sexta-feira, 29 de abril de 2016

PASSARINHOS



Esta vida é uma chatice,
foi um passarinho que me disse:

anda um passarinho
a construir o ninho
e o que é que ganha
com a façanha?

Um par de bastardos
alinhados, felizardos
de bicos no ar,
comendo sem parar.

Esta vida é um chatice,
foi um passarinho que me disse:

começam as cantilenas
crescem-lhes as penas
e mal batem asa
debandam de casa.

Por um tempo sozinhos
os pais passarinhos
já estão de empreitada,
não tarda aí nova ninhada.

Disse depois o passarinho ao poisar:
mas haverá melhor coisa que voar?!

quarta-feira, 27 de abril de 2016

OS BEIJOS

Disseste que o meu beijo era doce
e eu achei o tempero engraçado.
Surpreendido repeti, caso não fosse
o nosso amor ficar mal adoçado.

Insisti por me saber tão bem.
Mas acabei por ficar embaraçado:
é que o açúcar que o beijo tem
na tua boca, porém, fica salgado.

Doce ou salgado, qual a receita,
que paladar tu queres ou eu quero?
- Desde que não estrague a dieta,
que ao menos não falte o tempero…

quinta-feira, 21 de abril de 2016

OS RECICLADOS



Dos príncipes lustrosos e perfilados,
com discurso ampliado e já revisto,
vamos ouvindo falas em tons ultra irados
e mais não fazem, não passam disto.

Cambalhotas de puro divertimento
em palcos de renome e bom registo,
disso fazem, se a tanto for o atrevimento
mas, como já disse, não passam disto.

Antes foram estes os mestres do embuste,
depois, no costumado rendez-vous previsto,
negam a própria mãe, ainda que lhes custe,
para voltar ao mesmo, não passam disto.

Chamem-lhes salvadores, messias, Cristo:
negam, juram; juram, negam e não passam disto.

terça-feira, 19 de abril de 2016

BALADA PARA UMA FLOR


Canto ao teu compasso,
enlace de flor,
balada de amor
ao som do teu abraço.

Tuas pétalas, por braços
subtis, afinados
são beijos alados,
ardentes compassos.

A guitarra estremece
em afinação,
dá corpo à canção
e a balada, por fim, floresce.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

O TELHADO


Anda por aqui um melro, digo, um casal de melros.
Poisa no meu telhado, dá-me os bons dias
e imitamo-nos à vez durante o tempo que ele me dá
para a zombaria. Eu não quero mais que isso:
vivemos em mundos diferentes.
Temo-nos por companhia no condomínio do telhado.
Em comum resta-nos a inquietação e um par de asas.

sábado, 16 de abril de 2016

A VARANDA


Na varanda, onde à tardinha ponho a mesa
para comer fora, o mundo ganha as cores que eu quiser.
Às vezes, a vizinhança ignora-me ou finge
que não vê a ostentação exibida nas latas de conservas,
outras cumprimenta-me efectuosamente,
como se há anos não me enxergasse o rasto.
Pura ilusão: tentam ler os rótulos das embalagens;
querem saber mais do que lhes quero mostrar.
É nessas alturas que lhes atiro cá do meu sítio:
- são servidos? Mostram-me a palma da mão
e recolhem-se, pensando sabe-se lá o quê sobre mim.
Pelo contrário, visto da rua, querem lá saber
se como ou me divirto a ver quem passa.
Não é o mundo que me vê;
sou eu que vejo o que o mundo vê em mim. 

quinta-feira, 14 de abril de 2016

A CASA


A minha casa é feita de portas e janelas
para a rua.
As portas e as janelas são as asas da minha casa.
É por elas que me escapo para depois ter saudades
e voltar a escapar-me outra vez.
Quando estou ausente só penso nela por dentro.
Os meus vizinhos cravam os cotovelos nos peitoris
e sentam-se à soleira das portas horas esquecidas
e eu acho que eles se prendem voluntariamente
e se amarram ao mundo, contemplativos.
Tentei imitá-los uma vez mas deixei-me escapar de novo.

terça-feira, 12 de abril de 2016

O QUINTAL


Gostava que a minha casa tivesse um quintal
e se fosse um terçal ou um quartal, já me contentava.
Mas a minha casa tem apenas portas e janelas
para os quintais daqueles que os têm
ou que os deixam estar ali quietos
e nem querem saber da felicidade que é ter um quintal.
Se eu tivesse um quintal mudaria para lá a casa
e passaria a olhar para a casa como um verdadeiro quintal:
talvez assim sossegasse esta ansiedade
e olhasse a casa como coisa que gostasse de ter,
deixando de me sentir amputado dum quintal,
que não saberia cuidar nem para que serviria o musgo
das pedras em cima da minha cama.

domingo, 10 de abril de 2016

SINAIS DE FOGO


As manhãs rompem ou não conforme o sol;
cedo dão o primeiro sinal de vida e de alerta:
primeiro sonolentas, a passo de caracol,
depois, bem, depois já não é ciência certa…

Faz-se tarde, os sinais descobrem o velho
dia entorpecido, cor cinzenta, como prata
e a noite, que já se ornamenta ao espelho
cai como lâmina que fere mas não mata.

Vespertino o dia dá sinais de desalento,
de azuis que fingem altivez e desafogo
e desvanecem aos poucos com o vento.

Se não é agora já não será mais logo:
o dia implode mas o seu atrevimento
dá-lhe coragem e o primeiro sinal de fogo.

terça-feira, 5 de abril de 2016

AS FEIRAS


Chorei por mil tambores.
Todos me pareciam magníficos.
Com qualquer um faria marchar o soldadinho de chumbo,
escondido algures, mas com certeza dentro de mim.
Talvez tenha conseguido um ou dois, talvez três.
Normalmente ofereciam-me pandeiretas,
que eram mais baratas. Eu pensava apenas que eram de menina
e por isso as rejeitava.
Se fosse mosca e presenciasse aqueles despiques,
Saint-Exupéry acharia, certamente, cativantes os meus apelos,
ao contrário do meu pai,
que não lhes encontrava muita graça.
Mas os feirantes adoravam-me e até me faziam festas,
mesmo que não me conhecessem de parte alguma.
As feiras, mais do que as simples festas,
tinham a minha preferência.
As festas aborreciam, prolongavam-se demasiado
e tinham poucos motivos de interesse para a criançada.
Por outro lado, as feiras,
para além do ar de festa que eu lhes via nos balões,
nas luzes e cores e na gente sempre em movimento,
tinham o encanto do regalo que eu podia levar para casa,
continuando a divertir-me
e a atormentar os ouvidos de todos,
até à próxima.