terça-feira, 31 de julho de 2018

MAÇÃ


Aceita – diz a velha –
ou pelo menos prova,
que a maçã vermelha
é doce e é da nova.

Que não se atreva,
velha sem coração,
lograr como Eva
a candura de Adão.

domingo, 29 de julho de 2018

A LUZ



Onde o clarão, a luz, a chama?
Uma corrente de ar entre fissuras
urdiu a corrompida trama,
deixando-nos quedos e às escuras.

Ardamos nós, que é já tempo
e ao tempo que este tempo induz
a prender o enganoso vento
e que enfim volte de novo a luz!

sexta-feira, 27 de julho de 2018

NOVA CAROCHINHA


Carochinha pode esperar
na sua casa, à janela,
cansada de se apregoar,
já ninguém repara nela.

Disse que achou dinheiro
respondeu um brasileiro

Contou até dez
apareceu um tailandês

Já tem contado até cem
e não aparece ninguém

De jeito viu dois ou três,
nenhum deles português

para maior desconforto
saiu-lhe há dias do nada
um rato nascido no Porto
que a explora e dá porrada.

E assim pensou desistir,
esta vida não convence:
solteira há-de conseguir
o que a história não oferece.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

MATUTINO


Numa leitura apressada,
na diagonal,
houve mortos na estrada
ou só no jornal?

Edições esgotadas
em jornal ou tv
são favas contadas
e a mim, quem me lê?

(Entre notícia e verdade
deixa ver se adivinho:
elejo a lealdade
do que diz o passarinho.)

segunda-feira, 23 de julho de 2018

O SAPATEIRO


Bate sola meia-sola
salto-alto protectores
bate prego vai à forma
mais um furo de sovela

dá sebo à mecha
dá mecha ao sebo

um jeitinho na palmilha
quase prontos engraxados
um par de atacadores
e ficam novos os sapatos 

sábado, 21 de julho de 2018

LÁ VAI DE NOVO O SOL




Lá vai de novo o sol, gordo e enfastiado,
para outro lugar onde for sul
e por sua causa um novo dia.
Finge mergulhar para quem não lhe conhece
os hábitos de romeiro de fé incandescente.
Anda nisto há anos, mentido a quem, da verdade,
se alimenta desta mentira encantadora.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

AS COISAS SIMPLES


A gasta varanda de ferro forjado persiste
desde o tempo em que, debruçado no peitoril,
deixava o gato adormecido (já não existe),
aproveitando o último raio de sol primaveril.

Na alameda, a mesma gente, vista de cima,
gente a quem raramente desvendava o rosto,
quase sempre à pressa, quase sempre anónima,
sem nunca saber se sorria, se o seu oposto.

Às vezes ladravam cães para desassossego
do bichano: abria um olho e, pressentindo-me ao pé,
tornava silencioso ao morno aconchego
sem qualquer necessidade de ir dar fé.

Não faziam falta as horas porque eu nada esperava;
via passar todo o tempo, toda a gente num frenesim
e eu (e o gato) debruçado na varanda imaginava
que o tempo, visto de cima, não passaria  por mim…

terça-feira, 17 de julho de 2018

GATO IBÉRICO


O gato era espanhol
mas entendemo-nos bem,
miava como ninguém
em português, portunhol.

Disse miau correctamente,
como quem diz não mordo,
fluente, sem prévio acordo,
ao seu jeito, como gente.

Por fim, à despedida,
repetiu miau como um gato
(não como um fala-barato)
e lá foi à sua vida.

domingo, 15 de julho de 2018

ESTAMOS FARTOS




Estamos fartos
que nos digam que são partos
os abortos

(por partes:
excepto quando dos partos
dão abortos)

argumentos baratos
absortos
já nos fartam

albardam
os mortos vivos e os vivos mortos
raios os partam

sexta-feira, 13 de julho de 2018

SEI DE UM BARCO


Sei de um bote, um barco ou um navio
repleto de soldados e marinheiros,
e de outros, que por destino ou extravio,
não foram muito além dos areeiros.

Sei de uma jangada de vela panda,
que os ventos enchem de areia e sal,
aparentando navegar, mas já não anda
e se dá pelo nome de Portugal.

Foi um pássaro que me disse, inquieto,
que a estibordo mete água, afunda
sem remédio, como bóia moribunda,

sem se saber já se foi mal do arquitecto
ou se de outros infortúnios foi objecto
para tal sina e desgraça tão profunda.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

CADA QUAL NO SEU LUGAR


Bem sei que não se come
e tocar-lhe só com luvas.
Nem a rosa mata a fome,
nem cheiram bem estas uvas.

terça-feira, 10 de julho de 2018

ENQUADRAMENTO DA CONVERSA


Conversa que veio a lume
foi prosa a talhe de fouce,
que todo o diálogo resume
e mais não digo. Acabou-se!

domingo, 8 de julho de 2018

O ANJO


No parapeito da janela
(que aqui reabilito,
quase sem dar por ela)
havia um anjo aflito.

Vi e não quis crer,
só mais tarde, a sós,
acreditei, dava para ver:
os anjos cagam como nós.

domingo, 1 de julho de 2018

NAVEGAR


Uma onda que nos cega?
Mais faltava que cegasse
quem no alto mar navega!
O que não vê, não cega
e se quem vê, não avista
não deve perder de vista
a onda de cada refrega.

O sonho que ali se esconde
ao ritmo da preia-mar
pode avistar-se até onde
em terra alguém que responde
-Ó do mar, ó do mar!
não te deixes naufragar
não te deixes ir na onda.