quarta-feira, 29 de novembro de 2017

DIALÉCTICA


De olhos nos olhos vou dizer-te
um segredo:
nenhum de nós dois
está isento de culpas;
não é pelo meu atraso,
a tua ausência ou vice-versa,
que as marés alteraram
o vaivém de todos os dias,
que os barcos partiram
e o mar se parece tanto com um deserto.
Diremos que tudo estava previsto
ou o contrário com a mesma convicção.
A verdade, se ela existe,
terá de fazer por ela
e nós haveremos sempre de encontrar
mil desculpas para a desmentir.

sábado, 25 de novembro de 2017

FOTOGRAFIA


Um gesto e um sorriso,
que o momento desafia
têm tudo o que é preciso
para ficar na fotografia.

Na fotografia, porém
depois do clique, depois
a realidade já não convém,
nem nuvens, nem luas, nem sois.

Sobrevive-lhes o relento
e a memória do aparato:
a miséria, a fome, ar e vento
e a da fotografia o retrato.


quarta-feira, 22 de novembro de 2017

PROCISSÃO DOS VERSOS

(A. Almeida, Procissão do Senhor dos Passos)

Dois versos
interminavelmente brancos
seguem dispersos,
aos solavancos.

Que deus lhes valha
em coisa ruim,
do mal duma gralha
ou pecado afim.

Pelo meio, a compasso,
metáforas d’ andor,
vão passo a passo,
e recitam de cor

versículos, orações,
a régua e esquadro;
lamentos, canções,
ainda o poema vai no adro.

domingo, 19 de novembro de 2017

O PÁSSARO EM CANTO


Canoro
o pássaro encanta
e eu adoro
o que ele canta

sem partitura
canta de improviso
cada aventura
sem aviso

maestro de si
e de mim que o imito
do-re-mi
e repito e repito

o pássaro encanta
é ave canora
mas eu não sei se canta
ou se chora

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O CICLO DO NATAL



Que há de novo nesta quadra
de requentado néon intermitente?
Um vaivém de gente
e é costume ser mais nada.

Neste exórdio, que afinal deu igreja,
o negócio permanece intacto:
todos iguais mas, de facto,
há sempre carvão e carqueja.

Uns, castanha assada; outros, só o fumo;
fitas, laços, vitrinas de desejo.
- A avó manda-te um beijo.
Porta-aviões do consumo.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

LISTA ACTUAL DE INSULTOS PRIMÁRIOS


Nada a reter: cotão nos bolsos
e cabeças ocas, como sempre.

Da vida mal conhecem a sua,
de repente falam, como nunca.

Ouvi-los é maçada. Espremidos,
nem pinga deitam, como sempre.

Fingimento avulso, em lágrimas
de crocodilo manso, como nunca.

Empolados verbos de encher
Inconjugáveis, como sempre.

Alados arcanjos, como nunca,
desprezíveis insectos, como sempre.

domingo, 12 de novembro de 2017

OS MARGINAIS


Ei-los, que se atrevem de novo,
espalhando aos quatro ventos serradura
que cegue o povo
e abra caminho a nova ditadura.

Grunhem, uivam em desespero,
abrigados no fino manto que os cobre
mas por mais que finjam no tempero
não passam de pregoeiros de peixe podre.

Mas insistem em descobrir argueiros
nos olhos já cansados só de os ver:
damas de alfinete, caceteiros
e os demais que o diabo há-de trazer.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

(A) NEM MAIS


o rato no queijo
a mosca no prato
e um percevejo
algures no quarto

o cavalo errado
com pulga n’orelha
é bicho danado
do arco da velha

o que põe gravata
é d’ outra seita
social democrata
da ala direita:

t’arrenego bicho
malvado animal
pior que lixo
malvado mal

a filho d’ égua
(animal ruim)
não se dá trégua
do princípio ao fim

terça-feira, 7 de novembro de 2017

PARTINDO-ME


Se, partindo, fosse apenas a música de um gerúndio,
unicamente um tempo de conjugação verbal,
sem ressentimentos, eu partia.
Partindo, como quem descasca lentamente uma laranja,
e a saboreia, gomo a gomo, com o cheiro
da casca desprezada ainda nas narinas, eu partia.
E partindo assim ia ficando suavemente confortado,
com desejo de partir; com vontade de chegar.

Se, partindo, fizesse somente o tremer dos ossos,
o repuxar dos músculos e o  doer da carne em carne viva,
mesmo assim, amparando-me como pudesse, partia.
Mas o gerúndio de partir é mais que isso:
é um tempo arrastado pelo caminho, que prende,
decompõe a carne e a vontade, amolece o desejo,
fere de morte todos os caminhos, todos os destinos.
Partindo-me vou ficando.

domingo, 5 de novembro de 2017

OS DISTRIBUIDORES DE GÁS


Por baixo da minha casa há um concessionário de gás.
Tenho observado com frequência, cá de cima, da varanda,
a minúcia com que os distribuidores
arrumam as botijas nas carroçarias de transporte:
umas vão deitadas – as maiores – e as mais vulgares de pé.
No fim, não sobra nem falta espaço. Tudo fica perfeito,
geométrico, acomodado.
Esta azáfama faz-me lembrar os meus poemas:
como os construo e invento espaços, verso a verso,
e os ajusto até que nada sobre ou falte a cada estrofe.
Por fim, debandam para aquecer lugares e sonhos,
como fazem os distribuidores das botijas.
Em ambos os casos, no regresso já nada é igual:
as botijas vêm surradas e vazias
e os poemas inchados como balões de gás.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

OFÍCIO DE CHOVER


O ofício das nuvens é chover,
(salvaguardando o direito à greve)
raios, coriscos, o que houver.
Em casos extremos pode ser neve.

Para lazer basta, chega de verão,
de horas extraordinárias forçadas.
Para chover é que as nuvens estão,
de contrário são mal empregadas.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

EDITAL



um mumificado,
insolvente,
foi votado
presidente.

outro vivaço,
requentado
de palhaço
disfarçado.

agora só falta
um edital que pregue
e avise a malta
de quem se segue:

chefe de estado,
decorativo,
novo ou usado,
morto ou vivo.