grandes coisas… Tudo tinha agora uma dimensão distinta daquela que durante uma década não pode desenvolver-se, fechada que ficou num escasso recanto da sua memória de infância. As ruas, outra memória, durante a ausência, adquiriram nomes de itinerários de pueris desmandos; de pequenos segredos: - Era por esta rua que me escapava para o bairro de cima… Tinha um muro enorme que me fazia sentir herói quando o transpunha e afinal é pouco mais que um lancil. As capitosas árvores dos arredores ainda lá estão de sentinela para o que der e vier! Isso era, sempre foi, motivo de maior tranquilidade e segurança; o mesmo que respirar e estar vivo. O olhar do João saltava dum lugar para o outro como um pardal que procura abrigo e alimento. Apesar de tudo estava tranquilo, apenas um pouco curioso, como quem quer descobrir num segundo a diferença entre o que vê e o mundo que a sua memória lhe foi ditando ao longo do tempo ausente. Vieram-me à memória a mim, não a ele, os cheiros da Rua de Santa Maria, que cheguei a pensar ter mais refeições que as habituais na minha casa. Porventura, o alho e a cebola refogados ficavam impregnados nas paredes e um só almoço dava aroma ao meu olfato para uma semana inteira… No passeio, ia contando como se sentiu no dia em que se empoleirou na árvore da Devesa e caiu desamparado, sem dois dentes e um choro convulsivo com maior dose de medo pela reacção dos pais, que a dor pela perda dos dentes de leite lhe provocava; quando, no Passo encontrou uma moeda no fundo dum lago e a retirou à custa de perseverança e uma manga da camisola nova encharcada de água e lismos verdes; das quedas de bicicleta que valeram sustos e preocupações. Tinha-lhe previamente explicado que a cidade se modificara entretanto. Contei-lhe dos prédios de muitos andares, já muito além do relógio da Torre, dos chafarizes e da paisagem urbana asseada e branca como o nosso terraço da Granja. Ateve-se na Devesa. - Lembro-me da tasca do avião. Agora o avião está cá fora, é enorme e tem uma pista de aterragem que borbulha água. A nascente das sanguessugas, gracejou. - Vamos em frente, ainda nos falta ver muita coisa, respondi-lhe. Há muitos anos, com o meu pai, perdi uma dúzia de “costis” – como lhes chamávamos – na encosta norte da serra da Cardosa. Queríamos passarinhos para não sei quê e foi ali que decidimos caça-los, já que eu era um reconhecido especialista. Nem pássaros, nem armadilhas. Não fomos capazes de descobrir um só que fosse, tal era a camuflagem... Se chorámos? Não! Rimo-nos até mais não podermos e ficamos abraçados durante tanto tempo que ainda hoje recordo esse abraço. - Vamos pelas Isabaldeiras até à Cardosa, disse eu. Não é fácil, mas já não é tão difícil como outrora. Vista dali a cidade cresceu duma forma extraordinária. Está irreconhecível! - O Vale do Romeiro é aquele pontinho verde além, argumentei para afirmar o meu conhecimento do terreno. O alcatrão separava-nos agora das correrias monteses dos tempos da fisga e dos arranhões… - O ar é bom. Cheira a árvores e a terra, dizia o João em jeito de solidariedade, tendo em conta o cansaço que ambos sentíamos nas pernas. - É, respondi-lhe sem folego para mais… Não foi só a cidade que se alterou; nós também já não somos as mesmas pessoas e quem passa por nós também já não lida da mesma forma. Parece que hoje as pessoas têm mais pressa do que as de antigamente. O problema é que fogem e não têm para onde fugir… Provavelmente cegaram de tanto ver e agora estão à procura daquilo que nunca viram mas sonham um dia encontrar numa rua ou beco, num telhado, inesperadamente ao alcance do seu ângulo de visão, debaixo duma pedra mal calcetada. O mundo é assim: dá tanta reviravolta que nos faz perder o norte porque não alcançamos o que antes tínhamos aos pés. Em contrapartida, faz-nos sonhar. Se a nossa matriz é a que pisamos, podemos sempre orientar-nos pelos cheiros, pela memória dos que para aqui nos trouxeram e pela bússola do próprio coração, tenham lá o tamanho, as cores e o desenho que tiverem.
(Inserto na Agenda Cultural de Castelo Branco Abril a Junho 2012)

domingo, 8 de abril de 2012

ALERTA


Alarves, estes, de fresco empoleirados,

cultivadores do” lá iremos mas devagar”,
estão para valer e querem-nos amarrados
ao cais de não partir, senão de naufragar.


Cuidado: são arcanjos de asas pretas
e o seu licor não passa de subtil veneno!
Embusteiam com engodos e petas
quando não com um sorriso ou um aceno.


Planeiam vingar Abril, estes madraços,

mas esquecem que gente determinada,
à custa das próprias mãos e braços
alcança, em plena noite, a madrugada.


quinta-feira, 5 de abril de 2012

DUAS OU TRÊS PALAVRAS SOBRE A DETERMINAÇÃO


Diz-me a vontade que execute
o que a liberdade me priva:
diz-me a vontade que faça; diz-me a liberdade que lute!

terça-feira, 3 de abril de 2012

CÃO DE CIRCO


O cão é esperto, o cão
vai à televisão
com outros animais
e contradiz aos jornais
o que ontem desmentiu
a sangue frio.
O cão mente
e ri de contente.
Com a corda no pescoço
diz que o osso
só a nosso ver
é duro de roer.
É bom de acreditar,
se for outro a mastigar…
mas como não,
é conversa de cão.
- E se fosses, cão,
lamber sabão?
diz o povo,
isso é de cão ou de lobo?


E foi assim que o cão
lambeu a bola de sabão.

domingo, 1 de abril de 2012

TRANSITIVO


Em parte vou, em parte fico;
não sei se estou, se me ausentei:
não me identifico
e se acaso sou, não sei.


À parte, vou sem lei,
se ir for divagar.
Para onde caminhar, não sei
se ainda há lugar.


O que havia a dar, já dei
para meu completo azar
e só no fim vejo que me virei
sem querer de pernas para o ar.


Se em tudo, enfim, tiver sido eu
ou o que em mim permaneceu.