sábado, 29 de junho de 2013

O FIM DAS ÁGUAS


Pede-me João Corvo que (ao concluir este conjunto de cinco poemas sobre a terra e a água) dê notícia política do seu profundo empenho num mundo em que aqueles dois elementos naturais sejam preservados da cobiça financeira que grassa em todo o mundo, nos nossos dias. E conclui dizendo: “lutemos por uma mão cheia de terra e na outra mão uma concha de água e faremos um mundo novo”.




Mais tarde ou mais cedo, o dia terá o sol
que lhe é devido. A sombra deixará de ser eu
e passará a ser a minha sombra
e à sombra de mim hei-de plantar uma flor.

Vermelha, que é a cor que eu mais gosto,
capaz de um sorriso afável ou de um grito,
depois, bem, depois secarei todas as águas,
todas as mágoas e todas as lágrimas mais teimosas.


quinta-feira, 27 de junho de 2013

CHOVEM NOTÍCIAS


A terra, tão bastarda como fértil
que conheço e onde, ainda hoje,
tenho braços e pernas enterrados,
aqui é entulho e lama e os frutos,
cromaticamente falsos, são artigos de folheto.

A chuva, a inconveniente chuva,
se se demora e inunda, é notícia de jornal,
carreiros de rega transformados em valetas,
estéreis barrancos da cidade,
vertendo no bueiro mais próximo,
para o descanso de todas as almas recenseadas.

terça-feira, 25 de junho de 2013

NAUFRÁGIO


Vestígios, nada mais que rudes sinais
de um tempo que deixou morrer os anos
em volta. Memórias, memórias de coisa alguma,
porque são sombras decalcadas, fragmentos,
ilusões de olhares que há muito deixaram de ver.

Desilusões, umas, outras falsas lembranças,
que a memória insiste serem absolutas verdades.
A aldeia permanece imune à chuva, vista à distância.
E eu, que nunca fui marinheiro nem soube
de artes de marear, em terra sinto-me naufragar.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

PARTIDA


Parto. Levo as saudades escondidas
num embrulho pesado e clandestino
de muitas gerações. Não é por vergonha,
nem o peso de tanta mágoa me deixa lembrar
quanta verdade há entre o que digo
e o que realmente escondo e sinto em mim.

Sei que parto ou aos poucos, vou partindo.
Parto de mim e isso quer dizer tudo: parto
como um pássaro que, arriba acima,
não sabe ainda se o golpe de asa lhe chega
para dobrar o pico e alcançar autonomia.
Contudo parto. Seja lá o que for a liberdade.

domingo, 23 de junho de 2013

À CHUVA



Às vezes chove e eu vejo essa água molhar-te,
impiedosa. Na cidade é assim: a chuva molha
cruelmente as pessoas, desfigura-as
até se confundirem com a desumana chuva.

Aqui, na horta que frutifica na minha memória,
é uma bênção. Podia chover o ano inteiro,
que seria sempre bem-vinda a água. E mais não digo,
enquanto não estiver completamente enxuto.  

sexta-feira, 21 de junho de 2013

QUE FUTURO?


Sei muito bem que vão
cair na mesma cilada
é-vos superior e um não
está longe da vossa alçada.

Lembro que há algum tempo
uma figura prometida
falhou e como lamento
dizia: é a vida, é a vida…

Mas houve mais maiorais,
uns poetas, outros de prosa,
que engodaram os mais
com uma flor cor-de-rosa.

Um deles, bem tonto saiu,
em uma tirada, um dia:
que só adulto descobriu
no bolo que tanto gostava,
(de arroz assim se chamava)
um papel, por arrelia,
áspero na língua, cardia.

Outro ainda de novo bardo,
mais subtil no cinismo
prometia o socialismo
em programa laranja-pardo

Houve mil com promessas
e votaste neles, bem sei,
mas quando vieram as meças
disseste aqui d’el-rei.

De tudo se viu sem valor
com mais ou menos verniz,
desde um cherne voador
a pínóquios sem nariz.

Que tudo estava mal feito,
mais valia não teres votado;
pensa então que o eleito
é um e outro o candidato.

Vieram messias, arcanjos,
todos com o mesmo ardil.
Mas sem liras nem banjos,
o que interessa hoje saber
é se queres continuar a ver
este cenário seco e vil
ou queres continuar Abril.

terça-feira, 18 de junho de 2013

DÉDALO


Conto-vos agora uma história velha,
que não tem vestígios de um fim:
é sobre Dédalo, essa incisiva ovelha
de um rebanho helénico ou coisa afim.

Aquele era mestre, autor de invenções,
mestre era de Talos, que a mais ousou
em descobertas e outras ilusões
e por isso o tio e mestre o matou.

Fugiu. Creta, Sicília, por aí fora,
levou Ícaro e em breve o fez asado,
mas que de nada lhe logrou agora,
jazidos em terra, Ícaro e o voo sonhado.

O labirinto ainda existe, e existe o boi
perdido na obra maior do arquitecto.
E se tudo isto parece que um dia foi,
desenganem-se, que a história é aqui perto.

domingo, 16 de junho de 2013

(H)ORA VIVA!


 “Viver sempre também cansa!” – José Gomes Ferreira

Tudo o que vivemos nos mata,
nos transforma, crespa e vence;
toda a vida se ata e se desata,
a par disso, não nos pertence.

Incha o tempo, vai-se o tempo
em horas boas, más, austeras,
mais um ou outro contratempo
e todo o resto são esperas.

Toda a vida tem pressa, voa.
(- Eternidade, onde é que moras?!
- Súplica que às vezes ecoa)
Abranda, que não são horas…

sexta-feira, 14 de junho de 2013

GOTA D'ÁGUA


Que queremos nós com a azáfama, o corre-corre?
viver será, viver com os outros os dias por inteiro
e quem corre assim vive sempre e nunca morre,
porque vivendo todo o tempo se diz chegar primeiro.

Quem somos? Quem nos deu capacidade de sonhar?
Quem, numa gota de água apenas, o mundo nos apregoa?
O que queremos? Quase nada: um sopro para respirar
e um par de asas elementar que nos implore: voa, voa!

terça-feira, 11 de junho de 2013

O SOL E A LUA



Luz e lâmpada não são da mesma raiz:
se a primeira é de pergaminhos imanente
a outra, sucedânea, tem apenas o matiz,
a sobra de um raio, dum sopro quente.

É o sol que ao deitar-se, à lua dá recado
que, dito assim, mais serve de conselho:
- Eu não parto, és tu quem dá ao sapato
mas não te livras de te ser eterno espelho.

domingo, 9 de junho de 2013

POEMA RECORRENTE SOBRE AS CASAS


As casas são casas: intimidade, acomodação.
Casas e mais casas e eu vivo em todas elas
como, durmo, dou serventia às janelas
e vou pensando no problema da habitação.

As casas são mundos, são para mim o mundo
onde, mesmo sem dormir, vou sonhando a vida,
os que vão chegando e os que estão de partida
e esse é outro assunto; é o problema de fundo.

As casas ficam, sobreviventes de pedra e cal
sem sonhos e sem preocupações de maior.
Mas comigo é bem diferente e para pior…
E esse é o problema; é aí que está o mal.


quinta-feira, 6 de junho de 2013

CAMINHOS



Acontece que não sei
o que me espera além,
quando o souber direi,
por enquanto estou sem

argumentos convincentes
ou, pelo menos, chegados,
sobre os cinco continentes,
como digo, não tenho dados

que permitam, exactamente,
mais além da minha rua,
excepto, descoberta recente,
duma estrada para a lua…

terça-feira, 4 de junho de 2013

TU OUTRA VEZ, POESIA?


A sós havemos de nos entender
tu, poesia e eu, sobre este tema,
e assim ninguém fica a perder:
aos demais deixaremos o poema…

E que sabem eles desta relação,
a não ser o fruto, a síntese obtida
que, sendo em nós simples fusão
é, para quem nos decifra, outra vida.

Mas não é tanto, não é bem assim:
afinal, só quem não tem consigo
imaginário, metáfora ou coisa afim,
não sabe quem tu és nem o que eu digo.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

(DES)ACORDO


Esse irmão brasileiro
é um bacano engraçado,
esperto e avisado:
vai no português prático
e quer acordo otográfico
que nem professor danado.

Esse irmão brasileiro
é fogo de vera cruz
quer o diabo, deus e jesus,
sem cês e agás mudos,
conforme seus estudos
bordados a ponto-de-cruz.

Esse irmão brasileiro
quer tudo registrado
excepto o brasileiro falado:
cafajeste, viado e pebolim,
aeromoça e colibrii,
que não constam do tratado.
 
Esse irmão brasileiro
diz que é português sem ruga
e se há verdadeiro portuga
chute a bola prá frente
que o zagueiro é resistente
e, além do mais, é tuga.

Esse irmão brasileiro
é bom irmão, camarada,
dá de barato, não quer nada;
apenas trocos, reais, cachaça,
senhora cheia de graça
e mais alforria assinada.

Esse irmão brasileiro,
bom povo irmão, repito,
não está nisto por conflito
apenas quer dizer primeiro
como se diz em brasileiro,
eu é que lhe faço o manguito!

Esse irmão brasileiro,
brinca na areia, esse irmão
do samba e do violão,
seja paulista ou carioca
quer português em troca
do seu gingado calão.

Esse irmão brasileiro
do carnaval, do candomblé,
do amazona, do jacaré,
bate um samba na favela,
toca violão de trivela
e em português, como é?

Este primo português
lava as mãos como Pilatos
e, irresponsável nos atos,
deixou-nos na confusão,
analfabetos ou não
diz que os acordos são fatos.