terça-feira, 31 de dezembro de 2013

POEMAR

Termino o ano com Miró e João Corvo, meu poeta de eleição

Todas as manhãs acordo com a incómoda veleidade
de escrever o poema duma vida.
Aspiração patética e vã: a poesia não é determinável!
Nasce nos olhos, percorre as veias, anda por aqui
saltitando como uma corsa em tempo de cio,
oferecida ao impulso masculino da preservação da espécie:
mentiras rebuscadas, arredondadas, rimadas…
A poesia vai no sangue e não consigo estancá-la
para vos mostrar o poema da minha vida,
para vos dizer o poema que tenho em mim,
para vos poemar o que nunca explicarei convenientemente.

Não é fácil suster o ímpeto de dizer
tudo aquilo que o poema leva dentro
e eu dentro dele ou ele dentro de mim.
Primeiro vêm as águas – umas feitas de violentas ondas,
outras quase riachos à procura da foz,
que os liberte enfim da opressão das margens –
Depois, tudo acalma e se transforma em bolas de sabão…
As palavras chegam por fim. Enxutas, buriladas,
mas nem sempre exactas; raramente verdadeiras.
Às vezes são como um sol brilhante e quente e outras
não  passam de pequenos anjos seminus,
chorando para que lhes mude a fralda…
Todas as manhãs o mesmo incómodo, todas as manhãs!

domingo, 29 de dezembro de 2013

ÁRVORE FELIZ


Uma quadra solta e outra entre parênteses.


A árvore esbraceja de contentamento,
em demanda d’água, seu alimento,
cresce, estende-se ao Sol e é feliz;
tronco, folhas, frutos: tudo da mesma raiz.

(O reflexo, o espelho é a pura verdade:
tu és quem realmente és , como outra metade.
Dentro ou fora és o mesmo, o teu igual.
Pena seres humano; penses bem e hajas mal.)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

UM LUGAR AO SUL


(Rafael Correia tem um programa na RDP com o nome Lugar ao Sul, um dos meus preferidos)

Onde é que eu fico? Nesta cor,
no chão segado que além vejo
ou deixo-me, com amor,
inundar  de céu e Alentejo?

Melhor é nascer de novo
e escolher este tom de azul
de céu, de mar, de povo;
um lugar habitado a sul.

domingo, 22 de dezembro de 2013

SOL E DÓ


Quando o sol arrefece,
a modos que entristece
em arrepiante glacê.
Apenas ri quando aquece
ou porque lhe apetece
sem saber bem porquê.

Este sol habituado
ao palco diurno do fado,
que nem por um dia se acoite,
se bem que triste ou magoado,
e mesmo se estiver cansado
nunca saiba o que é a noite.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O HOMEM QUE ESCREVIA VERSOS BRANCOS

Era um homem de saberes distintos. Moldava versos mentalmente durante algum tempo e depois escrevia-os como se os soubesse de cor. Fazia-os de memórias antigas. Todas as palavras desenhadas no papel tinham uma luz ardente. Às vezes sorria-lhes. Por mais singelas, rebuscadas ou buriladas, o homem parecia conhecê-las a todas como os seus próprios dedos, mesmo no emaranhado dos versos que guardava secretamente no cérebro até achar a oportunidade fantástica de lhes poder dar luz.
As palavras. Oh, as palavras, isso é dizer muito pouco sobre o que o homem derramava no papel… Eram astros, cometas incandescentes que a sua mão mais ágil ia traduzindo à medida que a memória ditava. Algumas riscava-as como se quisesse imitar a cauda dum asteróide, a outras acrescentava-lhes letras com luz ainda mais fogosas e a outras ainda dava-lhes uma espécie de vida humana: molhava entre os lábios cerrados e a língua a ponta aguçada do lápis e reescrevia-as ensopadas de saliva, como se suassem; como se chorassem; como se as benzesse daquela forma pagã e as soltasse para a vida efémera que é o momento da leitura.
Diariamente – por ser um período de tempo acessível à nossa compreensão – arriscava um poema; um fio de versos capazes de entontecer o mais empedernido dos seres. E fazia-o com a serenidade de sempre: o caudal das palavras percorria toda a folha de papel ao mesmo tempo que as lágrimas e todas as outras águas levavam à frente o jorro das suas inquietudes, até à conclusão apoteótica do poema.
As folhas de papel eram como que assoreadas de todo o pó e de todos os restos de escritos antecedentes e candidamente expostas à sua inspiração. Assim procedia para que a brancura dos versos não fosse poluída de matéria inconveniente.

Ao fim de cada jornada, a folha de papel continuava imaculada, com um novo poema branco e irrepetível derramado, mas em que apenas ele era capaz de ler todos aqueles versos lácteos e sublimes, que jamais alguém havia escrito. Ele e todas as crianças de olhos cristalinos como as suas folhas de papel.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

À LUZ DO TEMPO




De espera se faz o tempo
de um e de outro lado:
melhor, é esperar atento;
pior, é não ter esperado.

Há um momento dado
em que  pode o vento
delir, por ser soprado,
e já não chegamos a tempo.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

PRESO DE AMOR



Um corpo ou a própria sombra, o teu,
morno – que o descubra assim – por devoção
e me dissolva nele como se fosse eu,
tiquetaqueando em ambos o mesmo coração.

Que amor há, não sendo a emoção
de seres tu e, além de tudo o mais, se eu,
por ser em mim que explode tal paixão,
me divido, ao mesmo tempo, em juiz e réu.

Em causa própria, mau grado sentimento,
castigo e sofro o amor que me condena,
recuso e ao mesmo tempo dou assentimento

e, contrariado, acabo por aceitar a pena
de amor perpétuo em completo isolamento,
evadido de mim, fingindo a liberdade plena .

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

ÁFRICA AFRICANA


Em Maio de 1975, Almeida Santos, Ministro português da Coordenação Interterritorial
afirmou ao pisar terra cabo-verdiana: “aqui respira-se Portugal”. Escrevi este poema em 10/6/1975


O Corvo poisou no barro seco
e a terra sorriu rasgada e funda.
É África africana, lábio grávido do oceano.

Meu país é longe
como a estrela do norte…

As árvores vergam-se, beijam o chão,
deixaram de suportar o vento
e o mar não pode valer a esta seca.

África tem sol no peito,
tem coração de boi: é forte
e o sangue corre nos braços lânguidos dos seu filhos.

A brisa fresca ao fim da tarde
é licor que adormece esta África
enorme e africana
e eu digo baixinho:
meu país é longe
como a estrela do norte…

Praia, 10/6/1975

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

À LUZ DAS LÁGRIMAS



Vou iluminar uma vela
de transparente solidão
e colocá-la na lapela,
bem junto ao coração.

Há-de flamejar cristalina
e inundar de alva discreta,
emulando a parafina
até que por fim se derreta.

Mas sem chama ardente,
como a luz anterior à mágoa,
não vá uma brisa displicente
secar-me as lágrimas de água.


domingo, 8 de dezembro de 2013

POEMA ECOLÓGICO DE NATAL


Um dia destes enfeito-me de azevinho,
bagas vermelhas em cima e aos pés caruma.
Vestido assim, (a ver se adivinho):
humana árvore de Natal ou coisa nenhuma.

De azeviche não, (ai a língua portuguesa!)
À maneira sóbria das damas antigas,
fazendo sinal da cruz quando se sentavam à mesa
e no decote exibiam  um atado de figas.

Visto-me assim de vermelhos frutos,
que da natureza sou  e de vermelhos gosto
e sem vaidade digo: são gostos mútuos;
de hipocrisias basta, é nisso que eu aposto.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

ORAÇÃO PAGÃ


João Corvo insiste na publicação deste texto. Seja feita a sua vontade.


Santo Ovídeo, S. Cosme e Damião,
São Sebastião de santas mortes;
Santa Bárbara das trovoadas,
Santo Elói dos ourives,
São Cristóvão rodoviário,
Santo Onofre, Senhora dos Aflitos,
São Tiago de Fora e Senhora da Boa Hora,
São João das mil fontes,
Santo António de Lisboa
e São Miguel por orago,
São José carpinteiro,
Judas, Tiago, Betânia de Jesus Cristo,
São Marcos da minha rua,
São Valentim dos amores
e  São Jorge dos demónios,
São Pedro, São Paulo e São Bento,
São Macário dos mil lugares,
São Barnabé e S. Judas apóstolos,
São Lázaro ressuscitado:
demora ainda a caminhada
ou pensais em santificar-me?

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

DEBAIXO DA PONTE


Em noite sem nuvens é vulgar
ter no céu por horizonte
o brilhante esplendor do luar.

Incomum, se queres que conte,
é a lua indigente pernoitar,
minguante, debaixo da ponte…

domingo, 1 de dezembro de 2013

O JOGO DA BOLA


Sem dinheiro para patins ou raquetes
e a imaginação pronta para inventar,
enchiam-se de trapos os velhos soquetes
e ala, temos bola, vamos jogar.

Se jogava a sério, se era bom de bola?
Não, nem um pouco, “não jogava nada”.
- Não é fintar e jogar bem o que consola;
é andar o dia inteiro com a meninada!

E foi assim que crescemos: de aventura
e fantasia. Esta era a ilusão precisa,
mais as zangas, as rixas… e a ternura
quando a maculada bola entrava na baliza…

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

VINHO NOVO



vinha vindimada     chapada rasa
  uva esmagada         vinho da casa

toalha estendida     mesa posta
        haja comida             quem não gosta?

vinho novo     boa cepa
grita o povo    de boca seca

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

PEDRAS


A pedra é cega: bate e fica
e se não ficar, o mais certo
é desabar. Não, não nidifica,
não se atém a alpendres, a coberto.

As pedras são como estrelas,
ou então projécteis ou balas:
umas, as que podemos recolhê-las,
outras, as que podemos atirá-las.

Pedra após pedra, é a natureza:
a pedra sustem a pedra até ver,
mais adiante haverá certeza
se é pedra ou terra o amanhecer.

domingo, 24 de novembro de 2013

FANTASIA 2


Não, mais fantasia não, que me causa sono e tédio!
A realidade, pelo menos, dá-me ganas, dá-me alento,
mesmo sendo o que é, pois não tenho mais remédio,
que combatê-la para não me desleixar ao sabor do vento.

Mas de fantasia chega: bastam os sonhos e quimeras,
bastam as ondas, os adamastores, e os cardumes de sereias,
que me atraiçoam e mais não oferecem senão esperas
de morte, sabem-no o meu sangue e as minhas veias.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

FANTASIA



Assim te relembro no que há em mim de mais profundo:
busto de mar e espuma; saia apertada, de areia fina…
e sempre que assim te lembro desvaneces e, imagina,
já te não vejo e o que afinal recordo em ti é todo o mundo.

Todo o mundo, todo o mundo que me corrói e mina.
Íntimo, imaginado, que numa fracção de segundo,
me cega e convoca mais premente e mais fundo,
mais aquém donde começa; mais além donde termina.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

REDENÇÃO


Foi activado o relógio maldito
da morte. Findou a temporada
que, tendo máscara de infinito,
perdeu fulgor, não dá para nada.

Quem diz morte, diz fingimento,
diz rancor, diz raiva e malquerença,
se é que a farsa tem argumento
e nada é improvisado; em tudo pensa.

Matar a morte seria a solução…
mas matar o que é, em suma,
o que em vida é decomposição,
é matar tempo, que é coisa nenhuma…

domingo, 17 de novembro de 2013

CONTO DE NATAL


O meu tio Sebastião era uma daquelas figuras omnipresentes, cujo trato afável e bonacheiro
me envolvia numa espécie de almofada de sumaúma e me retirava palavras quase sempre de assentimento involuntário.
Admirava-me. Soube-o mais tarde. Das poucas conversas que estabelecemos, sendo dele o mote, quase não tive tempo para dizer algo coerente quanto desejava dar-lhe conta das minhas inquietações. Mas ele de tudo dizia saber e a sua presença parecia ocupar toda a casa, todos os lugares da casa. Esse era o meu constrangimento, o meu sufoco.
Era, segundo me dizia, admirador de Pessoa, da Mensagem em particular, e publicou sobre o tema duas ou três brochuras, que um dia me ofereceu com dedicatória carinhosa, como era próprio da sua postura tutelar. Afinal, estávamos em 1988 e eu tinha cinco livros de poesia editados. Penso que o meu tio me olhava como continuador de sangue nas artes da escrita… Em certa ocasião, por intermédio de um familiar comum e por altura do Natal, pediu-me que o visitasse com urgência pois iria regressar a Lisboa onde tencionava passar a consoada.
O meu desassossego perante tal convite só terminou já em sua presença, com o cheiro do azeite das filhós a pairar por toda a casa e de frente para uma enorme e confortável lareira de chão e de generosa matéria combustível.
Falou-me então da sua admiração pelos meus trabalhos poéticos, comparou-me a Alda Lara (poetisa que eu desconhecia naquela altura, cuja obra foi editada postumamente, mas que o meu tio terá conhecido nas suas andanças por Angola) e, a tal propósito, deu-me conta “do verdadeiro sentido que se oculta em expressões metafóricas e ambíguas, recursos que só a poesia admite e que só o verdadeiro poeta é capaz de utilizar”. Mais para o fim da conversa, lá veio então o conselho: “Mas tem cuidado, há coisas que não devem ser ditas, basta que se subentendam”.
Julgava eu ter ganho já aquele Natal quando, ao despedirmo-nos, me ofereceu o seu último trabalho em livro acompanhado de um forte abraço e uma nota novinha de cem escudos, desejando-me os maiores êxitos.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

NOVO DIA


Será o dia que agora rompe e nasce
o que espero por uma vez ser o dia?
Com ou sem diadema o dia faz-se,
e que mais há que a véspera prometia?

Descrito o semicírculo, o dia morre.
Depois é noite, como eu por dentro,
tacteando o sangue que em mim corre
e desagua num mar de desalento.

Sejam anos-luz o dia que me espera,
seja o sol já gasto, perdido no escuro,
há-de ser um dia o dia e quem me dera
hoje mesmo chamar-lhe já futuro.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

AI MARIPOSA


Ai mariposa,
quanta heresia
há entre a prosa
e a poesia.

Se voares, garbosa,
é poesia,
mas se fores de fantasia
é prosa.

Definirei as loas
neste possível quadro:
poesia é quando voas;
prosa é se te guardo.

Ou então doutra maneira,
ao jeito da minha caneta:
mariposa é poesia inteira;
se for prosa és borboleta.

Esquece tudo, vai!
de nada queiras saber,
há gente que te chama butterfly
e eu apenas te quero ver…

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

ROMPER O CERCO



Rompo a campânula e dou o salto
o mais longe que puder, o mais alto.

Recuso a entrevação, a vida morta.
Então, vou arrombando a porta,

Com este marasmo desespero
e isso é que não, isso é que não quero.

Irei por aí, livre, talvez ousado:
- a senda há-de levar-me a algum lado.

Se não levar, se já não houver estrada,
deixem-me ficar, esperarei p’la alvorada.

E, pelo sim, pelo não, sigam. Parar é nada.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

PEQUENA FÁBULA



Vai longe o tempo (longa a vida)
em que jogava à bola na rua.

Um dia dei um grande salto
e atirei-a tão longe, tão alto,

que à minha bola perdida,
hoje lhe chamo lua.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

DETRÁS DUMA MOUTA ESTÁ OUTRA


Mestres na arte da mentira,
exibem-se, sazonais, alternativos.
No fim, o que um dá outro tira
e pedem graças por estarmos vivos.

Mas as contas fazem-se no fim
- vai no meio a procissão -
sem lugares para os assim-assim,
veremos quem tem razão,

se o bando de bufarinheiros,
troca-tintas, agiotas, malteses,
judas por trinta dinheiros
ou somos nós, portugueses.

domingo, 3 de novembro de 2013

FORA DAQUI!


Estes, que de espontânea geração
se implantaram de unhas afiadas,
sem pátria, rosto ou nobre condição,
erguem barreiras, intransponíveis paliçadas,
a mando de medonhas divindades
e novíssimos coios emergentes.
Se for o caso, faremos as nossas barricadas
e mandaremos até tocar trindades,
armados de mil razões e alma até aos dentes.

Acabou o tempo, cães imundos!
não há mais lugar para indulgentes elogios!
Enquanto é tempo oiçam nos gritos profundos,
o repúdio, as vais de revolta, os assobios,
que não queremos saber mais de novidades
da morte que em vós nos vai matando
ou impostos falsamente vitais e urgentes.
Nós somos daqui em todas as idades,
feridos, é certo, de quando em quando.
De mais a mais, fartos de incompetentes.

sábado, 2 de novembro de 2013

RESISTIR


Tem pelo menos uma coisa boa este Outono:
o inconformismo dos plátanos, a folha solta;
recusam a morte sazonal; “a voz do dono”,
e empunham bandeiras vermelhas de revolta.

Efabulo. Pois as pobres árvores, já enxutas,
nada pensam. É o seu ciclo; a sua essência.
Mas a vida faz-se de etapas e de lutas:
compõe-se de mudança e resistência.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

VIDA


Nasceu aqui sem o meu conhecimento
- falo da flor; não falo do cimento -.

A papoila, quero crer, está convencida,
como eu: se houver tempo e espaço, há vida.

Berço d’oiro e colcha de cetim dão mau dormir
- para não falar do dia que sempre acontece -.
Então, ainda é pior de suportar e de digerir,
e dá a impressão de noite que nunca amanhece.

Amanhã virei cuidá-la, falar-lhe, vê-la,
depois se verá se é papoila ou uma nova estrela.


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

CANTAR DE AMIGO


O que me mentem as tuas mãos, quando acenas?
Sei lá se te despedes com ganas ou me dizes adeus,
com ares de exuberância imitada ou apenas
fátua negaça,  se me insinuas vai ou vem com deus.

Tenho dúvidas, tenho por traquejo muita dificuldade
em saber  se realmente me honras e me tens em alta
ou se apenas é comum em ti dar azo à vulgaridade
de adeusar quem fica e adejar quem já não te faz falta.

Cobro o mesmo: sou amigo de quem sempre fui;
não precisas de fingir, nem te exijo esse empenho
e não tenho pretensões ao que do nada nasce ou flui,
mas apenas do que de amizade  por ti ainda tenho.

sábado, 26 de outubro de 2013

AL CANTARA


Havia uma ponte
e sobre ela tudo
até um horizonte
nublado e mudo

havia um protesto
de humilde fonte
um grito e de resto
havia uma ponte

havia uma ponte
e um sonho a passar
quem a viu conte
quanto rio e mar

no fim da jornada
já firmes na rua
qual ponte ou estrada?
- a luta continua!

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

LÁ VÊM ELES


Lá vão de novo os poetas
para a lua. Que sina esta!
Sublimam rimas e tretas
e zás: está feita a festa.

Sabem vocês o porquê,
atreitos da prosa solta,
o que é que um poeta vê?
Não vê aqui, olha em volta.

Pronto: caldo entornado!
Água benta e presunção…
Não, nada mais errado:
é ver com o coração.

E olhem, que sempre vos digo,
- não há bela sem senão –
há poemas a que não ligo,
quer eles rimem, quer não.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

DANÇA



Dança que dança
e torna a dançar
um pé que avança
o outro no ar

Dança que dança
(ai pé que te atrasas…)
dá voltas à trança
que os braços são asas.

Dança que dança
com um pé atrás
e o outro em lança
coração onde estás?

Dança que dança
o baile mandado
que pla noite avança
sem estar acabado

Dança que dança
que em tua defesa
hoje há lembrança,
é dança inglesa.

Dança que dança
em bicos de pés
dançar já não cansa
uma, outra vez.

Dança que dança
dança a compasso
sem perder a ‘sperança
sem perder o passo.

Dança que dança
(que dança comprida!)
mas dança, dança, dança
a dança da vida.

sábado, 19 de outubro de 2013

O SISTEMA



Nos sonhos nunca encontro os papéis,
e nem sempre é pesadelo nocturno:
sobram-me os dedos, vão-se os anéis
e nada disto me compara a saturno.

É de outro lugar, de outro firmamento,
o desconforto, a aflição, a cabeça à roda.
Na verdade é náusea, descontentamento,
sintoma deste tempo que virou moda.

Afora a frustração, a raiva e demais agravos,
sinto as dores de outros, sonhando ou não:
ou alguém anda a fazer de nós parvos
ou a doença precisa de nova prescrição.

Os olhos, de cansaço feitos, vêem no céu
a vastidão imensa e escura do sistema
e dentro, apenas lágrimas têm de seu,
por vezes um grito como é este poema.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

PÁTRIA OU LIXO?


A pátria é um saco descartável
onde quem quer, dela faz lixeira
e o certo é que o cheiro é desagradável,
pútrido, incómodo, intragável.
Então pode definir-se desta maneira:
a pátria é uma renovada estrumeira.

É mais que tempo de limpar
e tornar esta uma pátria asseada!
Conferindo os meios a usar,
(é de excluir panos quentes, dá azar…)
Aux armes, citoyens! Mão pesada,
o lixo já só sai à vassourada!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

SENHORES DO NADA


Não é nojo e muito menos desprezo
o que sinto por esta relativa maioria.
Por esta e outras, correlativas no peso,
sinto a raiva que há muito não sentia.

O cinismo tomou-lhes conta da oração:
pregam de cátedra e com desdém,
órfãos de si mesmos, híbridos de geração
que não é gente, que não é ninguém.

Não adianta esmagá-los, as suas veias
não têm sangue. Morrem por combustão:
ardamos pois nos actos e nas ideias,
que eles esfumam-se como tiços de carvão!


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

ENSOLAÇÃO


O sol é este astro fero,
o oiro, a luz em chama;
eu sou eu e quem eu quero
da vida, de quem me clama.

Posso ser pássaro batido
ou ave de arribação
posso até ter subvertido
sinais, em contradição,

mas o sol ninguém mo tira,
que para todos é igual,
pode até ser mentira
e o bem que lhe quero ser mal.

sábado, 12 de outubro de 2013

SINAIS DE VIDA



Se a quietude fosse um lugar
ancorado algures, em desabrigo,
era aí que eu queria estar
e ficar a sós comigo.

Sem ondas, que as não ouvisse
seria já bastante
e de tudo apenas sentisse
do coração o bater constante.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

ÁGUA, UMA AUTÓPSIA


Analisada a composição, em suma:
duas moléculas de hidrogénio
para apenas uma de oxigénio,
é água, sem dúvida nenhuma.

Pelo ar dolente dá para ver,
sofreu maus tratos e escravidões,
espargida por mil religiões,
contabilizada em deve e haver.

Desperdiçada, mal compreendida,
acolheu aqueles, que ao naufragar
lhe rogaram pragas de arrepiar.
Foi tudo na vida, tudo em vida.

Acarinhada no desvio ou conduto,
teve amores também entre o povo
hoje aqui, depois ali, sempre em recovo,
mas nunca por si, antes pelo fruto.

Tem cor esverdeada, sabe e fede
e alimentou o mundo mesmo assim,
morta-viva correndo para o fim,
a autópsia é clara: morreu de sede.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

TEIA SEDUTORA


Quem julgar que apanha
mesa e roupa lavada
não conte com a aranha,
esfomeada.

A teia que a aranha
tece, tece, é um isco
que desenha,
qual ministro.

O que a aranha
se empenha em tecer
é ardil e manha,
manigâncias…
está-lhe no rosto
e bom de ver
que é imposto
pelas circunstâncias.

sábado, 5 de outubro de 2013

POEMA PARA HIERONYMUS BOSCH


Como hei-de dizer de ti, como de mim disseste?
Sim, de mim, que sou gente por aqui ou belzebu
e pinto de igual o que é inferno e o que é celeste.

Aqui me tens em efémero deleite, um teu criado,
jogando as peras mas sempre atento e, no fundo,
não passo dum joguete, dum projecto mal talhado,
a contas com esses tais possuidores do mundo.

Não lhes darei tréguas enquanto for eterno…
Serei talvez apóstolo da alegria, como foste tu
e que me sobre mundo, no céu ou no inferno.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

AINDA O SONHO


Não adianta prender o sonho de um dia,
seja vento,  nuvem ou seja ele um grito,            
e se o sonho não arder como então ardia
que não cesse a sede e a fome de infinito.

Não se ergam muros, grades ou prisões,
para algemar o que é alígero e insano,
não adianta prender o sonho às multidões
senão matando o próprio ser humano.