quinta-feira, 28 de maio de 2009

AS PRIMEIRAS PALAVRAS

Rio Ponsul (afluente do Tejo e local dos meus primeiros "mergulhos" ) - Foto de Maria José Mendonça

Enquanto discípulo involuntário,
quiseram que as corrompesse.
Inocentemente, construí e soletrei ditongos,
deduzi os sons pela Cartilha,
massacrei a gramática como pude.
Queria que as letras me servissem, e isso era impossível.
Dedilhei-as ainda, ensopei-as de saliva
e sublinhei-as com tinta e raiva para que se colassem a mim,
mas só com amor vieram.
Não sabia ainda da sua utilidade
e do quanto viria a gostar delas.
Pensava: para quê juntar as letras em papel
para dizer coisas, se posso até gritar as dores da alma
ou os frenesis do corpo?
Mais tarde, reparei que eram janelas
com vista para as palavras
e com estas e um pouco de imaginação poderia construir metáforas
e outras ilusões.
Poisavam nas minhas mãos como pequenos pássaros
nos peitoris debruçados para a rua;
nidificavam nos meus ombros
para melhor aconchego em todas as migrações.
Foram ficando.
São minhas companheiras fiéis.
Sem palavras.
(Prova de Vida - inédito)

domingo, 24 de maio de 2009

CAVALOS

Meu Caro Luis Silveira, afinal foram oito e não sete os sonetos que aqui publiquei a propósito de outros tantos quadros teus. O lapso estará a montante da aritmética, penso eu...
Contudo, ainda te quero fazer uma surpresa: há um nono soneto que não conheces. Ei-lo:

Luis Silveira/Cavalos-pastel sobre papel




Competem com o vento, contra o tempo
por impulsos de sangue e de aventura.
Galopam por essência e temperamento,
aliam o momento à presteza pura.

As crinas encrespadas, soltas ao vento,
são, a bem dizer, como uma assinatura
da liberdade que no trote, lentamente,
se funde com a arte dedicada na gravura.

Este é o corcel altivo em figura,
que não tem destino ou meta em vista
e lhe rogo, que por tudo não desista.

Outros querem a glória e a ovação;
o seu limite, o músculo, a exaustão:
isso é quem os monta que o procura.







sexta-feira, 22 de maio de 2009

TALHA DE ROSAS EM AZUL

Luis Silveira/Talha De Rosas Em Azul

Na talha, um ramo anil de rosas.
No entanto, uma imperceptível cor,
causa no sereno azul das rosas
um abafado pranto, uma quieta dor.

Vertidos, os pequenos pães de flor,
em prece, clamam almas caridosas:
- São apenas rosas, meu Senhor…
deixai o anil dizer quão espinhosas.

E o milagre azul é espalhado
em cacho ordeiro e perfilado
no chão de igual sorte e anil afim.

Dizer das rosas é dizer de mim:
se os meus versos azuis dizem que sim,
o corpo esparge um alento matizado.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

TONS E SONS















Luis Silveira/Tons e Sons


A postos címbalos, fagotes e cordas,
harpas, trombones e metálicos afins.
O maestro ensaia, afina leves acordes
e solta a música com um golpe de rins.

Opus em sol maior, entram os clarins!
E o piano responde com um lamento.
Doce, quase adormece os querubins,
que protagonizam o segundo andamento.

A clave é de sol. É um sol nascente:
música, música, o som é urgente
e o barítono, grave, irrompe fascinante.

Os anjos fazem o coro pueril e quente
(de um imperceptível azul envolvente)
e deixam fluir em sol a melodia andante.

terça-feira, 19 de maio de 2009

AVENIDA DA LIBERDADE

Luis S ilveira/Avenida da Liberdade


O passo que me apressa pela cidade,
segue e passa, deveras tão apressado.
É o preço de passar sem ter passado
e ficar preso na própria liberdade.

Alongo o traço, invento a realidade,
ensaio o voo e vou de lado a lado:
há gente em casa? Tudo tão calado…
quem me acode aqui, quem há-de

soltar-me o passo, que já tropeça?
Paro já. Posso, sem querer, ir de cabeça
e lá se vai a invenção do traço.

Em limite, a avenida é um terraço
onde o olhar se eleva para o espaço
e vê nascer o mundo a toda a pressa.

LISBOA

Luis Silveira/Lisboa


É provável teres chorado ali, naquela casa
ou em todas, quando a neblina desceu.
Sei da lágrima atrás dessa vidraça
e sei do pranto, que bem pode ser o meu.

Magoa a luz mortiça, o quase breu
e o fado, que lacera e que devassa.
Ouvem-se os acordes, a voz já se perdeu.
Na rua ninguém mora, ninguém passa.

A minha alma é o desprovido luzeiro,
resistente à bruma e ao fumo do cigarro.
Pode ser pranto ou farol de marinheiro,

choro, brasa ou o cais onde amarro
a vida passageira o tempo inteiro,
sejas Alfama, Madragoa ou o meu bairro.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

URBANIDADES II

Luis Silveira/Urbanidades II


Ateiam-se fogueiras, outros lumes
e a cidade boceja, sobressai da bruma.
Das janelas toam as dores do costume
com as gelosias cerradas de ciúme.

Os semáforos dão a cor do perigo,
outros, avisam cedência intermitente.
Um par de olhos lacrimeja ao postigo,
num percurso sinuoso e descendente.

Mas já se ouve o alvoroço dos pardais,
que não tardam aí a dar sinais
da madrugada que irá rasgar o céu.

O mesmo itinerário persigo eu:
se a noite acende brasas nos meus ais,
alvoram-me no peito as aves matinais.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

URBANIDADES

Urbanidades/Luis Silveira

Este mar pesado e escuro é a morte,
e além, renuncia o céu à claridade.
Em silêncio, a balsa é a cidade
à deriva, irmã dum sol com igual sorte.

Será nortada? Às vezes, o vento norte
ilude os mareantes com tal habilidade
(seja por capricho ou por maldade)
abrigando brisas de ameno recorte.

E quando a claridade soçobrar,
outras ciências guarda o mar,
dissimulando a onda, insinua, seduz.

Eis por que há quem veja a luz
duma tímida manhã a despontar
onde outros já se deixam naufragar.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

MANCHA URBANA

Mancha Urbana/Luis Silveira

Praças, ruas, avenidas e vielas;
antenas, telhados, muros e casas;
tintas, meias tintas, aguarelas,
e lá se vai o meu par de asas…

Candeeiros, lâmpadas e brasas
fluorescentes e também velas
perfiladas em acção de graças,
caminhando em linhas paralelas.

Andaimes, vigas, a urbe cresce
e explode, grita, quando amanhece
em geométricos canteiros.

Esquadros, réguas, prumos, pregos,
são agora arquitectos cegos
em torvelinho, como bichos carpinteiros…

terça-feira, 12 de maio de 2009

PRIMAVERA NA RAIA

Primavera na Raia II/Luis Silveira

Aqui, a matriz é de oiro intenso
e o vento descuida o passaporte.
Manda o sol. E, com um pouco de sorte,
é a este lugar que eu pertenço.

Por agora, é na raia beirã que penso,
na Campina impressiva e forte.
Além, espanhas, o horizonte, o corte
umbilical, nivelado e denso.

Deixo no trigo, já segado, o meu olhar
diluir-se entre a filigrana e os lilases.
Regresso à terra, faço as pazes

com este chão materno que me implora
o verbo e a alma sem demora
e me obriga, mais uma vez, a sonhar.

SONETOS SOBRE TELAS

Com Luis Silveira em Castelo Branco em 2008

A propósito de cada um de sete quadros do meu amigo e pintor Luís Silveira, escrevi recentemente outros tantos sonetos, para contentamento de ambos.
Do facto darei conta em sete “posts”, como se diz nesta outra “linguagem”, própria da blogosfera.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

COISAS DA PARTE DA TARDE

"Corpo de Poema" 1985


AS TARDES


Nunca as tomei a sério:

lambusado de poemas, apertava com força

e descuido o sexo das borboletas moribundas


e subia pelas cordas estendidas

na sombra às cerejeiras que suplicavam

o contacto das minhas pernas nuas

entrelaçadas na frescura seca

dos seus ramos meigos


descia

ainda

abraçado

ao tronco

farto meio sujo

com os lábios tingidos de vermelho

e dois cachos de poemas

pendurados nas orelhas.

("Corpo de Poema" - 1985)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

ESPERAS

Foto de J.Filipe Bacalas - Olhares - Ilha da Armona


CÚMPLICE DE MIM


Uma pétala de cravo ou uma urze?
A margem de um rio onde
eu te espero ou tu me esperas,
a que tempo a espera corresponde?

Se todo o tempo é habitado
e o tempo vazio não responde,
que eco tem a longínqua espera,
a que tempo a espera corresponde?

Teremos naufragado nesse rio?
Sucumbido a que maré ou onda?
Que tempo é o tempo ausente,
a que tempo a espera corresponde?

Por fim, a desmedida lágrima,
capaz de ser futuro rio, responde:
- basta de esperas passadas,
a que o tempo da espera corresponde!
(inédito)

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O LUGAR DAS COISAS

Seara - foto de JFilipeBacalas (Olhares)


AS PAPOILAS

A noiva não mostra um arrumado bouquet
de espampanantes papoilas, mas de rosas.
Ainda que estas sejam só para quem vê
e a brava flor a chama íntima das fogosas.

Mas se mentir quiser a noiva prazenteira
pode, sobre o ventre inchado, qual balão,
decorar-se de casto ramo de oliveira
mas papoilas é que não, papoilas é que não!

Quando muito, estrelícias, verde rama ou goivos,
geribérias, buganvílias, espigas férteis, loiras,
que dão realce às flores e dão aos noivos,
mas nunca a cor e a lascívia das papoilas.

Sou seu devoto além do trigo nas searas,
quando rompem vermelhas ao sabor do vento,
cravos da mesma cor e outras menos raras,
mas isso é com outro fim; de outro casamento…

(Inédito)

terça-feira, 5 de maio de 2009

MARÉS DE AMOR

Foto de Liliana Sezões

FLOR DAS FLORES



Há em ti choro de plátanos e de rosas,
doendo em cada lágrima vertida:
olhos de amêndoa lisa, cristais de vida,
raiando nas madrugadas mais frondosas.

Só de perto se distingue o amarelo das mimosas;
pequenos sóis em cachos, pendendo a vida
das minhas mãos suspensas, negando a despedida.
Só de perto se distingue o amarelo das mimosas.

Que pode um cravo apenas branco,
da imensa e tão breve primavera, quando
mil flores colorirem o chão a aguarela?

Enquanto não cativar e for cativo,
jardineiro de jardim onde não sirvo,
regarei, lágrima a lágrima, a flor mais bela.
(inédito)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

QUE SAUDADES DA VELHA MÁQUINA...




POEMAMÁQUINA


tec tarec tec

a máquina
de escrever
à tec tecla
poemas plim
rima assim:

tec tarec tec

tec larec tac
re re retrocesso
meti o dedo
no buraco

tec tarec tec

maiúcula plim
a vermelho
minúscula ploc
muda a cor
agora não rima
fica assim

("Prova de Vida" - inédito)