quinta-feira, 31 de outubro de 2013

VIDA


Nasceu aqui sem o meu conhecimento
- falo da flor; não falo do cimento -.

A papoila, quero crer, está convencida,
como eu: se houver tempo e espaço, há vida.

Berço d’oiro e colcha de cetim dão mau dormir
- para não falar do dia que sempre acontece -.
Então, ainda é pior de suportar e de digerir,
e dá a impressão de noite que nunca amanhece.

Amanhã virei cuidá-la, falar-lhe, vê-la,
depois se verá se é papoila ou uma nova estrela.


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

CANTAR DE AMIGO


O que me mentem as tuas mãos, quando acenas?
Sei lá se te despedes com ganas ou me dizes adeus,
com ares de exuberância imitada ou apenas
fátua negaça,  se me insinuas vai ou vem com deus.

Tenho dúvidas, tenho por traquejo muita dificuldade
em saber  se realmente me honras e me tens em alta
ou se apenas é comum em ti dar azo à vulgaridade
de adeusar quem fica e adejar quem já não te faz falta.

Cobro o mesmo: sou amigo de quem sempre fui;
não precisas de fingir, nem te exijo esse empenho
e não tenho pretensões ao que do nada nasce ou flui,
mas apenas do que de amizade  por ti ainda tenho.

sábado, 26 de outubro de 2013

AL CANTARA


Havia uma ponte
e sobre ela tudo
até um horizonte
nublado e mudo

havia um protesto
de humilde fonte
um grito e de resto
havia uma ponte

havia uma ponte
e um sonho a passar
quem a viu conte
quanto rio e mar

no fim da jornada
já firmes na rua
qual ponte ou estrada?
- a luta continua!

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

LÁ VÊM ELES


Lá vão de novo os poetas
para a lua. Que sina esta!
Sublimam rimas e tretas
e zás: está feita a festa.

Sabem vocês o porquê,
atreitos da prosa solta,
o que é que um poeta vê?
Não vê aqui, olha em volta.

Pronto: caldo entornado!
Água benta e presunção…
Não, nada mais errado:
é ver com o coração.

E olhem, que sempre vos digo,
- não há bela sem senão –
há poemas a que não ligo,
quer eles rimem, quer não.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

DANÇA



Dança que dança
e torna a dançar
um pé que avança
o outro no ar

Dança que dança
(ai pé que te atrasas…)
dá voltas à trança
que os braços são asas.

Dança que dança
com um pé atrás
e o outro em lança
coração onde estás?

Dança que dança
o baile mandado
que pla noite avança
sem estar acabado

Dança que dança
que em tua defesa
hoje há lembrança,
é dança inglesa.

Dança que dança
em bicos de pés
dançar já não cansa
uma, outra vez.

Dança que dança
dança a compasso
sem perder a ‘sperança
sem perder o passo.

Dança que dança
(que dança comprida!)
mas dança, dança, dança
a dança da vida.

sábado, 19 de outubro de 2013

O SISTEMA



Nos sonhos nunca encontro os papéis,
e nem sempre é pesadelo nocturno:
sobram-me os dedos, vão-se os anéis
e nada disto me compara a saturno.

É de outro lugar, de outro firmamento,
o desconforto, a aflição, a cabeça à roda.
Na verdade é náusea, descontentamento,
sintoma deste tempo que virou moda.

Afora a frustração, a raiva e demais agravos,
sinto as dores de outros, sonhando ou não:
ou alguém anda a fazer de nós parvos
ou a doença precisa de nova prescrição.

Os olhos, de cansaço feitos, vêem no céu
a vastidão imensa e escura do sistema
e dentro, apenas lágrimas têm de seu,
por vezes um grito como é este poema.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

PÁTRIA OU LIXO?


A pátria é um saco descartável
onde quem quer, dela faz lixeira
e o certo é que o cheiro é desagradável,
pútrido, incómodo, intragável.
Então pode definir-se desta maneira:
a pátria é uma renovada estrumeira.

É mais que tempo de limpar
e tornar esta uma pátria asseada!
Conferindo os meios a usar,
(é de excluir panos quentes, dá azar…)
Aux armes, citoyens! Mão pesada,
o lixo já só sai à vassourada!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

SENHORES DO NADA


Não é nojo e muito menos desprezo
o que sinto por esta relativa maioria.
Por esta e outras, correlativas no peso,
sinto a raiva que há muito não sentia.

O cinismo tomou-lhes conta da oração:
pregam de cátedra e com desdém,
órfãos de si mesmos, híbridos de geração
que não é gente, que não é ninguém.

Não adianta esmagá-los, as suas veias
não têm sangue. Morrem por combustão:
ardamos pois nos actos e nas ideias,
que eles esfumam-se como tiços de carvão!


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

ENSOLAÇÃO


O sol é este astro fero,
o oiro, a luz em chama;
eu sou eu e quem eu quero
da vida, de quem me clama.

Posso ser pássaro batido
ou ave de arribação
posso até ter subvertido
sinais, em contradição,

mas o sol ninguém mo tira,
que para todos é igual,
pode até ser mentira
e o bem que lhe quero ser mal.

sábado, 12 de outubro de 2013

SINAIS DE VIDA



Se a quietude fosse um lugar
ancorado algures, em desabrigo,
era aí que eu queria estar
e ficar a sós comigo.

Sem ondas, que as não ouvisse
seria já bastante
e de tudo apenas sentisse
do coração o bater constante.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

ÁGUA, UMA AUTÓPSIA


Analisada a composição, em suma:
duas moléculas de hidrogénio
para apenas uma de oxigénio,
é água, sem dúvida nenhuma.

Pelo ar dolente dá para ver,
sofreu maus tratos e escravidões,
espargida por mil religiões,
contabilizada em deve e haver.

Desperdiçada, mal compreendida,
acolheu aqueles, que ao naufragar
lhe rogaram pragas de arrepiar.
Foi tudo na vida, tudo em vida.

Acarinhada no desvio ou conduto,
teve amores também entre o povo
hoje aqui, depois ali, sempre em recovo,
mas nunca por si, antes pelo fruto.

Tem cor esverdeada, sabe e fede
e alimentou o mundo mesmo assim,
morta-viva correndo para o fim,
a autópsia é clara: morreu de sede.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

TEIA SEDUTORA


Quem julgar que apanha
mesa e roupa lavada
não conte com a aranha,
esfomeada.

A teia que a aranha
tece, tece, é um isco
que desenha,
qual ministro.

O que a aranha
se empenha em tecer
é ardil e manha,
manigâncias…
está-lhe no rosto
e bom de ver
que é imposto
pelas circunstâncias.

sábado, 5 de outubro de 2013

POEMA PARA HIERONYMUS BOSCH


Como hei-de dizer de ti, como de mim disseste?
Sim, de mim, que sou gente por aqui ou belzebu
e pinto de igual o que é inferno e o que é celeste.

Aqui me tens em efémero deleite, um teu criado,
jogando as peras mas sempre atento e, no fundo,
não passo dum joguete, dum projecto mal talhado,
a contas com esses tais possuidores do mundo.

Não lhes darei tréguas enquanto for eterno…
Serei talvez apóstolo da alegria, como foste tu
e que me sobre mundo, no céu ou no inferno.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

AINDA O SONHO


Não adianta prender o sonho de um dia,
seja vento,  nuvem ou seja ele um grito,            
e se o sonho não arder como então ardia
que não cesse a sede e a fome de infinito.

Não se ergam muros, grades ou prisões,
para algemar o que é alígero e insano,
não adianta prender o sonho às multidões
senão matando o próprio ser humano.


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

PASSOS DE CARACOL



nesta vida mole
pra cá e pra lá
assim não dá

se é o que há
não vamos lá
a passo de caracol

nesta saga
sabe-se quem paga
é o utente

que passam à frente
sabe a gente
mas isso esmaga