sexta-feira, 30 de setembro de 2011

POEMA COM UMA QUEDA LIGEIRA


A morte teria sido um exagero
ou pelo menos uma facilidade escusada, prematura.
É verdade que havia o sangue vazado dos joelhos
deitados abaixo, coalhado nos buracos da terra e nas frinchas das pedras,
o fémur fracturado, coisa pouca, e o hematoma
que lhe escureceu as nádegas até às lágrimas
mas nada comparado com os golpes fatais,
que matam logo ali ou adiam o último suspiro
para quando já se pensa que tudo não passou dum susto.
Finalmente podia respirar de alívio
por não ter ficado paraplégico ao saltar a vedação da quinta,
como a si mesmo tinha prometido,
caso fosse surpreendido a roubar fruta para comer.


Afinal a morte, como a fome, só acontece da cintura para cima…

terça-feira, 27 de setembro de 2011

COISAS DO ARCO-DA-VELHA


Ele há coisas do arco-da-velha;
coisas da velha sem arco
e coisas do arco sem velha.
Ele há coisas que já estou farto.


E a velha criação resulta:
o arco arredonda a velha
e o que sobra é a pulga
abstrusa atrás da orelha.


É resignação que me aconselha?
Ele há coisas do arco-da-velha!

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

UM CERTO ROMANCE


De tão pueril e casta,
mais esperta do que culta,
depressa se fez madrasta
e virou mulher adulta.


Não o digo por espanto
nem sombras d’amiração,
que tampouco sou um santo
ou falho de compreensão.


Digo-o por contrição
e as penas me sejam brandas
(impulsos do coração,
que o amor faz em bolandas).


Casta e pueril, como disse,
pareceu-me a alva flor,
quer ela chorasse quer risse,
em tudo eu via amor.


Dentro do peito guardava
recatos mil por tesouro,
não de fel, pois pensava:
-longe de mim vá o agouro.


Tudo efémera ilusão,
oásis de fruta e de mel:
quando o amor é paixão
da carne fica só pele.


A tempo não consegui ler
seu ar pueril e casto
e tive então que aprender
à custa do próprio canastro.


Lá vingou o seu conceito
de moça, profanada em fúria,
que o mais que tinha no peito
não era amor, era injúria.


Não era assim nem assado,
mais esperta do que culta.
No fim, fui eu o culpado;
eu é que fiquei com a culpa.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

VERSOS CARECAS

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

SONETO PERVERSO


Vai ser bonito quando chegares
e vires as palavras do serão:
deitaram-se às rimas, aos pares,
como se agita a fé em procissão.


Por fim, era já mais o desnorte,
batendo a via sacra em arraial,
de pavio aceso, valha a sorte,
velavam um poema artesanal…


Afinado o coro metricamente
- ‘inda obra tosca, inacabada –
que de ti era oração independente.


Hás-de ver, poesia, a abençoada
lira, a um só tempo ateia e crente,
faz chorar as pedras da calçada…

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

SOBRE O QUE É INSOSSO


Há gente que é como as aspirinas:
não faz bem nem mal, qual enfeite.
Eu trato-as assim como às lamparinas;
dou-lhes meia d’água, meia de azeite…


Quase nunca enchem, nunca, quase,
tal como os alcatruzes no vai e vem,
como a lua sempre na mesma fase,
“é morto ou vivo, o que é que tem?”


Não se confessam, não dizem nada;
de falinhas mansas, mordem p’la calada.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

DUAS VAZAS

1.
Vamos lá ver se nos entendemos
duma vez por todas:
disse bolas, sim, disse bolas,
mas não me referi ao sólido geométrico.
Na verdade, estou há quatro jogadas à melhor de duas
e nada.
Bolas!

2.
Tinha a palavra alinhavada:
meu straight flush imbatível,
julguei teu bluff impossível.
Não fosse o royal flush e ganhava.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

UTOPIA

Joan Miró, Estéticas, Sonhos e Utopias

Finalmente posso voar


preciso só abrir os braços
como num reencontro de amigos
e de breve impulsão do vento


as asas virão depois

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

À VOLTA DA VIDA


Manhãs de negros corvos e de azia
é quanto oiço e quanto posso ver:
estes que julguei mortos um dia;
os mesmos que a terra há-de comer.


Neste meu alfobre, tem pouco a ver
semente e fruto como então soía
e, se for tal o caso, se sobreviver,
que a terra enfim lhe possa ser macia.


Contraditório é o vaivém da vida,
na terra nasce e morre o mesmo corpo;
cumpre em ambos a gesta corrompida,


de não saber se se chega a bom porto,
pelo contrário, se já estamos de partida,
decifrar se se é morto-vivo ou vivo-morto.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

LOUIS ARMSTRONG

Louis Armstrong, acompanhado da sua mulher, Lucille, em digressão pela Europa, na sua passagem por Roma foram convidados a visitar o Papa. Pontificava então o cinzento Pio XII.
A certa altura da conversa, insípida como seria de esperar, o chefe da Igreja Católica perguntou:
- Têm filhos?
Armstrong, fez um daqueles sorrisos largos que o caracterizavam e respondeu:
- Não, Santidade, mas divertimo-nos muito tentando-o.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O ESPECIALISTA II


Revi em baixa o meu próprio caso:
depois do doutoramento em estar e o mestrado em ser,
para leigos, depois de saber estar,
concluí: sou um europeu; sou um on trick pony.


O atraso e as insuficiências do meu país, que é Portugal,
levaram-me a esta inusitada demora.


Invejo os franceses.
Na Europa toda a gente inveja toda a gente.
O Presidente da Comissão Europeia inveja-se a si próprio
como a um cherne.
Mas eu invejo os franceses.
Nada da sua história, dos seus Bonapartes, da sua guilhotina, dos seus
quelque chose sur quelque chose, não.
Invejo a sua inteligência:
Eles criaram o verbo être.
É um verbo extraordinário
que significa, ao mesmo tempo, ser e estar.
Isso, por si só, ter-me-ia poupado um tempo precioso
na minha carreira académica
e o meu sucesso teria ocorrido muito antes desta crise global,
como dizem outros especialistas
de áreas que não domino.


Desta forma, nunca chegarei a tempo de saber.

domingo, 4 de setembro de 2011

ANIMAIS


Logo que comecei a aproximar-me da quinta, o come-se-há - assim se chama o guarda canino do lugar – já me tinha farejado.
Agitava-se e gania de ansiedade e contentamento, se me é permitido interpretar desta forma a atitude do animal, depois de uma noite de vigilante trabalho, entregue a si mesmo e sem ladrar, que para isso foi ensinado.
Assim que me viu ao portão correu desenfreadamente ao meu encontro e, como não podia deixar de ser, fincou-me aquelas enormes mãos nos ombros, lambendo-me a cara e o que de mais lhe deu na gana, como faz a tudo e todos de quem gosta. Afinal de contas, é um animal de grande porte, suficientemente corpulento para intimidar quem não lhe adivinhe o carácter meigo e pacífico que na realidade possui.
Não tenho dúvidas em relação a este seu comportamento. Sei que me estima e respeita como macho alfa, mas se exagera nas festas de boas-vindas, desconfio logo de asneira grossa na minha ausência…
Olhei discretamente de relance, mas aparentemente estava tudo no seu lugar. Parecia até que o vento nocturno tinha varrido ordenadamente as folhas das árvores de fruto e arrumado as alfaias.
- Que fizeste tu desta vez, meu malandro?
Questionei sem esperança de resposta, mas antes para me convencer de que o primeiro olhar me tinha iludido, como quase sempre acontecia.
- Vamos lá, vamos lá – ordenei.
A euforia do come-se-há aumentava à medida que caminhávamos em direcção à sua casota.
- Come-se-há! – Gritei-lhe, em tom de repreensão. E não precisei de mais nada: deitou-se junto aos meus pés e começou a ganir baixinho como se pedisse desculpa por algo que eu não estava ainda preparado para entender.
Nesse instante, um som idêntico vindo da sua casota fez-me aproximar da entrada e eis a surpresa: um cachorro de raposa com dias de vida, aninhava-se a um canto, tremendo de frio.
- Onde foste tu roubar a raposinha, meu patife? Era claro que a rapinara à progenitora.
Descoberta a marosca e presumindo o meu assentimento, entrou na casota, lambeu a criatura e enroscou-se ternamente em volta daquele corpinho frágil e carente, de modo que a própria mãe não faria melhor.
- Bonito serviço, desabafei para ver se, entretanto, me ocorria alguma ideia com pés e cabeça.
Daqui em diante já não há matéria para ficção.
Por motivos desconhecidos, a raposa mãe, supondo-se não ter sido pacífica a adopção do filhote pelo come-se-há, não foi vista em algum momento nas redondezas e por isso a pequena raposa foi entregue a quem de ofício.
O mais difícil foi convencer o “pai”, coração de manteiga, a aceitar esta forma humana e burocrática de resolver o assunto. A dedicação de uma noite bastou para uma saudade infinita.
Por tudo isto terei sempre relutância em apelidar de animal a quem de humano não julgue inteiramente, coisa que hoje em dia me ocorre com frequência.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

MANIFESTO


“A força das circunstâncias obriga”…
(ora aí está a chave para a ditadura)
é como quem diz: queira ou não, siga
os meus passos, a minha assinatura.


Causa nobre, esta coisa de ordenar…
só de ouvi-los no discurso activo,
se entende que o verbo a conjugar
tem ardis nas entranhas e é transitivo.


Impostos do alto de eleita condição
por quem, que saiba, não se manifesta,
o melhor de tudo, assim, é dizer não,


resistir como é devido e com razão
e chegar no lombo da dita besta,
perdem-se as que caírem no chão.